Monday, March 21, 2016
Recordando Stuart Carvalhais por António Gomes de Almeida
Foi em circunstâncias muito curiosas que
me tornei amigo do Stuart Carvalhais – e a história passa-se em 1954, mete uma
capoeira, o Artista, os seus cachimbos, um moço de 21 anos que cumpria o seu serviço
militar como miliciano – e a Dona Fausta.
A Dona Fausta era a esposa do Stuart, e
viviam ambos numa vivenda sem grande graça, no centro de Queluz, defronte do
jardinzinho municipal. Nos anos 50, aquilo era uma vilória minúscula e só tinha
três coisas importantes: o Palácio Real, o quartel do Regimento de Artilharia
Anti-Aérea Fixa, e a estação da CP. Era nesta que eu (o tal moço de 21 anos)
tomava o comboio para Lisboa.
Os cachimbos do Stuart
Ora bem, acontece que a Dona Fausta era,
comprovadamente, uma senhora, quase sempre, muito mal disposta... O Stuart
fumava, habitualmente, os seus cigarrinhos (aliás, é assim que aparece sempre
retratado, ou caricaturado, por quem o conhecia). Mas, lá de vez em quando,
gostava de fumar a sua cachimbada. Só que a Dona Fausta detestava o cheiro do
tabaco! Por isso, quando apanhava o Artista distraído, palmava-lhe o cachimbo
e... pumba! Atirava-o para cima da capoeira que tinham lá ao fundo do quintal.
Um dia, ia eu a passar por ali, em passo
acelerado – tinha saído do quartel e ia direito à estação, mortinho por chegar
a casa – quando vejo um sujeito simpático a chamar-me: "Pst, pst, ó pá,
és capaz de me fazer um favor?" Era o Stuart, que eu só conhecia de
vista, e de longe. Pediu-me então, já que eu aparentava ser um jovem cheio de
genica e de ginástica, que trepasse à capoeira e lhe apanhasse os vários
cachimbos que lá estavam. Já não tinha nenhum cá em baixo e estava mesmo a
apetecer-lhe uma cachimbada…
Lá apliquei os meus dotes atléticos e
cumpri galhardamente a missão, recuperando uns quatro ou cinco cachimbos. O
Stuart ficou muito agradecido (a Dona Fausta ficou danada!), e fomos tomar uns
copos, numa tasca que ficava ali perto. Esqueci-me da pressa para voltar a
casa, envolvido na conversa com aquele Artista fascinante – e pronto, ficámos
amigos.
A casa, creio que já lá não está, junto
do jardinzinho, no centro da antiga Queluz, agora afogada pelos novos bairros
megalíticos que constituem a Queluz moderna. A capoeira já não existirá,
portanto. Os cachimbos, decerto que não. Mas a memória do meu amigo Stuart,
essa está bem viva em mim, tantos anos depois do dia em que o conheci, por
causa desta história dos seus cachimbos, da minha escalada à sua capoeira, e do
mau feitio da Dona Fausta.
Um boneco para o Diário
de Noticias
O Stuart, como é sabido por toda a gente
que o conheceu, ou leu coisas a seu respeito, era um boémio e um gozador da
vida. Fartava-se de trabalhar, mas andava sempre sem tostão. Eram capas de
discos, eram ilustrações para revistas, eram caricaturas, eram anedotas, eram
capas de livros, eram cartazes – uma produção enorme, um talento espantoso e
uma arte sem medida, espalhada e esbanjada por mil e um sítios, desde as
páginas de centenas de jornais e revistas, à decoração das barracas da primeira
Feira Popular.
Com o "Diário de Notícias"
tinha ele, a certa altura, um acordo, através do qual ganhava uma espécie de
avença mensal: tinha de produzir, diariamente, um boneco para o jornal – fosse
uma caricatura, uma ilustração, ou qualquer outra pequena obra de arte. Só que
o Stuart fazia-se esquecido e, em vez de entregar um boneco por dia, entregava
um boneco por mês... por coincidência, no dia de pagamento da tal
avença...
Toda a gente sabia como ele era, de
maneira que lá lhe iam desculpando as faltas.
