Thursday, January 24, 2019

Eros uma vez… o humorista Zé Manel (Lisboa 22 de Janeiro de 1944 - 24 de Janeiro de 2019)


Por Osvaldo Macedo de Sousa

            Zé Maneis há muitos, “Zé Manel” há só um e é ilustrador humorista.
            Na sociedade ocidental contemporânea perdeu-se o lado exotérico que envolvia os nomes próprios, as suas origens e significado, usando-se agora, simplesmente, por modismos … Em oitocentos e na primeira metade do século XX, as alcunhas e diminutivos transformaram o panorama patronímico de muitas famílias portuguesas, mas o universo onomástico era muito restrito, cingido a listas oficiais. Hoje, apesar de haver sempre um lado psicológico - cultural nessa escolha, dá-se pouco valor ao seu significado, tendo-se passado de uma estrutura restrita à anarquia dominada, muita das vezes, por ondas de mau gosto tele-novelístico ou criatividades pós-modernistas.
            No seio da minha família conta-se que um parente, pelos anos cinquenta, intentou registar o primogénito como “Zémanel”. Não constando das listas oficiais dos nomes próprios permitidos, não foi autorizado, por muito que advogasse que, na prática, o filho acabaria por ser referenciado maioritariamente como Zémanel e raramente como José Manuel.
            Estranho a esta história pessoal, o nosso “Zé Manel” só vem confirmar que a praxis se sobrepõe às convenções. Por muito que insistamos em saber o nome político, que não é segredo, ele defende a sua imagem iconográfica – “Zé Manel”.
            Filho de outro artista iconográfico que tinha como sigla onomástica “Méco”, o Zé Manel é resultado de um “milagre” de Fátima, tendo como padrinhos, com total ignorância destes, Profiro Pardal Monteiro e Lino António. Deixando de lado os exageros místico-lendários que ilustram sempre o nascimento de qualquer artista de nomeada, e caminhando pelo picaresco da vida, poderíamos começar esta história como…
            …Eros uma vez… Maria Amélia que, incitada por amigas em ir de passeio apreciar a evolução da decoração da, ainda em construção, Igreja de Nossa Senhora de Fátima, aí alterou o rumo da sua vida. Esta nova igreja de Lisboa, concebida numa linha de ruptura estética, era alvo de escândalo e de admiração, razão pela qual atraía o olhar da sociedade mas os olhos de Maria Amélia, em vez de se focarem na virgem, foram cativados pela formosura do António Serra Alves Mendes que ali trabalhava. Só mais tarde veio a descobrir que quem ali estava a executar os frescos do “cartão” do Mestre Lino António não era o António Mendes, era o artista, o mestre “Méco”. António ou “Méco”, o resultado foi o matrimónio. Nossa Srª de Fátima abençoou o olhar, a paixão e uma vida de cumplicidade que se corporizou a 22 de Janeiro de 1944 (nato na Rua Dona Maria Pia – Campolide - Lisboa) no filho José Manuel Domingues Alves Mendes, longo título onomástico e patronímico que só será usado nos documentos oficiais, porque para o que é importante na vida, entre a família, os amigos, a profissão, o artista… ficaria sempre abreviado em “Zé Manel”.
            O indivíduo nasce em 1944, e o artista? “Pegou no lápis no mesmo dia em que a outra pegou na chucha, - escreverá como autobiografia num catálogo do Salão Francisco Valença – Paço d’Arcos de 1983 - ou seja lá para os 15 meses. Com o primeiro traço teve o destino traçado, e desde então tem sido um fartote de riscar papel”. Noutra nota biográfica anterior, de 1978 para o Salão Luso-Espanhol de Desenho de Imprensa do Estoril, acrescentará: “e até agora nunca mais parou, na tentativa de aperfeiçoar o traço… Livros e publicidade, anedotas e cenários, cartazes e calendários, decorações e vitrais, tantas, tantas coisas mais… Desenho humorístico fê-lo, fá-lo e fá-lo-á… enquanto a graça (pouca) que tem, não for ultrapassada de vez pela graça (muita) dos acontecimentos do dia-a-dia… /…/ tem sido um esbanjar de papel, de borrachas, de tinta e de energias, que bem poderiam ter sido aproveitadas em actividade mais rendosa!
            O gene artístico de imediato se manifestará como maldição ou como bênção? Para o público foi uma bênção que (nos) veio embelezar a vida, primeiro no seio familiar, depois na sociedade em geral, mas pasmem senhores e senhoras, porque a sua popularidade inicial não surge pela arte das mãos, mas pelos seus dotes canoros. Não temos registos áudio dessas façanhas, porém, e apesar da efemeridade da imprensa, o historiador, vasculhando no pó das hemerotecas, pode descobrir no “Século Ilustrado” Nº 645, de 13 de Maio (de novo Fátima como protectora deste milagre), um testemunho escrito sobre essas façanhas: “Zé Manel um caso de precocidade artística: José Manuel Alves Mendes tem seis anos de idade e é um garoto precoce. Toda a gente o conhece, não pelo aspecto por que hoje o apresentamos, mas pela sua actuação em concursos infantis de programas de rádio, onde costuma cantar com desenvoltura – e já desde os quatro anos – fados, canções ou modinhas que ouve e aprende sem esforço. Mas o “Zé Manel” não é só o “virtuose” e, às vezes a grande atracção daqueles programas infantis…” Começou bem cedo nas boémias artísticas, um castiço que sabe (en)cantar as miúdas e demais plateias. Porém, o seu fado não será canoro por muito mais tempo, sobressaindo cada vez mais as habilidades manuais, não deixando, por isso, de (en)cantar o publico… talvez com predomínio do sector masculino… mas isso será uma história mais adulta. Prosseguindo na leitura desse exemplar do “Século Ilustrado” onde reporta que este jovem precoce: “…é, ainda, um já muito hábil artista desenhador, que causa admiração a quantos o vêem traçar desembaraçadamente, sobre o papel as grande figuras que lhe possam acudir ao espírito. O “Zé Manel” não copia nem decalca os seus bonecos. Os que ilustram esta página são o resultado do seu grande poder de observação e da rápida assimilação de tudo com que o pequeno artista toma contacto. “Zé Manel”, filho do artista Meco, nosso prezado companheiro de trabalho, confirma mais uma vez o ditado: “filho de peixe…” sabe desenhar!” Na realidade “O Século” já tinha publicado um desenho seu, em 1949.
           
O desenho rodeava o seu berço, e os seus brinquedos perdiam-se entre os desenhos e estudos do pai, quando não de outros artistas, quando acompanhava o progenitor para as oficinas de “O Século” e ateliers de outros companheiros das artes, como Rodrigues Alves, Domingos Saraiva, Natalino Melchiades, Baltazar Ortega…. “Desde muito miúdo que espreitei estiradores, que visitei jornais, e que estraguei muitos pincéis ao meu pai – punha-os dentro da tinta-da-china e não os lavava. Quando comecei a ser mais crescidinho, até dava a minha opinião. Ás vezes o meu pai pedia-me para ajudar – isto aos meus doze anos – mas eu tinha medo de estragar, e não queria.”
            Em 1957, com apenas 13 anos, sofre um rude golpe com a trágica morte de seu pai, rompendo-se naturalmente, o convívio tão assíduo com esses meios de labuta intensa e constante criatividade, onde se aprendia mais vendo que frequentando as universidades. A ligação, contudo, manteve-se pelo carinho que os velhos companheiros continuaram a dispensar à família e incentivando o jovem “Méco Junior”. Zé Manel cresceu a desenhar, a analisar os trabalhos do pai, a “estudar” o que os mestres faziam-no embelezamento do quotidiano de uma sociedade em luta contra a tristeza dos anos quarenta a cinquenta. Essa foi a sua grande aprendizagem, em que a Escola de Artes Decorativas António Arroio foi apenas mais um passo para conseguir os diplomas oficiais, poder conhecer “irreverentes estetas” da sua idade e ter as suas primeiras aventuras feminis.
            Esta instituição pedagógica situava-se na Rua Almirante Barroso, ao lado do Liceu Camões, um baluarte pedagógico do regime, reservado apenas para a juventude masculina, executora da mais férrea disciplina controlada por “gorilas” policiais, contrastante com o liberalismo vizinho cujos alunos gostavam de ir desafiar as forças do poder obscuro, lançando do coreto do jardim em frente, as suas irreverências juvenis, porque sabiam que virando a esquina estavam em porto seguro. Nessa rua ao lado, na António Arroio, administrava-se revolucionariamente, o ensino misto com mestres, dirigidos por Lino António, defensores de um ensino liberal, criativo e irreverente. Aqui, não havia frequência obrigatória da “Mocidade Portuguesa”, nem a polícia tinha permissão de entrar sem autorização do Director, defendendo a velha tradição renascentista de “independência” dos recintos académicos. Os alunos iam lá aprender com os mestres, não as matérias dos compêndios, mas sim a arte da descoberta das matérias, na realização e na ousadia de irem mais além dos cânones bolorentos dos livros.
