Monday, November 12, 2018

Exposição Humor de Miranda do Mental ao Metal no Museu da Misericórdia no Porto

 Antonio Miranda a ver a sua retrospectiva acompanhado com o curdador da exposição Costa Carvalho

 Discursos na inauguração. O segundo à esquerca é o filho do Miranda em sua representação já que por questões de saude o António Miranda não esteve presente






















(Toinho) MIRANDA: “Para tão longo humor tão curta a vida”.

Por: Osvaldo Macedo de Sousa

        Tenho o desprazer de não conhecer o António Luís Miranda de Sousa, o que, qual Tomé bíblico me levaria a duvidar da sua existência real, não fosse o prazer de disfrutar do seu humor irreal e assertivo, transformado traço de imprensa. Perante esta obra e, comungando um conselho “mirandês” - “O bom pescador abandona o seu cardume, para ir em busca da lagosta perdida” -, deixo de parte os aspectos gerais da sua vida, para tentar abordar as pequenas coisas, as básicas e essenciais, enfim para conhecer o artista. Com os farrapos noticiosos que consegui obter, procuro conhecer um tal humorista que desconheço e que se celebraria como Miranda.
        O que separa um “ego” da identidade e o que liga uma identidade à obra?
”Gostava de me ver como me vêem os outros, mas, infelizmente,
eu sou muito mais exigente – como logo se vê por esta mesma afirmação”.
        A questão é que os outros, ao longo dos anos, bem têm tentado vê-lo, para além das imagens impressas nos jornais mas, ademais dos colegas de escritório, dos vizinhos de casa…, Miranda não passa de uma sombra etérea, um mito de não existência corporal.
        Os ecos que me chegaram, e que registei nas várias vezes que pude escrever sobre este artista, era a de uma não existência, ou vivencia fantasmagórica, de uma ausência desejada, de uma figura fugidia por timidez. Apesar da obra ter um corpo monumental no mundo do humorismo, o individuo que o criava, mais que tímido ou discreto, evitava ser.
 “Evitar as outras pessoas é a maneira
mais correcta de exteriorizar a insociabilidade”
        Naturalmente, não há fumo sem fogo, neste caso não há fogo sem fumo, não há obra sem existência, ou existência que se cole a uma obra, e a personalidade que dá pelo nome de António Luís Miranda de Sousa tem uma vida, uma profissão de desenhador técnico num gabinete de Arquitectura, uma família, altos e baixos de saúde e na bolsa, como todo o ser humano mas, para alem de tudo isso, sempre um humorista, um discreto observador do mundo que se sente impelido a exteriorizar essas visões pela caligrafia do desenho.
        Desde que, no início do séc. XX, o desenhador humorista foi perdendo a capacidade (ou vontade) económica de ser editor – proprietário do seu próprio hebdomadário, passando a ser fundamentalmente assalariado na imprensa generalista, a sua identidade foi-se esfumando num traço e numa assinatura. Gerou-se um sub-grupo de artistas que, com muito sofrimento, conseguia viver das suas criações (mal pagas e desvalorizadas como obras de arte), saltitando de periódico em periódico, e os que se dividiam em múltiplas actividades, em que os “bonecos” eram um simples suplemento. Estes últimos, muitas das vezes, foram breves aparições, apenas figuras fugidias que passavam pelas redacções a trocar um papel desenhado por um papel monetário. Dessa forma, há muita obra impressa cuja assinatura não passa do papel do jornal, desconhecendo-se quase totalmente a sua verdadeira identidade, a vida por detrás desses artistas.
        Nesta onda de colaboradores de jornais se poderia integrar o Toinho (a primeira assinatura do nosso artista), ou mesmo o Miranda, pela sua forma de conviver com as redacções ou com o público, não fosse estarmos perante um artista com uma obra com mais de quatro décadas de publicação de um artista que, começando por enviar uns papelinhos com gags desportivos ou anedóticos, se imporia com centenas e centenas de crónicas desenhadas cheias de filosofia humorística, reportagens do quotidiano que ajudavam a sociedade a ver-se ao espelho das irrealidades, pela irreverência do sorriso. Seria o “Humor do Miranda” que, ao longo da segunda metade do século XX, escreveria pelos desenhos e palavras a história de uma cidade, de um país, de uma época.