Um dia, estávamos quatro pessoas à volta
de uma mesa da "Brasileira" do Chiado, a tomar aqueles cafezinhos que
eram uma bênção para as nossas almas, quando aconteceu um episódio que dá bem a
imagem de como o Stuart trabalhava. Essas quatro pessoas eram as seguintes: o
Stuart, ele mesmo; o Dr. Ramada Curto, brilhante advogado e dramaturgo, que
tinha uma conversa fascinante e uma presença muito distinta; outra, o Nobre
(acho que nunca soube o primeiro nome deste curioso personagem), um tipo com ar
tenebroso, que se dizia anarquista e estava sempre a rosnar, ameaçando que ia
pôr uma bomba aqui ou ali, o que, penso eu, nunca se concretizou – e, como
quarto elemento do grupo, eu próprio.
Nisto, estava a conversa animada, quando
entra pelo café dentro um garoto, a correr. Era um mandarete do "Diário de
Notícias". Olhou à volta, esbaforido, descobriu o Artista e veio
dizer-lhe, apressado: "Senhor Stuart, o chefe manda dizer que o senhor
tem de entregar hoje o boneco que lhe pediu! Senão, não recebe este mês!"
O Stuart ficou alarmado: "Ó
diabo, nunca mais me lembrei! Mas lá ficar sem receber as massas, isso é que
não pode ser. Espera aí um bocadinho". E chamou: "Ó Oliveira!"
O Oliveira era um dos empregados da
"Brasileira". Havia dois, eram irmãos e completamente diferentes: um
deles pequeno e delicado, o outro grandalhão e pesado, mas ambos excelentes
pessoas, sempre prontos a fiar uma bica a quem estivesse curto de dinheiros.
"O que é, senhor Stuart? Outra bica?" "Não, o que eu
queria era um bocado de papel branco". Diz o outro: "Só se for
uma toalha de papel!" "Serve. Traz lá isso".
Veio a toalha. O Stuart sacou do bolso
um frasquinho de tinta-da-China, com que andava sempre prevenido, e uma caixa
de fósforos. Partiu com os dentes a ponta de um fósforo e, depois de pensar
durante uns segundos, molhou o pauzinho na tinta e desenhou na folha branca uma
varina, como só ele as sabia desenhar, de porte donairoso e pernas
elegantíssimas e bem lançadas. E o miúdo à espera.
Três minutos depois, estava o desenho
pronto, com uma legenda por baixo. O Artista disse então para o mensageiro:
"Leva lá isto ao chefe, mas com cuidado, que ainda está fresco. Pega
por esta ponta e vai abanando pelo caminho, até secar a tinta".
E lá foi o rapaz, pelo Chiado adiante,
abanando aquela obra-prima instantânea, que ia garantir a preciosa avença
mensal do Stuart Carvalhais.
Stuart e o Mundo Ri
Em 1955, convidei o Stuart para fazer
capas e algumas ilustrações para “O Mundo Ri”, que tinha passado a dirigir
recentemente. E assim aconteceu, durante algum tempo, em que ele fez várias
ilustrações, bem ao seu estilo, para esta revistinha.
A única dificuldade era fazê-lo cumprir
prazos… Mas o seu prestígio., e a qualidade do seu trabalho eram tais, que se
lhe desculpavam os atrasos – até porque a sua simpatia pessoal desarmava toda a
gente…
A aventura do Picapau
Foi então que o Stuart Carvalhais me
desafiou para uma aventura que começaria com alguma dificuldade, duraria um ano
e mais umas semanas – e terminaria da forma que é tradicional, pelo menos cá na
nossa terra…
Foi assim: Como já contei, o Stuart
tinha aquilo que se poderia chamar um relacionamento privilegiado com o
"Diário de Notícias", a nível da sua Direcção e, igualmente, da
Administração. Esta controlava então, não só aquele importante jornal diário,
como, também, a ENP – Empresa Nacional de Publicidade, que era a proprietária
do "DN" e, ainda, do "Anuário Comercial", do "Mundo
Desportivo", da revista de cinema "Estúdio", do juvenil
"Diabrete", depois substituído pelo "Cavaleiro Andante",
etc.
Um dia, o Stuart diz-me assim: "E
se a gente fosse ao Diário de Notícias, apresentar uma proposta para fazermos
uma nova revista humorística? Uma revista bonita, moderna, toda a cores,
completamente diferente do que há por aí?..."
O meu primeiro pensamento, confesso, foi
este: "Olha, esteve a beber uns copos!" É que, para mim, nesse
tempo, o "Diário de Notícias" era uma instituição tão grande, tão
inacessível, que me parecia perfeitamente impensável entrar um dia por aquela
misteriosa porta rotativa, subir aquelas escadarias, chegar ao piso da
Administração e dizer: "Aqui está uma maquete e um plano de trabalho
para um semanário de humor".
