Tuesday, November 13, 2018
Manta 90/40 - exposição de João Abel Manta na Galeria Valbom
90 anos de vida / 40 anos de edição das "Caricaturas Portuguesas dos anos de Salazar" / João Abel Manta
JOÃO ABEL MANTA A TRAÇO GROSSO
Por: Osvaldo Macedo de Sousa
Tendo em conta que o artista
plástico JAM, pela sua obra prática intervencionou, ironizou, satirizo a
sociedade portuguesa a traço grosso, numa linha conceptual joãomantaniana, inconfundível e memorável, como iconografia de toda
uma época e de uma arte gráfica jornalística, a sua vida e obra já foi
construída com múltiplos traços e linhas estéticas numa opção humanística de
diversidade imaginativa, seja na matéria, função, ou no destinatário. Acima de
tudo, ele é um criador com um profundo sentido cívico e ético em que a
intervenção plástica não é uma simples diletância produtiva, mas um meio de
comunicação e introspecção pessoal e social, embuida pela estética.
Sendo JAM, apenas e sempre,
um artista plástico…
a) apesar do título de
arquitecto por formação académica, com obra feita, numa linha “funcionalista”,
reconhecida e pouco estudada (“Eu ainda
sou do tempo em que me sentava numa prancheta e fazia um projecto inteiro com
pormenores de armários, de cozinha e tudo. Agora não. E a arquitectura
ressente-se disso. /…/ Não há uma pormenorização, é tudo frio, desagradável”¨(+
Entrevista de Clara Botelho in Catalogo Amadora)
b) de designer de interiores
/exteriores e decorador por opção e encomendas no âmbito do urbanismo e da
arquitectura onde se pode destacar os vários painéis de azulejos em Luanda
(Hotel Presidente), Coimbra (Associação Académica), Lisboa (Av. Caloustre
Gulbenkian)… Calçada da Praça dos Restauradores em Lisboa, cartões de
tapeçaria, publicidade…
c) do epíteto de
“cartoonista” (designação que odeia apesar de ser o responsável da introdução
deste anglicismo no léxico da imprensa portuguesa) que realizou como dever
cívico para uma sociedade adormecida pela novas inquisições, necessitando por
essa razão de vozes discordantes e de alerta…
d) da designação de
ilustrador – artista gráfico (onde soube como poucos comungar a sua mão com a
alma dos outros autores ou com a obra/destino dele)
e) pintor por paixão e opção
estética
… esta exposição vai-se
concentrar mais uma vez nas suas facetas mais populares, precisamente as que
ele se recusa a admirar e admitir o seu génio numa timidez que é uma
característica que transborda em toda a sua vida.
Começamos a viagem pela obra
gráfica mais hermética e inspirada, onde a arquitectura se evidencia, não
apenas pela força do desenho, do pormenor levado ao mundo da miniatura, mas
também pela força cenográfica criada numa dramaturgia quase trágica para relevo
dos pontos fulcrais da ideia / mensagem.
Seja no cartaz do ICA ou nas
séries “Missionário”, “Um Caso para o Santo Ofício” ou “Shakespeareana” a
monumentalidade do desenho arquitectónico impõe-se, quase esmaga, realçando o
miniaturismo dos elementos fulcrais da obra, como reivindicação do triunfo do
desenho na obra plástica. São trabalhos que não se destinam a ser impressos na
comunicação social, podendo por isso o artista ser mais livre nas técnicas e
nos pormenores, rendilhados de ironia, magia e erotismo. Se a “Shakespeareana”
é uma interpretação dramatúrgica de momentos precisos de peças daquele autor
(não nos podemos esquecer que JAM também foi cenógrafo), não deixam de ter ou,
por isso mesmo, tem sub-repticiamente mensagens críticas, portadoras do sentimento
de revolta e resistência ao poder e à tragédia. Esse constante grito contra a
opressão, contra a falta de liberdade na sociedade portuguesa é muito mais
evidente nas séries “Um Caso para o Santo Ofício” (não nos podemos esquecer que
JAM sofreu com a perseguição de novos inquisidores e inclusive foi preso) e
“Missionários”. Para mim, este conjunto de obras, que podem ser ditas goyescas, dantianas,
pireodellafrancesquinianas, Boccacianas… são a sua mais profunda meditação
estética sobre função das artes figurativas do séc. XX português, em que a par
da mestria técnica, explora múltiplas vias estéticas de ismos entrecruzados com um alto poder de mensagem intrínseca à
comunicação que a obra de arte pode ter. De muitos estilos JAM bebeu,
regurgitou e recriou. Como ele defende, um artista para se construir, deve
escolher bons mestres, imita-los até à exaustão e então “pôr-lhes os cornos” e
criar a sua própria arte / estilo. Se assim o disse, assim o fez.