“Humor, a consciência plena
de toda a futilidade dos actos”.
        Não foi por falta de tentativas, desde meados dos anos oitenta, que fui desconseguindo encontrar-me com o “ego” dessa assinatura, fosse para entrevistar, para realizar exposições… Enviei mensagens e mensageiros (o Arq. e caricaturista Ferreira dos Santos foi o mais obstinado, já que também foi seu vizinho e com quem, curiosamente, tinha longas conversas) mas… havia sempre um mas… de um “ego” que, por timidez e humildade, achava que não necessitava de ser mais conhecido para além da efemeridade do papel do jornal. No âmbito do Salão Nacional de Humor de Imprensa, em 1995, outorguei-lhe o Prémio Especial de Humor por carreira. Declinou a homenagem, através do Ferreira dos Santos!
“O mal do elogio é vir, a maior parte das vezes,
de gente inferior à capacidade do elogiado”.
        Contudo, passado pouco tempo, enviou-me cópias de duas caricaturas minhas como “historiador e construtor do Museu do Humor Gráfico” (projecto também desconseguido na minha actividade). Isto é o que se chama virar o feitiço contra o feiticeiro porque, para mim, estas caricaturas do Mestre são um verdadeiro prémio de consagração, um grande tributo ao meu trabalho de divulgador da nobre arte do humor gráfico, de historiador.
        Desconhecendo todo esse universo pessoal, que muito influi na obra de todo o artista, e apenas conhecendo a obra impressa, quem é, para mim, o Miranda? À primeira vista, parece uma alma torturada pela ironia da vida, essa intuição criativa que destrói as lógicas para nos oferecer a crueza do dia-a-dia, pela dialéctica do humorismo, vivendo em dimensões paralelas para melhor ver a alma e o quotidiano humano.
        Graças a José Costa Carvalho, fui descortinando um pouco mais da existência desse António que até na natividade conseguiu emoldurar-se num halo de não existência (durante quinze dias), numa bruma de mistério para confundir os mais audazes que queiram dar-lhe os parabéns natalícios, podendo negar a efeméride. Como? A sua certidão de nascimento apresenta-o como nado a 18 de Março de 1935, na cidade do Porto, contudo, ele, no seio da família, celebra-o a 4 de Março… Qual é a data certa? Foi mesmo no Porto que veio ao mundo? Costa Carvalho suspeita que o parto verificou-se em Candemil (Amarante), terra da mãe, a 4 de Março, e terá sido só quando mãe e filho regressaram à cidade, onde a família vivia e trabalhava, o Porto, que o registaram? Esta versão não tem nada de estranho e era bastante comum naqueles tempos.
        Após esta incursão biográfica mais pessoal, regressemos ao artista que despontou, ainda na adolescência, nos finais dos anos quarenta (com apenas 14 anos) como Toinho (assinatura que só agora identifiquei graças a Costa Carvalho), em raras colaborações no “Mosquito”, “Mundo de Aventuras” e, posteriormente, em “Os Ridículos”.
        Eram tempos em que a liberdade de pensamento e, expressão, já estava agrilhoada na opressão do poder. Pode-se mesmo dizer que todo o crescimento da irreverência, do adolescente António, foi já condicionado neste ambiente, o que, eventualmente, lhe formatou o espirito criativo para olhar a realidade para além do espelho, desconstruindo a imagem e a palavra para significantes paralelos, na cumplicidade do ser. Eram tempos em que, mais importante que olhar, era ver, ler nas entrelinhas do desenho, das palavras, era pensar, porque o que é, nem sempre é, o que parece pode não ser e renascer com outro espírito para além da magia da ilusão. Será que isto ainda hoje não deveria ser importante?
