Wednesday, May 09, 2018
Rosário Breve Só me falta o livrete por Daniel Abrunheiro
Há
já muitos anos que não tenho automóvel. Não o digo por choramingona
auto-lamentação. Digo-o como reiteração da ironia da vida. E a ironia está no
que se segue: cimentei amizade com uma viúva rica. Melhor da festa – não tem
filhos nem irmãos, nem sobrinhos sequer: apenas & tão-só uns vagos
afilhados não de sangue. Idade de senhora, não se pergunta nem se escarrapacha
em crónica. [E não, não poderia ser minha mãe
– não exageres na descúnfia, ó Leitor(a).]
Disse mal: a ironia não está
propriamente na amizade com a viúva. Está nisto: meteu-se-lhe na cabeça
oferecer-me uma roulotte. Em vão lhe
redargui que não possuo carro que a puxe. Com a tenaz obstinação dos portadores
de ideias-fixas, contestou-me ela: “Uma
coisa de cada vez, menino. Roma e Pavia…” Ou seja: passei por ganancioso,
quando a verdade purinha é eu ser o mais humilde desinteresseiro dos homens –
pelo menos dentre aqueles que raspam a barba ao espelho da minha casa-de-banho.
Eis-me, pois & assim, futuro
possuidor (que não utente) de uma roulotte
com matrícula de 1972. Comprou-a então, novinha em folha, o dinheiroso falecido
dela. E com ela, o casal fez peripatéticos gerêses, ibizas, côtesd’azures,
pompeias, odessas, florestasnegras, vienas – e figueirasdasfozes. O carro que a
tractorava, esse espatifou-o mortalmente o marido ao cabo de infortunada noite
no Casino do Estoril. Desencarcerou-se da vida encarcerado nesse glamoroso Opel Manta de fatal memória.
Nota importantíssima: não é de
cariz pornográfico – mas gráfico sim – a relação que tenho & mantenho com a
dita dama de copiosa abastança. É gráfica porque ela adora sonetos à Bocage,
que eu imito, até nem mal de todo, com caralheira brejeirice. Recebo dela uma
nota de cinquenta por cada posta tonitruante de catorze versos, o que não é
mesmo nada mal pago. Modos que ando
poupando em sonetos no fito de comprar uma carroça em segunda ou terceira-mão
que me ponha a roulottar por aí afora
à guisa do caracol de choupana às costas. E já matuto numa coisa maravilhosa.
Maravilhosa, sim. Esta aqui:
plantar o carro, a roulotte & o
meu “cadáver adiado” algures no troço
da EN 114, a desditosa via há tantos anos estrangulada. Como o mais certo é não
ser reaberta ao livre trânsito antes de 2100, o sossego da minha nova
residência parece-me sobejamente garantido. Até me proponho plantar gerânios em
vasos em cerca ao acampamento. E ter cá fora um cão-de-louça. E
andorinhas-de-barro agarradas às janelas. E um estandarte altíssimo do Sport
Lisboa e Benfica. E bustos em plástico do Cristiano Ronaldo, do Che Guevara, do
Ricardo Gonçalves, da Madre Teresa de Calcutá & do Leitor e/ou da Leitora
que lá me for esmolar conservas & garrafões.
De resto, muito agradecido, ando
feliz da vida. Faço os sonetos soezes, alimento-me em tascos de bifanas, atiço
inglesas velhas à mercê da machíssima desenvoltura dos meus aparatos
musculares, durmo sem remorsos & acordo sem lembranças.
A viúva telefona-me às terças,
adora-me com comichosas palavrinhas pejadas de uma emurchecida lubricidade, ameaça-me
de novo com o carago da roulotte
& encomenda-me mais uns quantos sonetos geni(t)ais, a Deus graças.
Não tenho ido ao médico nem à
farmácia. Prefiro ir pela mata para assistir ao voejar alucinatório das
andorinhas de Maio. Também me costuma dar para ficar descalço até ao pescoço
estirado na varanda que dá para o cemitério hebraico. São gozos inócuos mas cá
muito meus. Bem pior seria drogar-me com lixívia.
De quando em vez, perco os óculos.
Passo então dias de visão aquária, as pessoas tornam-se peixinhos glaucos, o
sol fere-me termonuclearmente, é uma porra das antigas. Logo que arranjo uns
novos, a realidade readquire o teor absurdo de que é primaz absoluta.
Escrevo isto a uma terça-feira. E
não, a viúva ainda me não telefonou hoje. Vou lapijando sonetos entre cigarros
rimados & cálices de tinto da Quinta do Falcão. Nos entrementes, coco as
mulheris formosuras que o bom-tempo despe pelas ruas. Tento não me arrepender
das más escolhas que a minha inconsciência fez por mim. Mas olhai: a vida é só
enquanto cá estamos. Só me turva o sossego uma coisa. E tal coisa é – toparei
eu sítio, algures na EN 114, onde ligar cabo a tomada eléctrica? Vou precisar
de frigorífico, computador, máquina-cafeteira, ventoinha refrigéria etc. Nesse
aspecto tão técnico, a minha viúva não pode ajudar-me. Nem ela, nem o Ricardo
Gonçalves. Ou seja: nem Roma, nem Pavia.