            Era um ensino prático que, ainda estudantes, os encaminhava já para o mercado laboral, aproveitando trabalhos temporários, pequenas encomendas da Tobis, da FIL, para uma ou outra exposição, para colaborações numa produção teatral, numa tipografia…e, de experiência prática em experiência, se formaram grandes profissionais, magníficos artistas.
            Zé Manel não é somente fruto do cruzamento das influências paternas, grande mestre da ilustração, principalmente de índole infantil, para além, de grande vitralista, aguarelista, mas também da influência das tertúlias com que conviveu desde a infância e que continuou a cultivar ao longo de toda a vida e, finalmente, da frequência da Escola António Arroio onde desenvolveu cumplicidades com artistas da sua faixa etária. Aquando da exposição retrospectiva do espólio do mestre Rodrigues Alves, no Museu de S. Roque de Lisboa, descobriram-se, no meio da colecção dos trabalhos dos amigos, alguns desenhos juvenis do seu aluno dessa escola, ou seja, o nosso Zé Manel, evidenciando o carinho do mestre pelo discípulo e pela qualidade dos trabalhos que mereciam ser guardados ao lado dos outros dos mestres mais velhos.
            Nessa época de infância e juventude do artista viviam-se tempos de maturação da terceira geração modernista, entrecortada por rupturas surrealistas ou neo-realistas, misturadas com o naturalismo sempre presente e, dentro das artes gráficas humorísticas, a revolução caligráfica de Steinberg, o traço breve sintético-psicanalítico.
            Muitas podem ser as influências a invocar e muitas mais têm de ser as opções pessoais de cada artista, numa linha de pesquisa que deve orientar sempre a vida dos criadores na procura da sua originalidade. Curiosamente, entre todos estes grandes mestres que o rodearam bem de perto, o primeiro nome que lhe salta à mente, quando se pergunta quem o poderia ter influenciado ou, mais concretamente, que obra ele mais admirava na altura, responde, de imediato, Fernando Bento, esse poeta da linha síntese, esse gráfico de traço leve, estilo que também Zé Manel explorará.
            Terminaria o curso de Desenhador – Gravador - Litografo na Escola de Artes Decorativas António Arroio, dirigindo a sua carreira profissional para o campo das artes gráficas e aplicadas, nas mais variadas vertentes. Contudo, desde logo se denotou na sua obra uma chispa divina da irreverência, a ousadia do sorriso e, por muito que tenha lutado toda a sua vida em se classificar essencialmente como ilustrador, o humor sempre o acompanhará e será, fundamentalmente, um humorista. Como ele próprio acabará por reconhecer, quando se nasce assim, com este dom ou com esta maldição cómico-analitica, “encara-se o humor como sacerdócio e lá se vai “humorando”.” (in Catalogo 1978 Salão Luso-Espanhol do Estoril). Mais tarde, justificar-se-à - “Não sei fazer outra coisa, é de família. Se o meu pai fosse músico…” (in Portugal Design, Nº 2 Dez. 1999). Teríamos hoje, não o Zé Manel humorista gráfico, mas o desenvolvimento do fadista precoce…
            Desenho humorístico fiz, faço e farei enquanto a pouca graça que tenho não for ultrapassada pela graça dos acontecimentos do dia-a-dia” (in Portugal Design nº 2 de Dezembro de 1999). E foi com este espírito de missão, com este sorriso matreiro, que se estreou profissionalmente na imprensa, em 1961, no conceituado jornal “Ridículos” ao lado de mestres como Stuart, Natalino… com meia dúzia de desenhos satíricos de ironia social.
            Viviam-se ainda tempos da requalificação mundial do pós-guerra, em que a sociedade procura um reequilíbrio ideológico, uma reestruturação no seu relacionamento inter-classes, na procura da reconstrução cosmopolita, para uma democracia modernista. Após os horrores da morte, mesmo que em Portugal se tenha sentido apenas de uma forma longínqua ou como um eco vivido através dos refugiados que por aqui passaram, desenvolveu-se um especial desejo da vida, dos prazeres, em que a mulher acaba por ser usada, adulada, reconstruída como símbolo do prazer proibido. As senhoras recatadas, de trajes pesados e conservadores dão espaço às raparigas modernas, iconograficamente baptizadas de “Flausinas”, de saia curta, meia de vidro, insinuantes. Para o espírito conservador e catolicista do regime, esta libertação, acompanhada também pelo “metrosexual “Bau-bau”, era consequência da influência nefasta das estrangeiras que por aqui passaram, refugiadas em fuga para novos mundos, invadindo as esplanadas dos cafés, fumando e bebendo em público, com trajes ousados num desespero de “avant-garde” vivencial. Más influências, ou boas, a realidade é que também em Portugal se vive essa necessidade de libertação que no campo da diversão vai resultar, entre outras coisas, na explosão de bares dançantes. Faço referências a essas “boites” porque acabam por ser símbolo de refúgio dos jovens e covil onde os velhos do regime se vêm babar e fazer outras actividades que são o contrapondo da sua atitude hipócrita da hiper-religiosidade do lar exemplar. O erotismo, o sexo, mesmo que tenha de ser hipocritamente camuflado em guetos do mundo libidinoso, conquista e domina o pensamento desta sociedade dita conservadora e filosoficamente machista.
          
  Toda a revolução, guerra militar, política ou social tem, naturalmente, reflexo no pensamento estético e na filosofia comportamental e, se a primeira grande guerra de 14/18 abriu o espírito para o cómico anarquista do “futurismo” e “dadaísmo”, a segunda grande guerra fomentará outras vertentes do grotesco anárquico. No universo do humor gráfico, a revista americana “Mad” acabará por ficar como símbolo dessa revolução icónica também desenvolvida na Europa por revistas como a belga “Pan”, as francesas “Hara-kiri”, “Charlie Bebdo”… com o “humour bete e mechant”. Filosoficamente, o humor extrovertido da crítica à sociedade vai recostar-se na marquesa do psiquiatra e explorar um humor de introspecção em que mais importante que os heróis iconográficos são os próprios artistas. O criador procura ser agora o alvo crítico, apresentando-se como o anti-heroi, reflexo do quotidiano e da sua vivência anónima na sociedade. É que uma das fórmulas imprescindíveis, um dos grandes artifícios do humorismo contra a intolerância ou desconfiança do público, é colocar-se como o centro da atenção do risível. É apresentar-se a si, à sua família, aos seus próximos como “vítimas” das suas “farpas”, para que os outros possam rir, descontraidamente, de “si próprios”, quando pensam rir-se do “outro”.
            O desenho anedótico, apesar de escamoteado, censurado como um desleixo do cómico rebaixado para o baixo-ventre, um artifício de simples sobrevivência dos humoristas, teve, por vezes, a missão de mudar o centro da atenção cómica. Na impossibilidade da sátira política directa, desvia-se a atenção para a sátira, para os problemas do alto grau de alcoolemia de uma sociedade amarfanhada, do “poder” ditatorial da “sogra”, da hipocrisia vivencial no sexo proibido… Na opressão à sátira nasce a ironia, mesmo quando esta surge como anedótica.
            No Portugal dos anos 50 e 60, do século XX, a censura dominava a imprensa, o pensamento, o quotidiano. Não era permitida a sátira política havendo, no entanto, outras formas de falar de política, já que tudo acaba por o ser na relação humana. A comunicação, na expressão que se procurava livre, desenvolvia-se por vias paralelas, subentendidas, metáforas, alegorias popularuchas de inspiração revisteira, mas actuante. “Criei logo calo contra as censuras. – refere Zé Manel numa entrevista de 2002 – Comecei a desenhar com 15 ou 16 anos e criei, tal como outros, treino em rodear a censura, o que nos ajudou a desenvolver uma forma de fazer humor com uma certa subtileza. Conseguimos atravessar a fronteira entre o que se pode fizer e a maneira como se diz.
            A forma como se diz, passa muita da comicidade já que o humor é uma construção do pensamento em transgressão que destrói as aparências, as hipocrisias, donde se destacam as questões sexuais. O sexo é um assunto tabu, proibido que só deve ser tratado de forma recatada, com o único objectivo da reprodução. É algo que, tal como o humor, incomoda os poderes (eclesiástico e politico). Aliar sexo e humor é, pois, uma dupla transgressão política que, no Portugal cinzento dessas décadas, conquistou o estatuto máximo da irreverência, principalmente, pela pena de dois grandes mestres da ironia erótica – José Vilhena e Zé Manel.