        Apesar de se viver sob a ditadura e sob a alçada da censura que procurava controlar a expressão e o pensamento, o desenho de humor vivia momentos de grande presença jornalística. Os nomes mais dominantes eram o Stuart Carvalhais, principalmente em “Os Ridículos”, e Francisco Valença no “Sempre Fixe”, dois marcos fundamentais da sobrevivência do bom humor nesses tempos, onde o espírito da irreverência se conseguia desenhar entre as linhas e os brancos da imagem. Quando um título desaparecia, por razões económicas ou por sufoco censório, logo aparecia novo titulo a substitui-lo, e todos os grandes periódicos noticiosos tinham os seus desenhadores. Para além das dezenas de assinaturas que apareciam e desapareciam, já que, por vezes, o desenho do humor era apenas um compasso na vida de um jovem artista, de um jovem pensador, outros nomes estavam consolidados como Teixeira Cabral, Júlio de Sousa, Fernando Bento, Natalino, Pargana… No Porto, “O Primeiro de Janeiro” era o diário que dava mais destaque ao desenho de humor e por onde passaram dezenas e dezenas de artistas como Sampaio, Cruz Caldas, Zé Penicheiro, Mont’Alvão, Dyas (Júlio Resende), Aby d’Almeida…. No “Comércio do Porto”, Manuel Monterroso era o Patriarca e no “Jornal de Noticias”, para além de umas raras colaborações de Mingos, Pargana… só com a chegada de Miranda, esse periódico teve verdadeiramente espaço para o humor. Por curiosidade, por esses anos de início de actividade de Miranda podemos referir que também foram os anos de início dos humores de José Vilhena, Francisco Zambujal, João Martins, Manuel Vieira, João Benamor… Cada um com o seu estilo, cada um com a sua forma de encarar o humor mais anedótico, irónico ou satírico, dentro dos limites impostos pelo poder. Nesta paisagem, o Toinho começou por ser mais um desenhador de humores, à procura da sua identidade assinando também ALMS ou A. Miranda até se fixar no Miranda, esse com uma estrelinha em cima do i, para melhor guiar o seu lado filosófico de observar a vida.
        Serão centenas, se não milhares de “bonecos”, espalhados por publicações como “Os Ridículos” (a primeira imagem que registei foi a 18 de Setembro de 1954 mas o Miranda refere a sua primeira colaboração a 12/4/1952, contudo, não consegui encontrei esse trabalho) e “O Primeiro de Janeiro”, em 1955, ano em que entra no “Jornal de Notícias”, onde desenvolverá o essencial de toda a sua carreira e, finalmente, sob a assinatura de Miranda, tendo-se aí mantido até 1996, quando deixou de encaixilhar os (m)seus pensamentos nas páginas dos jornais. Paralelamente, encontraremos, de vez em quando, colaborações na “Cara Alegre”, “Parada da Paródia”, “Bomba H”, “Mundo Ri”, “Cartaz”, “Sempre Fixe”… incluindo umas exportações para Espanha nas “Criaciones Editoriales” e na revista “Hermano Lobo”.
        A obra do “Miranda”, com todo o seu “espírito” de filósofo humorista, de dramaturgo da comédia do quotidiano, foi-se impondo como o “Industrial do Chiste”, o “Malabarista do Chiste”, apodos com que gosta de se apresentar, elaborando uma extensa crónica de “uma sociedade de irresponsabilidade limitada ”. São intervenções importantes do momento, como alertas, como um “Alto aí! Que faça ver as pessoas que o rei não vai tão bem vestido…”, mas que passada a edição do jornal se vai esvanecendo no alzheimer do tempo. Se a imprensa é efémera, engolida no tsunami das notícias antropófagas da atenção da sociedade, se os originais se perdiam nas gavetas das redacções, das tipografias, por serem consideradas apenas como um “boneco”, o suporte para existir a impressão, a obra acaba por se conservar sempre viva, com a existência das hemerotecas e bibliotecas. É função destes templos da memória e de seus sacerdotes, os historiadores, sempre que possível, recuperá-las como obras de arte, como crónicas no tempo, como testemunhos históricos fundamentais para ilustrar, para se compreender, para se conhecer a sociedade que ela reflecte. Infelizmente, para todos nós, muitas das suas criticas e ironias não perderam a actualidade, o que significa também a profundidade do seu pensamento e visão critica da sociedade que parece que muda, mas que no fundo mantém os mesmos vícios e a mesma involução político civilizacional.
