Friday, July 24, 2015

ALVARO CUNHAL E SUA OBRA HUMORÍSTICA

Por: Osvaldo Macedo de Sousa

Na arte, ou na vida, para mim, não há assunto mais sério que o humor, essa veia criativa de abordagem do mundo que desmistifica as hipocrisias, que desembacia a visão politica pela inteligência desconstrutiva da filosofia humorística. Não aceito abordagens dogmáticas na criação humana, porque o direito à contestação, à dúvida metódica é fundamental numa sociedade inteligente. É pela lágrima do despertar, pelo sorriso da revelação ou pela gargalhada da compreensão que a sociedade progride, avança na conquista da sua liberdade de expressão e pensamento. O humorismo é uma fórmula de pensamento, uma estrutura de visionar o mundo que tanto pode confrontar o homem com o choro da raiva ou ternura, assim como com o riso da vitória.
O humor é uma arma perigosa, e como todas as armas, pode-se voltar contra o utilizador, usada a favor ou contra os nossos ideais, porque é algo intrínseco à alma, à ideologia de cada criador. É uma arma perigosa porque como é fruto da inteligência humana, como tal maquiavélica, molda-se nos interstícios do cérebro subjectivo, apesar de, em princípio, dever ser inteligente e libertário. Mas, como grito de sobrevivência, é fundamental para o homem, no seu inconsciente psicológico, contra as opressões do quotidiano. É verdade que até hoje, nenhum humorista derrubou um ditador, um regime, um governo mas, é através da arma da sátira, da ironia, do humor que o povo apreende melhor a realidade e denuncia quando o “rei vai nu”.
É uma responsabilidade gigantesca vir falar de um lado humano que muitos consideram do supérfluo, na criação estética e vivencial de um Homem, como Álvaro Cunhal, que é mais conhecido como o grande estadista que foi, o político que marcou todo o séc. XX mas, na realidade ele é muito mais que isso, é um dos maiores “Humanistas” da nossa história, dominando e marcando as várias vertentes do pensamento e das artes.

Não há um Álvaro Cunhal político, outro Manuel Tiago escritor, outro Álvaro artista plástico ou outro Cunhal esteta, mas apenas um único Álvaro Cunhal. Na mesma medida não há um artista “sério” com forte carga de intervenção estético-social e outro artista “humorístico”.

Constitui /…/ um direito à liberdade que um artista parta à descoberta
de novos valores formais (da cor, do volume, da musicalidade, da linguagem)
 com o propósito de os tornar adequados e capazes de levar à sociedade, ao
ser humano em geral, uma mensagem de alegria ou tristeza, de solidariedade
ou de protesto, de sofrimento ou de revolta, em qualquer caso,
como é de desejar de optimismo e de confiança no ser humano e no seu futuro.”
(Álvaro Cunhal - “A Arte, o Artista e a Sociedade” pág. 20/1)

A criação artística, como intervenção sócio-política, com “mensagem de alegria ou tristeza, de solidariedade ou protesto”, existe em todas as formas de intervenção humana ao longo dos séculos mas, a expressão máxima destes elementos concentra-se essencialmente na criação humorística, no desenho de humor de imprensa.


“Faz falta permanente à sociedade como elemento de descontracção de tensões
e silenciamentos, como elemento promotor da reflexão, como incisiva
chamada crítica rompendo constrangimentos, hesitações e temores
(Álvaro Cunhal - “A Arte, o Artista e a Sociedade” p. 64)

Denegrida pelos cultores e estetas das ditas “Artes Maiores” (quando não há artes amores nem menores, antes obras mais ou menos conseguidas, artistas maiores ou menores dependendo do seu domínio técnico, estético ou filosófico), o desenho de imprensa é filho do espírito revolucionário que desencadearia o fim do Antigo Regime e acompanhará todas as revoluções sequentes como porta-voz da contestação, ou como arma revolucionária. Esse espírito irreverente que incita à evolução e libertação, tem um cunho mais revolucionário ou mais diluído na condescendência do regime de cada época, consoante os ventos do tempo, do grau de luta ideológica da sociedade em cada momento e, inclusive da insatisfação estética reinante. Por essa razão, neste início do séc. XXI o espirito satírico, é muito mais forte nos países árabes e sul-americanos que na Europa e América do Norte, continentes resignados e esvaziados ideologicamente.
Em Portugal o desenho de humor, pelo menos até à década de trinta do séc. XX, acabou por ser um catalisador e porta-voz de todas as evoluções filosófico-estetas das artes plásticas como realismo (exemplo Nogueira da Silva), o realismo (Raphael Bordallo Pinheiro), pré-expressionismo (Leal da Câmara), o modernismo da primeira geração (Christiano Cruz), da segunda geração (Carlos Botelho), o pré-abstracionismo (Teixeira Cabral), o surrealismo (Cândido Costa Pinto)…
Até a essência do neo-realismo como arma pedagógica, se poderá encontrar no ideário dos utópicos criadores da Sociedade dos Humoristas de 1911, em que o seu teórico e porta voz  Christiano Cruz declara em entrevista: “Eu sei bem que o público não sente a necessidade de arte, da mesma maneira que não sente a necessidade de lavar os pés. Mas as necessidades criam-se e essa tarefa só nos pode caber a nós, dada a impossibilidade de mandar o meio, a Paris, educar a vista. /… / Depois de Bordallo ninguém fez nada na caricatura politica que mereça menção e /…/ ao examinar uma página dos jornais humorísticos actuais eu vejo sempre uma página do “António Maria” apenas virada do avesso./…/ O irritante e perspicaz quem é, acompanhando sempre a vista de um desenho impessoal, na esperança de ver surgir as convencionais figuras dos nossos estadistas, é um sintoma da mania política do nosso público. É preciso fazer-lhe desviar a atenção para a caricatura social, para a caricatura de costumes, enfim, para a verdadeira caricatura: a impessoal.”