            Vilhena entrará mesmo numa cruzada erótico satírica, em que, na década de sessenta a vertente literária será mais dominante. Essa agressividade interventiva de crítica social raiará, por vezes, a fronteira da pornografia, principalmente, quando a liberdade foi restaurada. Zé Manel, fazendo também crítica social, ou humor pelo humor, manter-se-á no universo do sorriso irónico, dizendo verdades com malandrice e divertindo os leitores
            Referenciar Zé Manel só pelo lado erótico da sua obra será muito redutor, de todas as formas, é nessas curvas que se desenrolará muito da sua obra, do seu fino humor, irónico, brincalhão. É um dom nato, uma facilidade de mão que sempre soube acariciar os traços essenciais dos corpos feminis, harmonizados na irreverência poética das curvas, hipnotizando o observador no ondular do horizonte do pensamento juvenil. Essa facilidade, essa arte picara, de travestir o olhar na libido da vida, torna-se sempre o centro, o alvo da atenção dos amigos e conhecidos, desejosos de acariciar, visualmente, tais utopias. E, da simples brincadeira juvenil, transformou-se numa imagem iconográfica, passando a uma presença constante, por um lado, pelo natural desfrute do artista, da arte da picardia na construção das suas “flausinas”, por outro, as encomendas preferirão essa vertente onde demonstra sempre a sua originalidade e a sua graça. Como ele próprio se justifica, “não gosto de desenhar homens, as mulheres são muito mais bonitas” (in Portugal Design nº 2 de Dezembro 1999). E, desta forma, entrará na fileira dos profissionais dos “bonecos”, gíria que engloba os humoristas gráficos ou, mais concretamente, como profissional das “bonecas”.
            Enviando apenas de tempos a tempos colaboração para os “Ridículos”, a sua mãe avança, por sua auto-recriação na promoção da arte do filho, remetendo uma mão cheia de desenhos para o director da “Parada da Paródia”. Esta é uma nova revista humorística, lançada pelos célebres “Parodiantes de Lisboa” que desejava ser um espaço especial de renovação do humor nacional. O seu director, António Gomes de Almeida, logo viu ali o potencial deste jovem de 17 anos e, assim, encontramos a 13 de Julho de 1961 a publicação de desenhos com a seguinte nota: “A Parada da Paródia revela um novo caricaturista! – Zé Manel – Meco Júnior – A “parada da Paródia” sempre gostou de descobrir novos desenhadores. Cá em casa, entendemos que os caricaturistas portugueses são tão bons ou melhores que os estrangeiros. Simplesmente, não têm tido grande oportunidade para revelar o seu geitinho… Ora a “Parada da Paródia”, sempre á procura de novos valores, tem hoje o prazer de mostrar aos seus leitores, o geitinho de um rapaz de 17 anos, o Zé Manel, que é filho do saudoso MECO, o grande ilustrador de que todos se lembram muito bem. ZÉ MANEL – MECO JUNIOR estreia-se na “Parada da Paródia” com os bonecos que apresentamos nesta página. Já tem muito bom traço, e até tem graça. Ou a gente se engana muito, ou teremos aqui, dentro de pouco tempo, um grande “Parodiante”!...
            O “marketing” é sempre importante para qualquer publicação, por isso natural que o director queira afirmar que é uma descoberta sua. No entanto, Zé Manel já tinha publicado trabalhos em “Os Ridículos”, um jornal de grande circulação. Descoberta, ou não, foi de imediato integrado nos “parodiantes” já que as suas colaborações desenvolvem-se, desde logo, no número seguinte até ao encerramento da revista. Além disso, e apesar da diferença de idades em relação à maioria dos colaboradores, passou a ser um dos frequentadores da redacção da revista, das suas tertúlias e demais aventuras gráficas dos “Parodiantes” como, por exemplo, do álbum “Patilhas e Ventoinha” (1962), com capa da sua autoria, para além de outras ilustrações. Esta tertúlia de “parodiantes”, que terá maior longevidade que a própria revista, será muito importante, não só nestes primeiros anos de sessenta, como para o resto da vida. Nestas cumplicidades destaca-se o papel do irrequieto escritor humorístico e produtor editorial António Gomes de Almeida, que acabará por ser o responsável pela concretização de vários projectos futuros.
            Regressando à “Parada da Paródia”, na nº76 de 19 de Abril de 1962, quando chega a vez de apresentar este colaborador – “Ficheiro dos Desenhadores”, o director escreverá: “Os leitores que escrevem cá para a Redacção falam, muitas vezes, nas «bonecas» do Zé Manel. Realmente as garotas que ele desenha são uma coisa verdadeiramente sensacional! Parece que estão vivas, e prontas a saltar do papel para fora!
            O Zé Manel é um rapaz muito novo: tem só 18 anos. Estreou-se no nosso jornal (temos muita honra nisso), onde publicou os seus primeiros desenhos no nº 36. De então para cá, tem vindo a revelar o seu estilo e o seu humor de uma forma espectacular! Presentemente desenha embalagens, faz capas para o nosso prezado colega “Os Ridículos”… e utiliza o seu apurado “olho crítico” para fazer anedotas com muita laracha. Tudo indica que o Zé Manel será, em breve, um caso muito sério como desenhador. Não lhe faltam qualidades para isso.
            Tem 18 anos, faz embalagens… Não nos podemos esquecer que seu o pai faleceu em 1957 e, por isso, o jovem aprendiz rapidamente teve de se por à vida, ganhar o sustento para a família e, se o humor foi dando uns trocos, nunca pôde ser encarada como uma profissão a tempo inteiro.        Em 1976, “A Chucha” (nº 14 de 1/4) recordará essa evolução profissional: “Aos doze anos entrou de calções na António Arroio; quando saiu tinham-lhe crescido as calças. Aos 16, estava cursado e empregado. Aos 17, estava noutro emprego. Aos 18, noutro. Aos 20 noutro… Aos 21, empregou-se nele próprio. /…/ Daí para cá /…/ tem vivido livre como muita gente gostaria de viver, sem qualquer das regalias que muita gente não está disposta a perder. Tem feito de tudo (salvo seja)…
            Quando acabei o curso, mal saí da Escola, – refere na entrevista dada a Geraldes Lino em 2001 – fui trabalhar para o gabinete de publicidade do “Diário de Notícias”. A seguir fui para a fábrica de embalagens “Neocel”, onde desenhava rótulos, maquetava os sacos de meias, pacotes de açúcar… e sacos de produtos alimentares em geral… Dali fui para a “Telecine”, onde entrei no desenho animado. Entrei… e saí, aquilo não me satisfazia como criador, já que era um trabalho repetitivo fazer a intervalação dos desenhos. Não tive paciência para chegar a ser animador. Trabalhavam lá Mário Neves e Marcelo de Moraes, depois chegou o Artur Correia. Depois da “Telecine” fui para a FOC escolar, porque tinham resolvido explorar o campo didáctico, e desafiaram-me para iniciar essa linha de actividade. Fiz para essa editora muitos desenhos, e até “puzzles” que eram autenticas bandas desenhadas. Mas nunca deixei de trabalhar na publicidade, com as agencias que havia na altura – a Zeiger, a Elo –, onde fiz anúncios à base de desenho. Colaborei com a Santa Casa da Misericórdia, a fazer ilustrações para os bilhetes de lotaria e respectivos planos, assim como lhes desenhei cartazes (o primeiro cartaz do Totobola fui eu que o fiz). Em fins dos anos sessenta dei um saltinho ao teatro de revista, onde ainda desenhei alguns programas e um ou dois panos-de-boca para o “Maria Vitória”
            Tudo o que vem à rede é peixe e, para além, das referidas embalagens, da maquetização de publicidade, foi cenarista de cinema de animação, fez “cartões” para telões para a “revista à portuguesa”, bilhetes de lotaria, cartazes, calendários, pacotes de açúcar, postais, anúncios, ilustração de livros escolares, livros mais sérios e menos sérios… para além da herança “vitralista”. O seu pai e o seu tio eram excelentes “vitralistas” que acabaram por ter empresa própria e Zé Manel, consequentemente acabará por ocupar, em parte, o papel do pai nessa actividade. Era um trabalho, como a maior parte do referido anteriormente, encarado como uma obrigação laboral, feita com criatividade, mas distanciadamente, razão pela qual desconhece a relação e a localização geográfica das suas criações. Dos vitrais apenas se lembra que os que estão na Igreja do Santo Condestável, em Campo de Ourique. Dos outros não tem a mínima ideia para onde foram criados, porque essa parte da actividade era controlada pelo tio e posteriormente, pelo primo. O seu gozo criativo, a sua verdadeira paixão era a de ilustrador.
            A sua actividade de ilustrador de livros infantis e pedagógicos tem um lugar de relevo na sua produção e importância editorial. Marcaria várias gerações de crianças que tiveram a sorte de verem embelezadas com a poesia do seu traço, não só as histórias mas, principalmente, as “ingramáveis” matérias académicas que tinham outra leitura com a ajuda das suas ilustrações, e dos apelativos desenhos. Neste universo escolar, são dezenas os compêndios que ilustrou, mas que, apesar de terem o seu traço, a criatividade é controlada pelos outros: “Normalmente, nos livros escolares, os professores é que indicam o tipo de ilustração que querem. Fazem-se reuniões, onde se discute a paginação – e a editora também tem uma palavra a dizer -, e se acertam os pormenores para a feitura dos livros. Nós, os ilustradores, não somos cem por cento independentes, só o somos naqueles espaços em que actuamos como autores absolutos.
            Essa linguagem pedagógica, que o seu desenho transmitia, também foi explorada em livros como o “Manual do Bom Acolhimento” do LNEC, “Ler Melhor e Mais depressa” de Andre Conquet… Não nos podemos esquecer de capas para outros livros, como por exemplo “Rio de Diamante” de Geoffey Jenkins que traduzem a versatilidade estilística do seu traço, que se molda às encomendas.