        Os primeiros trabalhos de Miranda demonstram, de imediato um poder de traço firme que procura o seu espaço na imprensa, começando essencialmente pelo desporto, mas ao mesmo tempo procurando emparceirar com o humor anedótico vigente na altura, impondo-se como “um nome que é um insulto à tristeza!”. A imprensa portuguesa já tinha em cima de si mais de duas décadas de censura, a qual, após a vitória dos “aliados” na Segunda Guerra Mundial e a cumplicidade daqueles, tornou-se mais agressiva e mais contundente com os assuntos políticos. Naturalmente, Miranda também tem na sua colecção desenhos cortados, não apenas com o “lápis azul” oficial, como também de outros lápis invisíveis, já que as censuras não são apenas externas, havendo também as internas, os “vetos editoriais”, as autocensuras… Mas, do engenho reza o humorismo, e muitas formas tem o pensamento, muitos nomes a essência do Miranda: “Um nome com muitos nomes -alegre, macambuzio, preguiçoso, activo, cínico, sincero, tímido, descarado, hipócrita, franco, desajeitado, habilidoso, complicado, simples, pusilânime, corajoso, tudo. Nada, etc, etc”… ou a sua arte. Ele gostava de ir mudando o título das suas crónicas com estes textos, já que “É a falar que a gente se entende” e o seu i tinha um grande ponto… com alguns traços pequenos” , passando por “Hora Bolas – Bom humor desportivo”, até se fixar no “Humor de Miranda ”, esse que o AGA (António Gomes de Almeida), chefe-de-redacção da “Parada da Paródia”, descreve como ”muito tímido, tem uma voz dolente, o que não o prejudica, pois ele «fala» com o lápis na mão”. No fundo, em pequenas anedotas, em crónicas do quotidiano, em comentários só escritos, a citações de políticos, o importante era fazer as pessoas pensar na vida com um sorriso nos lábios e no coração porque “se pensa sem rir e ri sem pensar, chorará por rir e rirá por chorar”.
        Regressando à pessoa, ao António, a essa figura que nos relatam como fugidia, misantropa… clandestina na vida do quotidiano humorístico. Terá sido sempre assim? O certo é que pelo menos nos primeiros anos vemo-lo a contactar várias redacções, a fazer capas de livro, a colaborar com o actor-encenador António Montez, cenografando a peça “A queda dum Anjo” de Camilo para a companhia de Teatro Seiva Trupe, a participar nas exposições de humoristas ibéricos no Casino do Estoril “Dibujantes de humor / Cartoons de Imprensa”, em 1978 e 1979, a realizar cartazes para o PCP... Em 1973, com complacência ao “povo que, para rir, precisa dos humoristas”, publica uma série de trabalhos seus, inéditos e uma recompilação dos jornais, no único álbum editado até agora: “Contrabando Clandestino”, o qual seria prefaciado por Costa Carvalho. Outros livros estiveram em projecto, dos quais nos ficaram títulos hipotéticos como “Os Ministérios da Santíssima Trindade”, “As Contradições”, “À Dentada, mas sem beijos” tendo tido mesmo a intenção de ser prefaciado por Sérgio Godinho (curiosamente o cantautor não se lembra de ter sido convidado a escrever este prefácio além de que nunca conheceu pessoalmente o Miranda). Estávamos em 1979, a data das últimas fotos oficiais, as quais ficaram cristalizadas nessa data, nunca mais dando a conhecer outras onde o ser envelhece e cria as rugas da sapiência.
        As suas participações públicas não ficariam por aqui, já que, em 1981, participou no concurso do Diário Popular, onde conquistou o 2º Prémio no certame sobre a “Família Popular”, e na RTP onde obteve uma Menção Honrosa num concurso comemorativo do Centenário de Luís de Camões. Contudo, nunca mostrou interesse em participar no Salão Nacional Humor de Imprensa que existiu de 1997 a 2006.