Tudo o que contribua para que se atinja um estado de maior justiça social,
tudo o que traga um contributo positivo para que a opressão acabe,
tudo isso é progresso social, e uma arte ligada a esta Ideia estrutural
é certamente uma arte socialmente progressiva. Progressiva no sentido
de se considerar como superior a posição em que se coloque o artista
no centro dos acontecimentos do mundo, e não acima ou ao lado deles.”
(George Plekhanov “A Arte e a Vida Social”)

O conflito entre forma e conteúdo foi um tema grato a Álvaro Cunhal, desenvolvido fundamentalmente na querela com os Presencistas, muito mais literária que plástica e muito menos abordando a questão humorística e caricatural, tema sobre o qual muito pouco deixou escrito. Neste campo artístico do desenho de intervenção na imprensa, o conteúdo deve ter muito mais peso que a forma, optando alguns cartunistas por um cunho mais literário (a narrativa gráfica sintética) e outros por uma via mais plástica, abdicando mesmo da legenda. A maioria acaba por seguir num compromisso entre ambos os elementos.
Num traço naturalista, modernista, abstracionista, caligráfico… o importante é a intervenção, a mensagem que incorpora. Se o ideal é que esta ideia gráfica seja essencialmente filosófica e com espírito imediatista, obrigando o receptor a reflectir (com lágrima na alma, com sorriso no coração ou com gargalhada pulmonar), também se pode cair no extremo oposto de uma obra de simples divertimento anódino, brejeiro ou grotesco em que abandona o humor para ser apenas cómico. Como em tudo, a paleta é muito ampla para servir todos os gostos em obras bem ou mal conseguidas, tendenciosas num reacionarismo estupidificante ou filosoficamente pertinente…
A obra de cunho humorístico é menor em relação ao resto da Arte (plástico ou jornalística)?
É uma expressão supérflua dentro da sua actividade lúdica de compromisso social e político?
Essa avaliação depende mais do leitor, como indivíduo, como fruto de uma cultura, de uma sociedade, do que do artista.