            A década de sessenta será bastante produtiva nesses múltiplos sectores, mas mesmo com o desaparecimento de “A Parada da Paródia”, em 1962, e de “Os Ridículos”, em 1963, o desenho humorístico não desaparecerá da sua obra.
            António Gomes de Almeida, alma fundamental de “A Parada”, de imediato arranja substituto, pegando no projecto moribundo da revista “Bomba H”. Este mais não era que a compilação de trabalhos de artistas estrangeiros, adaptados e traduzidos para Portugal, tornando esta uma forma fácil de vender revistas com poucos custos, já que não se pagava direitos de autor, responsabilizando as capas e um ou outro raro desenho a artistas portugueses. Zé Manel, será muitas das vezes, responsável pela paginação e arranjo de capas.
            Outra revista do género, mas com maior presença nacional, e dirigida pelo ex-director de “Os Ridículos”, Aníbal Nazaré, é o “Brincalhão”. Neste espaço editorial, Zé Manel terá maior liberdade criativa, explorando maravilhosamente as cores, em capas apelativas. Apesar do preto e branco dominar a sua obra de imprensa, é um mestre colorista, prosseguidor da riqueza da paleta de seu pai que será posta à prova nestas magníficas capas.
            Eram capas chamativas que atraíam a atenção do público o que, mais uma vez, obrigou a direcção, no nº 5 de 1 de Novembro de 1965, a esclarecer os fãs da identidade do autor: “Aqui têm o responsável pelas Capas de “O Brincalhão” – Muitos leitores se nos têm dirigido, com significativos elogios para as capas da nossa revista e perguntando se é português o artista que as executa. É que, nos primeiros números, “Zé Manel”, o seu autor, colocou a sua assinatura muito em baixo e, ao serem aparadas as capas, o seu nome desaparecia…
            E tantos têm sido os leitores (a as leitoras…) a escreverem-nos sobre o «Zé Manel» (algumas leitoras até querem saber se ele é novo ou velho) que resolvemos pedir-lhe uma fotografia, para a publicarmos, apresentando-o, assim, aos nosso leitores e amigos. O «Zé Manel» que sim, mas nunca mais fez a foto. E nós resolvemos, sem cerimónia, fazer-lhe esta traição: apanhamos este boneco á mão, e aqui o têm. É solteiro, bom rapaz, moderno sem que isso lhe afecte as faculdades mentais, tem uma grande ternura por sua mãe para a qual também é tudo na vida e herdou de seu pai, o nosso saudoso amigo e esplêndido artista “Meco”, a arte de desenhar!
            Só lhe desejamos boa sorte e que, nas horas vagas continue a enviar-nos as suas esplêndidas capas, com as maravilhosas loiras com que tem presenteado os leitores de «O Brincalhão».”
            Esta aventura de “O Brincalhão” durou até 1966, na mesma altura que o mancebo José Manuel Domingues Alves Mendes assenta praça, ao serviço da nação, no R.I. 5 das Caldas da Rainha. Finda a recruta será destacado para o Regimento de Cavalaria 2 na Ajuda. Como cavaleiro defensor das damas, arauto das “Flausinas”, o Regimento para onde foi cumprir serviço não podia deixar de ser o dos “Lanceiros da Rainha”. Só que a vida de Zé Manel nunca foi linear, teve de ter sempre uma irreverência e, assim, apesar de estar nos Lanceiros, que era o Regimento da Polícia Militar, ele não estava incorporado na Polícia Militar, mas apenas como Furriel Miliciano de Engenharia destacado como encarregado da instrução automobilística aos outros militares. Cansado de aturar tanta burrice, de ver o fontanário da rotunda do Palácio e outros “monumentos” abalroados pela incompetência dos recrutas, antes que o enviassem a colocar uma lança em África, contactou o “Jornal do Exército”, na tentativa de ser transferido e ali ficar a dar à pena, disparando humor em vez de balas.
            Com o despoletar da guerra colonial e consequente envio de tropas para o ultramar, o “Jornal do Exército” foi alterando a sua imagem gráfica, introduzindo mais ilustração e, principalmente, desenhos de humor. Vários foram os desenhadores que por ali passaram, uns com mais jeito, outros bastante amadores, e quando Zé Manel se apresenta com o seu portfolio, de imediato foi requisitado, completando o resto do serviço militar nessa actividade de animação psicológica dos militares.
             Foi uma etapa importante na sua vida, ainda hoje recordada e elogiada por todos aqueles que liam o jornal e, ainda mais, pelos que sofreram as agruras da distância das comissões ultramarinas, e os terrores da guerra. Como ele dirá, em entrevista de 2002 – “onde penso ter sido mais útil, foi quando fiz a página de humor no “Jornal do Exército”, na altura da Guerra do Ultramar. Sabia que aqueles bonecos iam fazer rir os meus amigos e toda a rapaziada que estava no mato, na guerra em Angola, Guiné e Moçambique. Sentia que uma garota bem desenhada, uma piada brejeira ia aliviar variadíssimas tensões de quem estava lá longe. Esse terá sido o público que mais estimei.”
           
E terá sido também o público que mais o estimou e que não se esquece. Este trabalho de guerra psicológica era tão importante que, mesmo pisando o risco, nenhum superior teve a coragem de censurar qualquer desenho ou de o castigar. É certo que, mais de uma vez, foi chamado à atenção, mas apenas por duas vezes essa questão foi mais grave. Uma delas, a culpa nem foi sua, mas sim do paginador que no interior reproduziu a capa, ao lado da foto do Bispo Castrense e da sua mensagem de Natal, posicionando o rabo da garota em direcção à cara do Bispo. Numa outra vez, foi mais grave porque começou a “brincar” também com as altas patentes, já que no humor não há “vacas sagradas” e aí foi convocado ao Ministro do Exército que, nessa altura, era José Manuel Bettencourt Rodrigues (1968 / 70). Zé Manel lá se deslocou ao Ministério, naturalmente aterrado. Quando lá chegou, o Ministro mandou sair o pessoal todo da sala do seu gabinete, e a sós deu-lhe uma palmada nas costas comentando: “Isto é giro, isto é giro… mas não abuses!!!” Ele tinha consciência da importância do humor naquele momento.
            É uma colaboração que perdurará mesmo após o fim da comissão de serviço, ou seja, de 1967 até 1983 e que, naturalmente como gráfico da revista, não se resume só ao humor com pitada erótica ou ao humor militar, já que as duas vertentes misturam-se muitas das vezes, mas também a ilustração poética, à vinheta decorativa e capas. São centenas de trabalhos que só por si mereceriam a reunião num álbum retrospectivo.
            Entretanto, a sua actividade civil continuou a existir paralelamente noutras publicações, nomeadamente na “Rádio & Televisão” de 1966 a 71 com a série “Plof!”. Neste território editorial, o comentador social vai transformar-se em comentador televisivo. É uma nova faceta do seu trabalho onde a caricatura vem enriquecer o universo da sua ilustração irónica. Zé Manel nunca se assumirá como caricaturista, apesar de, na época, o conceito “caricatura” abarcar toda a obra gráfica com irreverência para a imprensa. Agora, referimo-nos à caricatura no estrito senso, como “retrato-charge”, essa difícil arte que nem todo o humorista gráfico domina. Como bom humorista, depressivo, Zé Manel queixa-se da sua “falta de jeito” para a caricatura, mas a obra mostra que, pelo contrário, ele é um excepcional caricaturista. Talvez a concepção dessa obras lhe dêem mais trabalho, que não seja tão imediata na mão, como o espírito, a graça que lhe é espontânea nos subterfúgios do humor.
            Analisando retrospectivamente esses milhares de desenhos criados ao longo dos anos, a caricatura acaba por ter um peso importante, mesmo aceitando o seu eterno queixume de que é muito preguiçoso, o tal defeito que o tem impedido de criar uma “obra”, essa utopia que todo o artista sonha, e persegue, desvalorizando a obra concretizada. Conversando sobre como se desenrola o seu sistema de trabalho, ele confessa que os momentos de maior prazer são os da maturação da ideia, da concepção abstracta: “O que gosto mais é quando estou a criar, a explorar mentalmente a ideia e a forma certa de a concretizar. Depois, a passagem para o papel é o mais complicado, angustioso, já que um pequeno tracinho, a mais, pode estragar tudo, destruir a ideia, a comunicação irreverente.
            Referíamo-nos à sua arte de caricaturista que se vai desenvolvendo nos excelentes trabalhos do “R&T”, crónicas gráficas que nos dão, ainda hoje, um extraordinário retrato do que se passava naqueles meios de comunicação e da sociedade da época.
            Outra particularidade destas criações, é a multi-informação, a exploração do “multi-gags” dentro da mesma prancha, o que o obriga a uma quase narrativa gráfica, uma pré-estrutura de banda-desenhada, género que Zé Manel ainda não explorava. Um excelente exercício que dará em breve bons frutos.