        Com o passar dos anos, o pensamento filosófico do seu humor foi-se burilando, desconstruindo o quotidiano de uma forma psicológica como grande retrato sociológico do que o rodeava. O traço foi-se firmando, incluindo uma forma peculiar de fazer os balões dos textos (marcados com pequenos traços), suas personagens narigudas e marcando cada vez mais a sua assinatura num “Mirandês” inconfundível, atestando a sua visão sobre a função do desenho de imprensa, numa estética caligráfica onde não há sátira mas ironia, onde não há anedota mas dialéctica humorística.
“Tragédia do cartunista português: substituir o desafio
 à reflexão por aparatoso barroco de execução”.
        Felizmente, Miranda num dos seus manuscritos de 1979 (elementos que me chegaram através de Costa Carvalho) descreveu a forma como encara esta profissão, em que o desenho “deve ser, antes do mais, uma caligrafia em que as letras são substituídas por outros símbolos. Neste mundo rápido de hoje, o discurso do poder pede uma resposta, exige um comentário rápido e imediato. /…/ O desenho satírico, entendo-o, antes de mais, e quando executado com um mínimo de rigor, deve ser mais dirigido pela ideia do que pelo desenho em si, entendo-o, diria, como um elemento altamente pedagógico”. Miranda deseja ser aquela figura etérea que vive do outro lado do espelho das comicidades, reflectindo este louco mundo através da diáfana verdade filosófica dos humores, em que nos obriga a parar e a olhar, de forma pedagógica, para as contrariedades do dia-a-dia, ou contradições que os próprios, assim como os dirigentes, despoletam nas suas vivências e na sociedade. E prossegue – “O formativo pede a crítica e o comentário que tem de ser imediato a nível de desenho satírico, o grande trabalho de mãos deve ceder o lugar ao suor do cérebro. Tenho grande admiração pelo trabalho do chamado “cartoonista” de régua e esquadro, contornos complicados e sombreados estonteantes, mas não sei bem se essa minha admiração é devida mais à paciência se à capacidade técnica de que o dito artista dá mostras. Salvo raras excepções, a ideia reflectida por esses desenhos bem traçados repete um “cliché”. /…/  Esta pois a grande opção do desenho humorístico: ou “cliché” ou ideia gerada pelas contradições do dia-a-dia. O maior perigo do “cliché”, o qual mostra bem a sua nulidade, é que pode ser adaptado a objectivos demolidores tanto de esquerda como de direita, pois resultam sempre da mesma maneira. Basta mudar os nomes dos elementos inseridos no desenho. Já quanto à ideia gerada pelas contradições do dia-a-dia, a coisa fia mais fino, embora, às vezes, basta reparar com atenção no jornal do dia. Lado a lado, estão, a cada passo notícias contraditórias que, elas mesmas nem precisam de ilustração de qualquer boneco satírico, são a anedota evidente do sistema. Na verdade, o problema é este mesmo: deitar fora o “cliché” ao caixote do lixo e seguir atentamente os acontecimentos do dia-a-dia para deles tirar o máximo de conclusões que possam gerar novos comentários. O riso resultante da contradição será o vector indicativo do processo histórico.”
        Nesta simples introspeção está a essência do seu trabalho e do humor em geral. Ele divide o conceito do cartoonismo (de âmbito anglófono / americano) e do desenho de humor, em que o primeiro vive de alegorias, paródias, sátiras muita datadas e perenes seja em referência às “vitimas caricaturadas”, seja aos acontecimentos, enquanto que o desenho de humor, apesar de também perene, devido ao seu suporte jornalístico, vive mais de uma análise filosófica das contradições, das incongruências da própria vida que, graças à estupidez humana, são eternas.
“País carenciado, logo necessitado de pompa, Portugal tolera mais a caricatura
pessoal das personalidades do que o “cartoon” crítico dos males que o enfermam.”
        Mas quando falamos de humor quereremos dizer anedótico, burlesco ou cómico, em que o riso é fundamental? Há muitas formas de riso, desde o doentio ao diabólico, do pedagógico ao filosófico e, na verdade, nem sempre o riso está, ou deve estar, associado ao desenho de humor, preferindo-se o sorriso porque o barulho do riso ofusca-nos o pensamento, enquanto que o sorriso é um espasmo da inteligência na compreensão das ideias, de uma paragem filosófica para absorvermos os acontecimentos, a realidade, as notícias.