Pois bem, foi isso mesmo que aconteceu,
semanas depois daquela primeira conversa. O Stuart dizia-me então: "Tu
és organizado, sabes fazer estas coisas, escreves bem, podes arranjar aí uma
proposta toda bonita! Eu, cá pela minha banda, trato de arranjar os contactos e
de mexer os cordelinhos para eles aceitarem a ideia. E tenho a certeza de que
aceitam mesmo!".
Eu não estava assim tão confiante. A
experiência anterior, de algumas "tampas" que apanhara, ao apresentar
propostas semelhantes, a alguns editores, não me dava grandes esperanças. Mas o
Stuart acreditava que aquilo ia pegar, pela certa. Fizemos, pois, uma maquete,
toda muito bem apresentada, para uma revista humorística semanal, a cores, que
se chamaria "Picapau". Estudámos o plano geral, o formato, a
paginação, a colunagem, as secções, a lista dos colaboradores, os custos,
enfim, tudo. E, um dia, lá franqueámos, os dois, a tal porta rotativa do
"Notícias" (que ainda lá está…), subimos a escada e, de repente,
estávamos no gabinete da Administração – eu um bocadito nervoso, o Stuart muito
descontraído, como sempre, a contar piadas aos dois Administradores que nos
tinham recebido.
Lembro-me perfeitamente das caras deles:
o Dr. José Gonçalves, pequenino, escuro, seco, trombudo, e o Dr. João Dinis,
grande, amável, risonho e simpático. O Stuart encarregou-me da parte técnica da
conversa: a ideia geral, o estilo da revista, a forma como nos propúnhamos
trabalhar, a equipa de colaboradores, etc.
E, quando eu estava à espera de uma nega
fria e seca – eis que o Dr. José Gonçalves, depois de folhear a maquete e a
papelada, nos diz: "Sim senhor, isto tem pernas para andar. Assim que
chegar a máquina de impressão nova de que estamos à espera, vamos avançar".
Cá fora, na Avenida da Liberdade, ria-se
depois o Stuart, todo contente: "Eu não te dizia? Vamos fazer uma
revista humorística como nunca houve nenhuma, desde o tempo do Rafael Bordalo
Pinheiro! Anda, vamos ali beber qualquer coisa, para comemorar!"
E o “Picapau” começou a ser feito.
Como contei atrás, tinha elaborado um
plano, muito minucioso, sobre a forma de produzir a revista.
O Director seria eu; o Stuart Carvalhais
assumia o título de Director Artístico; e o Matos Maia (um grande amigo, já
conhecido através da Rádio, onde apresentaria o famoso “Quando o Telefone
Toca”) figurava na ficha como Chefe de Redacção.
O primeiro número só sairia daí
por um ano, devido a problemas técnicos que não vale a pena estar aqui a
explicar, mas que já eram um mau prenúncio... E foi muito bem acolhido pelo
público, porque era vivo, colorido, moderno, diferente.
Mas, com todas estas boas
características, não conseguiria vencer os tradicionais problemas de ordem
administrativa, de organização interna, de distribuição, etc.
O Stuart nunca duvidou de que aquele
jornal ia dar que falar. E deu mesmo. O "Picapau" foi saindo, todo
airoso e colorido – mas, quando estava para ser posto à venda o número 7, fomos
informados de que a publicação ia ser cancelada. "Está-se a vender mal".
Sabíamos muito bem que não era verdade – e as razões desta resolução drástica
tinham a sua explicação, isso sim, em problemas da Administração, sempre muito
mal explicados. Estava-se mesmo a ver que o "Picapau", cumprindo a
“sina” de tantas outras revistas de Humor portuguesas, fora condenado...
E foi assim que começou e terminou a
aventura do "Picapau", em que o meu amigo Stuart teve um papel muito
importante.
Ele ainda tentou, depois, abalançar-se a
nova aventura, desafiando-me a partirmos para outra tentativa semelhante – mas
já não houve tempo para tanto.
Depois destes episódios, que constituem
recordações preciosas que guardo do meu amigo Stuart Carvalhais, tivemos mais
alguns raros contactos, sempre muito cordiais e divertidos, nos poucos anos que
se passaram até ao seu desaparecimento.