            Não nos podemos esquecer de referir, neste período, outras colaborações de ilustração em periódicos como “Pisca-Pisca”, “O Emigrante, “Jornal da Costa do Sol”, “Diário de Lisboa”, “Oui Magazine”…
            A sensualidade feminina, navegada nas ondas corporais, nos trocadilhos castiços, no erotismo, insinua-se constantemente, seja em que temática for e em que género artístico aborde. Mas, há momentos em que assume especial relevo quando faz erotismo pelo erotismo, com ou sem humor por humor. É nesta linha erótico-humorística que se enquadra o contacto que resolveu fazer, no inicio da década de setenta, com a revista americana “Playboy”. Mais uma vez, os editores ficaram rendidos pelo extraordinário trabalho deste mestre do desenho e do humor aceitando, de imediato, esta colaboração do pequeno e longínquo Portugal. Assim o encontramos como artista internacional a colaborar com a revista “Oui Magazine”, uma das publicações do grupo editorial “Playboy”. A colaboração acabou por não se prolongar muito no tempo, não por falta de interesse dos editores mas por desleixo e preguiça de enviar atempadamente as colaborações, já que estava envolvido noutros projectos nacionais, sujeito a pressões mais próximas no cumprimento de prazos, na colaboração de novos desafios…
            Entretanto, tinha-se verificado a Revolução de Abril, o derrube da ditadura, a explosão da liberdade e da política, e mesmo que não se quisesse, entrava em todos os poros do quotidiano, na vida das pessoas. Dos simples gestos às grandes decisões, tudo passou a ser político. É um período muito turbulento de criatividade, de lutas e confrontos, de discussão de ideias e fundamentalismos exacerbados. Neste ciclone de pensamentos e acções, vamos encontrar um Zé Manel bastante activo. Em 1975 a editora “Estaminé” publica o seu único álbum pessoal de desenhos de humor – “In Politiquices” como terceiro livro na colecção “Humor Fabricado em Portugal”. Os anteriores álbuns com trabalhos de Zé Manel foram em parceria com outros desenhadores (“Patilhas e Ventoinhas” - 1962) ou uma miscelânea de fotografias e textos de António Gomes de Almeida com desenhos seus - “Manual da Má-língua”, em 1972.
            Este “Manual” é uma dissertação sobre a Língua, Linguado e outras linguices humorísticas onde a história da “Língua Borralheira” poderá ser encarada como uma BD desenvolvida por várias páginas. Esta estrutura de narrativa gráfica espraiada, também será utilizada no álbum “In Politiquices”, um verdadeiro manifesto da paisagem sócio-politica que se vivia nesses anos pós-revolução. Nesse mesmo ano, de 1975, acompanha AGA na edição do livro “Salazarentos”, ao realizar a capa.
            Por detrás da editora “Estamine” está Hélder Martins, um dos companheiros que se reunia à volta da “tabula redonda” da “Parada da Paródia” e que também tinha o bichinho do humor e da imprensa, genes herdado do seu tio, o grande mestre João Martins (ou Mart). Enlevado pela explosão da liberdade e da proliferação de aventuras gráficas, lança também o seu projecto jornalístico que baptizou de “Chucha - a única publicação humorística identificada com a via chuchalista. Conseguiu sobreviver 16 números. Naturalmente, o Zé Manel está entre os “chuchalistas”, ao lado dos outros “parodistas”. Da mesma forma responderá a outros apelos de António Gomes de Almeida (que também acabaria por assumir a chefia da redacção de “A Chucha”) nas tentativas goradas de desenvolver outros títulos humorísticos como “O Cágado” (4 números), “A Laracha” (1 número), “O Macaco” (nº O)… São aventuras efémeras, não só pelo ambiente que se vivia na proliferação de projectos editoriais que se sobrepunham e se devoravam na luta por um público, no restrito mercado luso, como também pelo ambiente fundamentalista em que a sociedade, depois de décadas de apatia, se afundou. O quotidiano passou a ser dominado pelos milhões de certezas e vias únicas individuais, que se subdividia em múltiplos guetos ideológicos, sociais, clubisticos… e em que o sentido de humor esbarrava no autismo filosófico ou que apenas deixava espaço na afirmação das suas certezas, sem dúvidas metódicas. Neste ambiente, o humor crítico conquista as intolerâncias várias, salvo se enveredasse pelo panfletarismo, ou pela comicidade grosseira defensora do subjectivismo do pensamento sectário do grupo. Foram tempos em que existiram todas as cores, todos os matizes da comicidade, dos estilos gráficos, da criatividade irreverente, mas em grupos tão pequenos que a maioria tinha sustentabilidade editorial.
            A política é “porca”, assim como é sedutora, cheia de curvas e refegos na mente maquiavélica, universo que tem semelhanças com o mundo do erotismo, em que os extremos terminam ambos na pornografia, na prostituição. O amancebamento da política com Eros é uma união que se pode considerar natural, mesmo profícua. Zé Manel previu esse bom relacionamento e conseguiu explorar esta simbiose, como poucos. Não se deixou escorregar para os extremismos libidinosos, à semelhança de outros criadores dramatúrgicos, ou humorísticos, estonteados pelos ares hiper-oxigenados da nova liberdade, da nova anarquia. A elegância de pensamento sempre acompanhou a elegância de traço na obra de Zé Manel.
            Esta postura de distanciamento objectivo-humorístico seria interpretado por certas facções como retrógrada, conservadora, mas basta olhar para a obra publicada, para cada um tomar consciência da importância da intervenção cartunistica de Zé Manel, nestes anos quentes. Analisando toda essa criação política, a mais prolífera em toda a carreira cartunistica do nosso artista, descobrimos a melhor, a mais brilhante crónica desenhada que foi publicada na segunda metade da década de setenta e década de oitenta, de uma sagacidade impressionante na análise do quotidiano. Bastavam esses trabalhos para ganhar o epíteto de um dos melhores cartunistas, políticos e não só, do século XX.
          
  Neste trajecto, em democracia irónica, destacam-se três periódicos: “A Chucha”, “O País” e o “Diário de Notícias”. O primeiro foi uma breve viagem em 16 “capítulos” mais sensuais que políticos, servindo de intróito a esta nova etapa da sua carreira mais politizada. Em “A Chucha”, para além dos delicados cartunes erótico-satíricos, de destacar, pela originalidade e pertinência, a edição de um jogo político – “O POLITicubo ou Viracasacas” que foi apresentado, desta forma, aos leitores: “A nossa oferta neste nosso primeiro Natal é o POLITcubo um brinquedo para adultos, e não só, que com as nossas indicações o leitor poderá armar e sorrir com as hipóteses de trocas de cabeças, corpos e pernas das figuras políticas que apresentamos (Álvaro Cunhal do PCP, Mário Soares do PS, Arnaldo de Matos do MRPP, Isabel do Carmo PRO-BR, Sá Carneiro do PPD e Galvão de Melo do CDS). É fácil. Vamos primeiro armar três cubos em cartolina com a medida… /…/ Terá de para sua facilidade montar num cubo só cabeças, noutro só corpos e no terceiro só pernas. Que tal? É divertido não é? Não. Não conseguiu. Então se já viu do que se trata e se achou piada vá à Tabacaria mais próxima e compre um “Politicubo” custa só 50$00. Nós quisemos que poupasse. Você é que não quis.” E assim se “brincava” com os políticos, os partidos, com as variantes pseudo-ideológicas na viragem de casacas. Se isso é verdade, em muitos políticos e personalidades da praça, por acaso as individualidades caricaturadas neste jogo eram todas de convicções fortes e pouco dadas a vira-casacas, mas que as havia, havia e há. O trabalho não vem assinado mas, de imediato, se identifica o traço caricatural como sendo do Zé Manel.
            A caricatura pessoal vai proliferar nesta fase, destacando-se outra rubrica lúdica, agora no jornal “O País”. É um concurso – “Figuras & Figurões” em que o leitor tem de recortar as caricaturas publicadas, completar a frase e colar na caderneta de cromos. Em cada dia saia a caricatura de uma personalidade do momento, acompanhada por um poema incompleto. Ao leitor é proposto completar o texto de forma a dar a identidade à “vítima”, completar a caderneta e, depois disto tudo concluído, ir à redacção para que seja inspeccionada e atribuído um número para o sorteio. Em jogo estava um carro, uma viagem a Roma e muitos electrodomésticos… São 36 caricaturas que nos oferecem o mais importante “álbum das glórias” da revolução e do PREC, muitos deles hoje esquecidos.
            Outra rubrica gráfico-satirica que merece especial destaque na paisagem cartunistica da época, desenvolvida por Zé Manel, em “O País”, é a “Ingénua Maria”. Aqui, o Eros impõe-se magistralmente como veículo alegórico da sátira política, a inocência em contraponto com o maquiavelismo. A par da outra “Maria” oitocentista, companheira do Zé Povinho bordaliano que procurou pôr os “pontos nos ii”, entra no reduzido painel das heroínas iconográficas da caricatura satírica portuguesa. Infelizmente, também esta Maria terá poucas aparições (mais que as de Fátima), já que o número de obras enquadradas nesta rubrica acabou por ser reduzido, ficando a exploração deste filão muito aquém do que poderia ter sido realizado. Entretanto, outros trabalhos, outras fórmulas se impunham.