        António Luís Miranda de Sousa, na sua vida era um obsessivo colector de notícias, lendo cerca de 30 livros por semana, criando o seu diário íntimo de recortes noticiosos, informações da vida para uso imediato ou para inspirações futuras, ao mesmo tempo que fazia o registo de todos os seus desenhos (na maior parte das vezes sem guardar original), como e onde publicava. Miranda não é mais que um observador atento, um cronista que procura não se deixar ofuscar com as realidades paralelas criadas pelo poder mesmo que para isso se sinta como o Gilvicentiano tolinho da aldeia que diz verdades que ninguém mais tem coragem de dizer.Eu acrescentaria: que poucos têm coragem de querer ver.
“Elogiam um “cartoon” enaltecendo as qualidades de técnica e acabamento,
 e hostilizando qualquer sentido de mensagem do assunto tratado.
Sempre o problema de forma e conteúdo. Pode haver forma sem conteúdo,
mas não há conteúdo sem forma. Exemplo: vasilha e liquido”.
        José Costa Carvalho (também ele de raízes Amarantinas e eventual primo afastado de Miranda) acha que na génese do humor Mirandês está o humor amarantino, uma forma de viver sempre com o sarcasmo na boca, esse sentido de humor que os galegos chamam de “retranca”, ou seja, ter sempre na ponta da língua o “espírito” para melhor enfrentar as sátiras da vida e as ironias dos outros. No fundo, é o estar sempre atento à vida, e em vez de cair na tragédia, viver com o sorriso na face, enfrentando tudo e todos com a satisfação de estar desperto. É verdade que esta retranca, principalmente nas aldeias azedas, descai para o sarcasmo e as quezílias, contudo, como em tudo, as fronteiras entre a má educação e o cómico é muito ténue, assim como entre a anedota e o “espirito”. O importante é saber viver em sociedade com um espírito construtivo e humorístico.
        Costa Carvalho no prefácio de “Contrabando Clandestino” dirá de sua sentença, já que é talvez a pessoa que melhor conhece Miranda: “E no caso específico de Miranda, humor o que será? Um sonho feito de pesadelos rasgados nos olhos abertos, um sonho paradoxal de que se emerge com vontade de cuspir na vida, lambendo depois a afronta com o riso da melancolia. Humor de Miranda é uma coerência enfermiça, um progressivo aumento da sensibilidade à dor. Porque humor não é fazer rir, antes levar a pensar, a sofrer. Como se fossemos sibaritas famélicos parindo lascívia nos eremitérios da descrença.
        Sem querer cair em “clichés” irónicos, poderíamos dizer que o humorista é o “oftalmologista” de serviço num jornal, o “sinaleiro” que nos obriga a parar e a pensar sobre o trânsito noticioso, o “filósofo” do café que disserta sobre as contradições das notícias. Assim se sentia o proverbial Miranda que usava muitos dos adágios, dos aforismos e dos dizeres populares, porque como ele referia “não sou no povo, estou no povo”.
        No referido álbum “Contrabando Clandestino”, a selecção de desenhos termina de forma irónica com o leitor a deitar-se dentro do caixão sentenciando - Para tão longo humor tão curta a vida”. Miranda tem sempre razão. Como é que estas quatro dezenas de anos de trabalho produziram tantos “bonecos” e tantas introspecções humorísticas? Principalmente depois da revolução de Abril, Miranda chegava a fazer uma página inteira do jornal de desenhos com legendas, intercalados com textos que por si só não davam espaço a “bonecos”. São milhares de trabalhos, e viajar por esta obra é pois viajar no tempo, na memória, no espírito dos Homens. É apreciar a beleza da linha caligráfica do modernismo da terceira geração, é sentir o sorriso de uma alma que, apesar de se dizer um “ego” triste ou fugidio, é uma luz sorridente que a sociedade não pode deixar que se apague, não pelo “ego” do Miranda, mas pelo nosso, pela nossa sobrevivência, pela nossa saúde mental, num país governado por triste gente que se governa e se deixa desgovernar.
“Que brilhante poderia ser, se tivesse
à minha volta uma multidão a incitar-me!”



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