Quando passamos para os
“Desabafos” e demais obra gráfica, vamos reencontrar um pouco do desenhador de
imprensa que foi crescendo desde os anos cinquenta, em que a linha clara (dita
escola franco-belga), ligada ao traço caligráfico steinberguiana foi uma opção
de distanciamento ao traço bordalliano que sempre dominou os desenhadores da imprensa
nacional, apesar de algumas excepções modernistas. É neste período de finais da
década de sessenta / início de setenta que se vai consolidar o estilo de traço
grosso joaõmantaniano, barroco no desenho irónico, satírico na filosofia
humorística e onde o experimentalismo, por vezes surrealizante das composições,
fotomontagens cria um espaço único na história do desenho de intervenção na
imprensa. Nunca a estética teve tanto, ou mais, peso que a mensagem, sem perder
o equilíbrio e afogar a comunicação.
Apesar de podermos falar na
obra feita para o “Almanaque”, “Diário de Lisboa”, “Diário de Notícias”,
“Jornal de Letras” (onde criou as mais geniais capas de imprensa, para alem dos
retratos a carvão que são históricos), os “trabalhos para o Suplemento Humorístico
“A Mosca” (do “Diário de Lisboa”) são um grande grito de revolta contra uma
ditadura caduca, são um esgar na esperança de tempos novos, é o desabafo de um
artista plástico que quer fazer a sua obra e que a sociedade não deixa,
obrigando-o a continuar a ser um traço de intervenção, um gráfico mais
ideológico que plástico. Com a revolução de Abril, apesar de toda a felicidade
e cumplicidade com os novos ventos, essa postura de artista de intervenção não
se alterou, atento a todos os movimentos, a todos os deslizes. É uma fase de
exploração de diversidade conceptual no desenho, adaptando cada estilo para
cada momento, cada ideia, para cada meio de comunicação para que se destinava.
Entre o traço fino ao traço grosso, entre a síntese e o barroquismo estrutural
o pensamento adapta a arte do desenho ao objectivo final. Um ideia simples e
directa, contundente sem assustar o leitor.
Menos contundente e mais
humorístico? Mais irónico e menos filosófico? Mais caricatural e menos
arquitecto/pintor? Apesar de JAM considerar que o humor gráfico pode ajudar a
destruir maus regime mas pouco ajuda na construção de novos ele nunca
prescindiu, como muitos outros, que viviam deste trabalho, de ser um gráfico de
vanguarda, não só experimentando estruturas, mas também técnicas e opções
gráficas, mantendo contudo e sempre uma linguagem perceptível para o grande
público. Humorista, no conceito filosófico em que o sorriso nasce, não do gag, da anedota mas da obrigação de se
parar, ver bem o que está desenhado, pensar que não está dito e então
compreender e ser alertado com o sorriso JAM, quer queira quer não é um dos
maiores mestres da comunicação social dita humor gráfico, ou como
tradicionalmente - da caricatura, ou como JAM rebaptizou – do cartoon.
Contudo, o principal conceito
do Cartoon é o momento. Como escreveu o americano Marlette “o cartoonista é como o surfista, tem que
entrar no momento certo na onda (para que o publico perceba a que onde o
cartoonista se refere) assim como deve
sair no momento certo para não se esboroar na praia” (para que o assunto já
não esteja ultrapassado). Ora, a força de toda esta obra de um artista
plástico, cuidadoso com o desenho arquitectónico da construção, com a paleta
das cores fundamentais para o realce dos pormenores pictóricos, os traços
irónicos caricaturais para melhor evidenciarem a mensagem, está no pensamento
imediatista do momento da concepção, aliado a um subconsciente de memórias que
não quer que se esqueçam, não deixam de estes trabalhos envelhecerem e serem
sempre obras de grande beleza plástica, obras de profunda meditação social e
histórica. É certo que o álbum “Caricaturas Portuguesas dos Anos de Salazar”
foi criado numa espécie de retiro londrino, com o necessário distanciamento
para escrever estas memórias de um povo sofrido mas com alguns irreverentes
sempre prontos para a luta.
A especial força destes
trabalhos para além da arquitectura do desenho, das cores utilizadas, da
temática está na extraordinária exploração dos elementos iconográficos
identitários regionais, populares, do nacionalismo, do fascismo e opressão,
tudo orquestrado em sínteses de ironia e irreverência que nos dão um
extraordinário retrato desta nação à beira mar esparramada.
Pode JAM fazer 90 ou 100
anos, 40 ou 50 de obra feita, estas obras primas das artes portuguesas são
eternas como criação plástica de um pintor / arquitecto / ilustrador /
cartoonista, memória e alerta para um quotidiano que se pode repetir se não
estivermos atentos e conhecedores do passado.
Regressando à entrada, não
nos podemos esquecer que as tragédias Shakespereanas estão sempre actualizadas,
cada dia são inventados novos “Santos Ofícios” e que “missionários” da
desgraça, temos a política cheia. Quando olho para a obra de JAM, sinto como é
eterna a beleza na criatividade humana, como não devemos esquecer a importância
da cultura/artes na educação da sociedade (como testemunho, memória e
afirmação), como sou felizardo em ter conhecido tal criador, artista, ser
humano.