            O desenho satírico mais tradicional, que tinha derivado, por força das pressões censórias para uma via mais anedótica, com a dita “primavera marcelista” e, numa aposta de artistas como João Abel Manta, procurou recuperar a dignidade mais interventiva e satírica. Para se distanciar dos “bonecos” humorísticos procurou substituir o conceito “caricatura”, termo dominante por influência francófona, pelo conceito de “cartoon” do âmbito anglófono. Caricatura, no âmbito genérico, ou cartoon, a estrutura em recuperação da sátira politica é a mesma já usada por Raphael Bordallo Pinheiro. É este sistemaidêntico que será explorado pela maioria dos “cartunistas” que despontam de todos os recantos da liberdade, e será essa estrutura que irá dominar os trabalhos desenvolvidos por Zé Manel para “O País” e para o “Diário de Notícias, jornal com o qual, entretanto, começou a colaborar.
            Zé Manel não será apenas um utilizador da estrutura básica da caricatura satírico-política, mas um restaurador da riqueza irónica bordaliana, na transgressão humorística através da elaboração de alegorias, metáforas ou hipérboles cómicas, num contributo significativo para a remodelação, recriação do cartune contemporâneo.
            É um trabalho analítico incisivo, pertinente que ilustra devidamente o quotidiano político, privilegiando a ironia democrática, em detrimento da sátira panfletária. Mas, mesmo assim, e, apesar da instauração da dita “liberdade de expressão”, teve problemas censórios, tal como outros colegas. Já não é uma censura aberta e oficial, mas sim o peso das influências dos políticos, dos financeiros, dos poderes múltiplos, dos jogos de pressão de “personagens” incomodadas na sua consciência, no seu narcisismo e orgulho, acima de qualquer opinião contrária.
           
Esta fase de caricatura política na carreira acabou por ocupar onze anos da sua vida, até que cansado da obrigatoriedade do desenvolvimento de pensamentos humorísticos, também maquiavélicos, na mesma corrente filosófica da vida política, resolve cortar com esse ambiente doentio e regressar a uma atmosfera mais equilibrada, ecológica, ao humor pela prazer da vida: “Estava cansado de desenhar sempre as mesmas caras, porque por muito que parecesse haver constantes mudanças políticas, eram sempre os mesmos nessa roda eterna, no tabuleiro do jogo político. Até as situações, os erros são sempre os mesmos, obrigando-nos a explorar até á exaustão formas diferentes de criticar o mesmo. Os actuais cartunistas acabam por ainda estarem a repetir esses mesmos temas políticos e governativos, com algumas caras diferentes. Mas reconheço que hoje talvez tenha algumas saudades de fazer cartune político, apesar de ser uma actividade fatigante”.
            Abandona a política, dos políticos, mas não a imprensa e a ironia social. É também de salvaguardar que, apesar de toda esta colaboração jornalística, não abandonou as outras actividades profissionais mais rentáveis, como a de vitralista, “designer” gráfico, ilustrador de livros infantis e pedagógicos, assim como, a cumplicidade, menos rendosa, ou gratuita, noutras publicações humorísticas, sempre numa postura de independente, porque nunca gostou “de ter ninguém como patrão, nem ser patrão de ninguém” (in “A Chucha”, nº14 de 1/4/1976). Nesta introspecção filosófico-vivencial não se referia à questão de ser “patrão” em casa, ou recusar-se a ter uma “patroa”. Este lugar viria a ser ocupado por Isabel, a qual, lhe daria as duas principais obras-primas, principalmente, quando se portam bem, quer dizer a seu gosto, de toda a sua criação - Gonçalo e Duarte.
            Prosseguindo, após este interlúdio caseiro. De realçar a colaboração, como bandadesenhista, na revista “Fungagá da Bicharada” (1976), órgão oficial do programa televisivo homónimo, coordenado por Júlio Isidro que seria também, por vezes, o argumentista. Aqui, pontuaram vários desenhadores ilustres da BD, como Victor Mesquita, José Antunes, Catherine Labey, Artur Correia, José Garcês, Ricardo Neto, Fernando Relvas, Vitor Milheirão, Pedro Massano, Nuno Amorim… mas o único que manteve colaboração regular foi o Zé Manel, com o seu primeiro herói da BD, o “Fungaguinhas” que, como sempre, será o encanto da criançada. Passado pouco tempo, ou seja, em 1980, lança-se numa nova aventura bedéfila, ao publicar a história dos “7 Magníficos Pretendentes”, uma paródia ao “far-west” político num desdobrável de oito pranchas.
            Depois da caricatura (retrato-charge) é a vez da BD entrar, com alguma força, na sua actividade gráfica. Como profissão? Claro que não, primeiro porque “não «posso» fazer bandas desenhadas longas já que me custa ser repetitivo, razão pela qual desisti de ser cenarista na “Telecine”. A mesma personagem, ao desenrolar do trabalho, tem tendência a ficar diferente da primeira para a última prancha se ultrapassar as quatro, cinco pranchas. Por isso, sempre preferi desenvolver histórias curtas, de uma só prancha, no máximo até meia dúzia”. E quando se procura ser bandadesenhista humorístico, as longas histórias complicam a vida do argumentista. Mas como por detrás de cada verdade, há excepções escondidas nas curvas sensuais da vida, sabemos, por portas travessas, que há uma história erótica de 48 pranchas na gaveta, à espera de coragem para a apresentar a um editor.
            Para mim, o traço nunca está como o idealizei e toda a minha vida tem sido a procura do meu traço. Sinto necessidade de procurar esse traço genuíno e dedicar-me a ele, trabalha-lo, desenvolvê-lo. Por exemplo quando ilustro livros, pedagógicos ou infantis, dá jeito variar o traço, para que os desenhos não sejam iguais de livro para livro e cansar os miúdos. Por tudo isso acabo por ter de estar sempre a mudar de traço, a variar.” A eterna insatisfação e a constante pesquisa são apanágios do verdadeiro artista. Observando globalmente a sua obra, vamos encontrar, naturalmente, nos diferentes géneros, ou até nos mesmos, traços diversificados e variantes estéticas. Contudo, por muitas diferenças que o autor queira introduzir, há sempre a assinatura, sub-reptícia da alma artística, inconfundível, do Zé Manel.
            O espaço bedéfilo na obra do nosso criador será maioritariamente de borlas, criações por amizade. Geraldes Lino, outro irrequieto e incansável dinamizador / produtor, acabará por ser o maior “crava” mas, ao mesmo tempo, o maior culpado por haver uma obra bedéfila mais significativa no portfólio do Zé Manel. Esses trabalhos foram “encomendados” para os fanzines “Eros”, “Tertúlia BDzine” ou outras aventuras editoriais mais “profissionais”, como as obras colectivas “Novas 'fitas' de Juca & Zeca” e pastiches aos heróis da BD no séc. XXI, um super-fanzine (tamanho A3) de “Efemérides” – “Little Nemo”, “Príncipe Valente”, “Super-homem”, “TinTim”… Sendo participações por prazer, o Eros sobressai nestas criações, apimentadas “qb”, com uma pitada de humorismo. Responderá também a outras encomendas como para o periódico “Mundo Universitário”, bem como outros desafios, nomeadamente, exposições e salões… mas essa será uma conversa para mais tarde.
            Borlas? Na “Chucha”, em 76, já se levantava essa questão que atribula a vida destes artistas gráficos: “- E gosta de desenhar só para ganhar? – Ah! Bem, mas eu não desenho só para ganhar, apenas o que ganho a desenhar, permite-me desenhar por desenhar, ou seja por prazer, sem ganhar… percebe? – Assim, assim… - Além disso há as borlas, os calotes, as colaborações atrasadas…”
Estávamos a reportar o súbito abandono do desenho político, por “motu próprio”, regressando à calma planície da comicidade por diversão, ao universo mais terra-a-terra do humorismo. Dizia ele que havia cansaço na vigilância política, no ter de estar constantemente actualizado nos jogos labirínticos do poder e apresentá-los como se fossem novos problemas da governação, sem acusar os políticos da sua eterna cegueira e autismo para a vida real, mantendo, ao mesmo tempo, o público interessado nas suas ironias, na sua crítica e opinião. É uma ginástica complicada, principalmente, quando não se tem total liberdade de expressão, quando não tem de se preocupar apenas com a censura oficial, mas preocupar-se com as censuras ocultas, com os medos dos editores…
É difícil fazer humor? “Fazê-lo não, porque ele nos rodeia por todos os lados do dia-a-dia… Basta ter olho, e caçá-lo! E apresentá-lo com novas roupagens que continue a surpreender o leitor.” O humor é uma comicidade filosófica mas, nem sempre, é necessário extremar o trabalho intelectual, porque o papel de descompressor das tensões sociais e de divertir é também a sua função. Há momentos para tudo, pensar e descontrair, respirar e observar a vida com comicidade. “Como há frases feitas, também existem ideias feitas e o desenho pode explorar essas situações, sem intenção crítica, meramente humorísticos e divertidos. Não podemos estar sempre a pensar na mensagem social e a querermos endireitar o mundo com um desenho. Às vezes, importa fazer um trabalho solto, livre, bem disposto, sem pensar em segundas ou terceiras intenções para alegrar a vida”.
“Estava cansado de desenhar sempre as mesmas questões políticas, por isso desisti e dentro do mesmo jornal, o “Diário de Notícias” passei a ilustrar crónicas sobre comida. Foram tempos muito mais divertidos.”
A mesa sempre foi um espaço privilegiado na vida de Zé Manel, fosse ela a mesa de café, de restaurante ou na casa de amigos, porque o convívio tertuliano, à volta de Natalino Melchiades, do ex-grupo da “Parada da Paródia”, dos ex-alunos da António Arroio, Tertúlias BD no Parque Mayer, jantares com Dinis Abreu (responsável também por encomendas para múltiplos projectos editoriais)… foi sempre muito importante. É uma roda-viva de cumplicidades e fonte de inspiração, como quebra da monotonia do estirador, para sentir o pulsar das realidades comentadas pelos confrades. Zé Manel é um bom conviva, cheio de humor e espírito, depressivo e optimista, conversador e magnífico ouvinte que depois sintetiza tudo em projectos gráficos. Quase todo o seu trabalho acabou por vir de convites, não de propostas suas.
No “Diário de Notícias” prosseguirá na caricatura, retratando personalidades da sociedade à mesa, enquadrando com humor o retrato com a ambiência profissional ou os gostos gastronómicos. Dentro desta linha de “homenagens” caricaturais estão os excepcionais “monumentos” que criou, paralelamente, para a revista “TVGuia”, num regresso momentâneo à crónica televisiva. Se no “DN” brilha o traço a preto e branco, na “TVGuia” resplandece, para além da mestria carico-ironista, o domínio das cores e sombreados.
O humor ”à mesa” não se restringe ao retrato-charge, mas também à ilustração cómica de crónicas sobre produtos gastronómicos, embelezando, com a sua elegância, os textos mais técnicos ou informativos. Nessa linha, como divertimento, temos também as colaborações para as revistas “Pão com Manteiga”, “Meios” ou para o jornal desportivo “Record”.
Na revista “Meios”, porta-voz da Associação Portuguesa de Imprensa, desenvolveu-se uma situação curiosa, ou seja, fazer humor “em casa”, com introspecções sobre as vivências da própria profissão jornalística, das dificuldades sofridas nas redacções, nas cumplicidades com os colegas de comunicação e todos os imbróglios e “divertimenti” possíveis à volta da escrita jornalística. Sendo humor pelo humor, são observações psicanalíticas, risos amargos sobre a realidade de uma profissão em alto risco de sobrevivência deontológica.
Jogando entre esse papel psicanalítico e o de pura diversão, são as centenas de trabalhos criados para o “Record”. Não sendo um especialista em desporto e trabalhando para um ringue escorregadio, cheio de susceptibilidades, fundamentalismos clubísticos, Zé Manel, vagando entre as várias correntes desportivas e surfando nas ondas feminis da ironia, conseguiu desenvolver uma linha erótico-desportiva, desculpem erótico-humorística, de grande impacto jornalístico, e de grande impacto nos leitores. Não há modalidade que não tenha caído sob o seu olhar travesso, que não tenha merecido um sorriso de cumplicidade. Do trocadilho à ironia desportiva, encontramos um excepcional olhar sobre as modalidades, entrecortadas com alguma sátira social.
Não é fácil compilar toda a obra deste preguiçoso hiper-activo criador porque, a lista de títulos onde colaborou surpreende-nos constantemente. Já nos esquecíamos das suas colaborações para o “DN Magazine”, para o “Bronkit”, Suplemento Humorístico do jornal Lousanense “Trevim”, para o “Magazine Regisconta”…
O sempre inventivo António Gomes de Almeida, que também era Director Comercial da Regisconta, publicava na revista da empresa, da qual também era Director, uma página de humor gráfico, numa vertente irreverente de “marketing”. Por aqui passaram vários dos humoristas do grupo da “Parada”, acabando também por o próprio Zé Manel integrar a lista de colaboradores da “Magazine Regisconta”. Estas colaborações serão reunidas, retrospectivamente, em 2004, no álbum colectivo “Regisconta Meu Humor”.
Como a colaboração dos cartunistas que nunca pertencem ao quadro redactorial, alienígenas da imprensa, não é uma rubrica obrigatória na mesma, assistimos a um branqueamento desse espaço crítico, sobrevivendo apenas a intervenção de ilustradores, de preferência sem humor. Infelizmente para a democracia, para a saúde mental da sociedade, essas contratações estão dependentes de indivíduos com falta de humor, dos temerosos chefes de redacção, empertigados editores e gestores. Há cada vez menos espaço para o cartunismo, principalmente, se for irreverente e satírico. Por outro lado, pelas vicissitudes do “marketing” pouco receptivo ao humor desenhado, à falta de publicidade na imprensa da especialidade humorística, esses géneros editoriais estão também desaparecidos em parte incerta.
Neste momento, Zé Manel não trabalha para nenhum periódico, como muitos outros humoristas gráficos da nossa praça, contentando-se com os desafios editoriais.
Para além do “Regisconta Meu Humor” e dos álbuns já referenciados anteriormente, há que mencionar trabalhos mais recentes como o de ilustrador de textos de AGA e editados sob os seguintes títulos: “A História e as Histórias de Santiago do Cacém ou as décimas do Ti Manel”, “Os Maias – Uma análise Ilustrada”, “Como era antes de haver” (reeditado também no Brasil)… para além de outros projectos já desenhados, ou esboçados, mas que se conservam na gaveta à espera de oportunidade editorial. Na realidade, o “preguiçoso” artista tem gavetas cheias de projectos, e sonhos por concluir, não por sua culpa…
No mercado livreiro há muitos mais títulos que se reportam a trabalhos editados desde os anos sessenta, como ilustrador de livros escolares e, mais importante, de livros infantis dos quais poderemos referenciar alguns desses títulos, como por exemplo: “O Rei Mágico e outros contos de Fadas” da Verbo; da escritora Maria Amália Vale, os livros “Aventuras da Linda do Sonhador e do Vaidoso”, “O Baptizado da Coelhinha” ou “Há Festa na Floresta”, “A Formiga Ambiciosa e outros contos” “A Esperteza da Pintadinha”; da escritora Soledade Martinho Costa “Um-dó-li-tá”, “Vamos Adivinhar”, “As mais famosas Fábulas” I e II, entre outros; já da escritora Luísa Ducla Soares, Zé Manel ilustrou títulos como 2º soldado João” e “A História da Papoila”; da escritora Renata Gil poderemos referenciar “No Reino dél-rei medricas” ou as “Aventuras do Cavaleiro da Linda Figura”; de Maria Lúcio Namorado, o livro “A História de um Bago de Milho”; de Mutea Bpboca “Histórias do Pingo de Chuva” e de Eurico Baptista “O Julgamento do Cuco” entre muitos outros. Em 1998, a Exposição Internacional de Osaka encomenda ilustrações para o livro infantil “Os Burros, as Flores e o Sol”. Desse mesmo ano são as encomendas do Instituto Cultural de Macau para o livro “As 8 cartas de Macau” de Célia Veiga de Oliveira e Ana Cristina Alves, e do Governo de Macau para o álbum gráfico “Macau a Tinta da China” com textos de Diniz de Abreu”. Este último trabalho merece um destaque especialíssimo pela sua extraordinária qualidade e por ser responsável por um reencontro estético do artista consigo próprio.
Esta viagem pelo sol nascente que se concretizou numa polifonia de linhas e cores, harmonizada pela delicadeza dos sentidos estéticos de Zé Manel, é o encontro entre dois universos comunicantes que se iniciou, casualmente, por culpa de uma digressão do Coro Gulbenkian a Macau. Aproveitando a organização da viagem, o melómano José Manuel, que não é coralista nem pertence à Gulbenkian, acabou por acompanhar o grupo. Para Zé Manel, artista, foi o confronto com um mundo que já existia na sua alma, pois na sua corrente estilística raiavam há muito, inconscientemente, tendências orientalistas, na singeleza do pincel, na delicadeza de traço e na leveza da paleta. Zé Manel diz que se apaixonou pelo oriente mas, o que aconteceu foi uma comunhão estética, uma redescoberta de si mesmo, para não afirmar que, finalmente, se apaixonou por si próprio, pela sua arte. Enlevado por esta onda mística do encontro oriente / ocidente, para além destas obras-primas publicadas em álbum, há todos os outros trabalhos pictóricos, como uma série de serigrafias ou a série temática “borboletas” e outras telas.
A pintura é outra técnica explorada casualmente, e reduzida no número, mais como resposta a pedido de amigos para participações em exposições colectivas, mas que, pela qualidade dos trabalhos, se impõem como referência.
O universo das exposições é um espaço que entrou no seu mundo vivencial, em 1978, quando participa no Estoril, no 2º Salão Luso-Espanhol de Desenho de Imprensa. Em 1983, participa no 1º (e único) Salão de Caricatura Francisco Valença organizado por “A Voz de Paço d’Arcos”, periódico onde também colabora pontualmente com desenhos e pinturas para as suas exposições colectivas. Artista de grande generosidade, está sempre pronto a colaborar, a participar na revista da “Água”, revista da “Sata”, para a Polícia Judiciária com um calendário especial… e muitas outras colaborações dispersas, como nos convites lançados pela Humorgrafe, participando assim em exposições como: “Da Paródia à Parada” (Casa do Humor – Museu Bordalo Pinheiro 1989); “Humor em Lisboa” (Padrão dos Descobrimentos – 1991); “Humor nos Descobrimentos” (Padrão dos Descobrimentos Lisboa, Mértola, Monsaraz e Leiria - 1992); “São Carlos - Humor e Música – 2º Centenário” (Teatro Nacional de S. Carlos – Lisboa 1993); “Paródia & Pastiche” (Lisboa Capital Europeia da Cultura 1994 – Convento dos Cardaes); “Encontro Ibero-Americano da Cultura Humorística” (Lx/94 Capital Ibero-americana da Cultura – Padrão dos Descobrimentos); “Portugalska Karikatura – Humor Contemporâneo Português” (Museu de Arte Contemporânea de Zagreb – Croácia 1994);  “Tolerâncias e Intolerâncias da Humanidade” (1995 - Fund. Marquês de Pombal – Oeiras, Lousã, Leiria, Tomar, Pedrógão, Marinha Grande, Ourense – Espanha e Copenhaga - Dinamarca); “Mário Soares - 20 Anos de Democracia Satírica” (Palácio de Belém – Lisboa, Leal Senado de Macau 1995); “Iconografias da Sátira Contemporânea” (Fórum Picoas – Lisboa 1996); “Humor e Saúde” (Hospital S. Francisco Xavier – Lisboa 1996); “Comunicar com Humor” (Museu da Imprensa no Porto – 1997); “150 Anos da Caricatura em Portugal” (Museu da Imprensa no Porto, Museu Amadeo de Sousa Cardoso de Amarante, Museu Arqueológico de Silves, Feira de S. Mateus – Viseu, Monsaraz, Palácio Valença em Sintra, Gal. Municipal de Vila Real, Museu Rafael Bordalo Pinheiro de Lisboa 1997); “Humor e Desporto” (EuroFitness – Lisboa 1997); “Água no Humor” (Museu da Água – Lisboa 1997); “A Censura na Iconografia e na Caricatura Portuguesa (Museu da República e Resistência – Lisboa - 1997, Faculdade de Comunicação – Universidade de S. Paulo Brasil 2011); “Abril no Humor” (Oeiras, 1998); “Humor na Arte do Dinheiro” (Gal. Verney – Oeiras 1999); “Caricaturistas por Timor” (Parque das Nações – Lisboa 1999 e Ourense – Espanha 2000); ”O Achamento” (Seixal 2000); “Humores ao Fado e à Guitarra” (Casa do Fado e da Guitarra Portuguesa – Lisboa 2000); “Caricaturartes – 2- Fest. Int. de Caricatura – Seixal 2001”; “Humor Contemporâneo Português” (Museu de Humor de Fene – Espanha 2001); “Figuras da Cultura Portuguesa” (VI Bienal da Caricatura Ourense – 2002); “Festa Internacional da Caricatura” (Lousã 2002); “Rock in Caricatura” (Lousã 2002); “Humor Negro” (MouraBD 2002); ”Eros no Humor” (FIBDA 2003); “A Luta doa Trabalhadores (pelo humor)” (Festa do Avante – Amora 2004); “De Cervantes a Bordalo Pinheiro – Do sonho ao Sono” (Recreios da Amadora 2005); “O Trabalho” (Espinho e Ourense 2006); “007 Ordem para Humorar” (CNBDI Amadora 2007); “Nas Garras Felinas da Sátira” (MouraBD 2007); “Vozes Líricas do séc. XX” (Museu Nacional do Teatro – Lisboa 2010, Embaixada de Portugal em Brasília – Brasil 2010, Forte de S. Bruno – Caxias 2011); “As Caricaturas da 1ª República” (Espinho, Moura, Portalegre – 2010); “Exploração e Direitos dos Trabalhadores – Olho crítico a traço de Humor” (Lisboa, Moura, Marinha Grande, Paris, Aveiro, Vendas Novas, Mora…); “O Humor e a água” (SMAS – Sintra 2011); “Noites em S. Carlos” (Teatro Nac. S. Carlos – Lisboa 2012)… todas elas documentadas com catálogos.
Mudam-se os tempos, os costumes. Com o ocaso das edições de periódicos humorísticos, um pouco por todo o mundo, desenvolve-se um novo mercado de sobrevivência dos artistas, os concursos e os salões de humor, pelos cinco continentes. Há, neste momento, artistas internacionais que vivem basicamente dos prémios que vão conquistando aqui e ali, em todo o planeta.
            Zé Manel nunca foi de se aventurar muito além fronteiras, excluindo a breve (por sua culpa) colaboração na “Oui Magazine”, ou no Festival de Caricature de St. Espeve (França), onde foi galardoado com o “Lutin d’Argent”. Está representado no Museum Sammlung Karikaturen Cartoon de Basileia (Suíça) porque os responsáveis deslocaram-se a Portugal, onde adquiriram obras suas. Mas em Portugal está presente em quase todos os Salões organizados pela Humorgrafe como o Salão Livre de Humor Nacional (Porto de Mós e Oeiras), Salão Nacional Humor de Imprensa (Oeiras), Salão Luso-Galaico de Caricatura de Vila Real, I PortoCartoon (de 1998), Salão Int. Humor de Praia de Espinho (em 2000), Bienais de Humor Raiano de Idanha a Nova, Bienal de Humor Luiz d’Oliveira Guimarães – Penela… ou pelo Festival MouraBD. Pela sua excepcional qualidade de trabalho e humor, tem acumulado galardões como o Prémio Nacional Humor de Imprensa no XVII Salão Nacional Humor de Imprensa – Oeiras 2003; nos Salões Livres de Humor Nacional foi galardoado, em 1989, com o Prémio Região de Turismo de Leiria – Humor e os Descobrimentos, em 1990 - Prémio de Caricatura, em 91 - Prémio Humor e Ambiente, em 95 - Prémio Temático, em 96  - Prémio Temático, 98 – Grande Prémio do XI SLHN, 2000 – Grande Prémio do XIII SLHN e 2003 – Prémio de Humor; na Bienal de Humor Raiano de Idanha-a-Nova foi galardoado com o 1º Prémio da I Bienal (2002) e 3º Prémio (2004) da II Bienal; no Salão Luso-Galaico de Caricatura - Vila Real obteve o 3º Prémio em 2000; Menção Honrosa em 2001; 2º Prémio em 2002; 1º Prémio em 2004, Menção Honrosa em 2006 e 1º Prémio em 2011.
            Outro certame onde Zé Manel tem estado quase sempre presente e, convencido os júris, é o concurso de BD & Cartoon do Festival MouraBD onde já foi galardoado em 2003 (tema: o desporto), 2004 (Tema: Moura Salúquia), 2005 (Tema Livre). Esta cumplicidade com o município de Moura está complementada com a sua participação no álbum colectivo “Salúquia – A lenda de Moura em Banda Desenhada”
            Mas nem todos os galardões são conquistados através de concursos, porque há reconhecimentos públicos que se impõem. Uma homenagem, um prémio por carreira não é um sinal de fim, mas de alento para a continuação desse caminho glorioso, de apoio, para demonstrar que esse artista, por muito longa que seja já a sua carreira, não tem idade, não tem sinais de desfalecimento na irreverência, no prosseguimento na procura do traço, da originalidade.
            Tendo sido primeiro homenageado pelo Salão de Banda Desenhada da Sobreda da Caparica e pela Tertúlia BD  de Lisboa (Junho 1992), em 2003 foi distinguido com o Prémio AmadoraCartoon/03, integrado no XIV FIBDA, pela sua carreira de Humor Erótico, ao lado dos portugueses José Vilhena e Isabel Lobinho assim como do argentino Ermengol (da PlayBoy). Em 2011, de novo a Amadora homenageia-o, agora com a distinção máxima desse Festival – Prémio de Honra do XXII Festival Internacional de BD da Amadora – “Zé Pacóvio e Grilinho”. Agora, em 2013, é a vez do Festival Internacional MouraBD homenagea-lo com o “Balanito de Honra”, pela sua extraordinária carreira.
            Este momento, este olhar antológico sobre a sua obra é apenas um momento de reflexão do passado que nos inspira na continuidade de um futuro, onde a sensualidade do seu traço e o seu espírito filosófico de olhar a vida nas curvas da adversidade com um sorriso, se mantêm como uma promessa, independentemente das suas depressões de criador. Se o sorriso que é a sua marca de distinção, por vezes, desaparece do seu olhar humano, mantém-se na alma e na sensibilidade das suas intervenções, as quais são o antídoto que nos alivia o quotidiano com humor e diversão. Que esta homenagem seja um fortificante para o prosseguimento de uma longa vida a desenhar, a sensualizar, a humorar e a poetisar as nossas existências.
         
   “/…/ e lá se vai “humorando” enquanto não for criada uma sobretaxa sobre o sorriso. Quando tal acontecer, há-de arranjar-se um último boneco sobre isso!...” (in Catálogo 1978 Salão Luso-Espanhol do Estoril).


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