Aquilo de que me acusam não está no desenho, mas na sua consciência.”
Philipon

A pergunta recorrente de quem não conheceu pessoalmente Álvaro Cunhal, perante a máscara distante que o seu rosto transmitia, é que se ele tinha sentido de humor. Manuel Alegre diz, num seu testemunho, que “tinha um inesperado sentido de humor”. Pois, é esse “inesperado”, para quem o não conheceu, que ressalta de imediato.
Sendo, como era, um Homem de uma inteligência extraordinária, tinha que ter, obrigatoriamente um alto sentido de humor (que nem sempre é nítido ou compreendido pelos outros), o que não obriga a ser um cultor da comicidade anedótica e grosseira.
Na realidade conheço muito pouco da sua obra, só a mais pública e raras foram as suas intervenções sobre o humor ou o desenho humorístico. Mas, no livro “Cinco Conversas…” de Catarina Pires, a certa altura Cunhal refere: “Não somos um país de grandes humoristas. /…/ Onde é que estão os escritores humoristas? E caricaturistas? No tempo da monarquia e da República de 1910 tivemos dois notáveis caricaturistas: Rafael Bordalo Pinheiro e Leal da Câmara. No tempo da ditadura destacou-se como caricaturista e ficou na história Stuart Carvalhais /…/ Nos últimos anos da ditadura e no 25 de Abril houve alguns caricaturistas de grande valor como Abel Manta. /…/ Não somos um país de humor. /…/ o melhor humorismo, o grande humorismo é aquele espontâneo, que não exige meditação nem explicação, que fulmina com a graça. /…/ Sendo eu comunista, ás vezes ouço uma piada anticomunista, muito injustas, mesmo caluniosas, mas digo para mim: têm piada, os malandros! Assim o tivéssemos nós falando deles. Fazem-nos falta bons humoristas!”
A apreciação sobre os nossos caricaturistas é muito arrasadora, já que houve muitos mais artistas de grande relevo plástico e interventivo e sem querer ser também injusto ao não referir mais nomes, não posso deixar de referir o Baltazar Ortega, o grande Martins - João Martins uma excepcional voz de humor social no Partido Comunista Português. Curiosamente Cunhal faz menção aos artistas mais formalistas na estrutura estética. De todas as formas, ele documenta aqui o seu lado democrático, perante anedotas tendenciosas ele apreciava o lado “técnico-filosófico” da construção humorística.
Regressando à obra concreta, aos desenhos humorístico de Cunhal, temos de os contextualizar no tempo histórico, no momento pessoal, onde e como foram germinados estes pequenos fragmentos da sua alma. Estes apontamentos dividem-se em dois grupos.
a) Os desenhos feitos como descompressão no meio de tertúlias, reuniões em que a mente trabalha profundamente em “questões” de fundo, em resolução de problemas e a mão, rabiscando, afrouxa o “stress”, liberta a mente pelo humor, abrindo novos espaços no pensamento paralelo. É um rosto, uma caricatura do momento, um apontamento adulterado da ideia, do espaço… Devem Existir dezenas desses pequenos traços, croquis anteriores e posteriores aos anos de prisão, espalhados por casas de camaradas, de amigos. Mesmo neste grupo deveria contextualizar-se os realizados durante o período de clandestinidade e os realizados no exilio e em liberdade
Os desenhos mais antigos que eu conheço são um croqui de 1927 e dois desenhos de 1928 num cunho de ilustração típica dos anos vinte que poderia ser assinado por Almada ou por António Soares. Em 1935 colaborou com o jornal infanto-juvenil “Gaiato” com ilustrações para artigos doutros escritores e para um conto seu. Conheço aquela pequena ironia de uma reunião de passagem de ano de 1938 em que o sonho ideológico acaba por se transformar num sono de cansaço… De 1940 temos aquele sátira aos cuidados dentários em que o próprio foi a vitima, enquanto preso no Aljube, seguindo-se de belas auto-retratos numa introspecção do seu olhar, ou aquele pequeno grupo de gatos e o cão, datados de 1945/7 numa ternura que desconcertará todo aquele que engoliu a imagem iconográfica do comunista frio, desumano, comedor de criancinhas ao pequeno almoço (não se riam porque ainda hoje existem esse espírito primário anti-comunista). No meio da solidão, da vida instável na clandestinidade, um pequeno esgar de ternura a uma gatinha desconfiada. Toda essa luta de marxistas incondicionais, insensíveis á dor da tortura, mas totalmente abertos á dor dos outros está bem retratada nesse monumento literário “Até amanha Camaradas”, no humor optimista de Eulália…
Após estes “animais de ternura”, aliados a zoomorfismos satíricos, nesse período de constante transumância política, encontraremos os trabalhos de resistência psíquica, no período de prisão na solitária, de isolamento e torturas constantes.
b) Os “desenhos da prisão” – Preso no Aljube – Penitenciária de Lisboa de 1948 a 56, só foi autorizado a ter acesso a qualquer material de escrita e desenho a partir de 1951. Após este estabelecimento prisional, passara em 56 para o Forte de Peniche (com um interregno de10 meses em 58 de novo na Penitenciária de Lisboa por questões de uma intervenção cirúrgica). Esta prisão, que os carrascos queriam manter perpetuamente só terminaria com a sua fuga em Janeiro de 1960. Foram oito anos em total isolamento, torturado fisicamente e psicologicamente. Todas as folhas de papel que entravam, eram numeradas e assinadas pelo carcereiro Lino, Director da Penitenciária. Tudo era meticulosamente controlado, espiolhado para que a sua alma revolucionária, o seu espirito inquebrantável não transbordasse para o exterior.
Não é minha função aqui, divagar pela obra genial de desenho que Álvaro Cunhal nos legou, devendo apenas reservar-me ao meu âmbito de desenhos humorísticos. Contudo, observando os pormenores desse grandes desenhos (e dos quadros), encontramos apontamentos satíricos (de inspiração Bruegeliana ou Goyesca..), grotescos do carnaval popular, essa Festa que é a expressão irreverente do subconsciente do povo, a subversão do mundo em que o poder é contestado pela sátira e alegria revolucionária. Viajar por cada desenho é percorrer todo um universo de pensamentos, de expressões onde convivem o sofrimento e a alegria, a opressão e o espírito libertário, uma denuncia e um divertimento.



Um apelo à arte que intervém na vida social é intrinsecamente
um apelo à liberdade, à imaginação, à fantasia, à descoberta e ao sonho.”
Álvaro Cunhal

Esses trabalhos, criados nessa opressão solitária, em isolamento da sociedade são um grito de sobrevivência da mente, um escape psicológico onde se vê retratado o sorriso, o riso libertário do criador perante a sua obra, no esmagamento psicológico do carcereiro perante a magnitude da obra. Nada como uma boa gargalhada para que a mente liberte as endorfinas necessárias para não se afundar no desespero. Vejo muito humor nesses desenhos, nessa grande festa, mesmo quando há momentos trágico retratados, parodiando (sem ofender) a paixão, a religião… Se o campo domina os trabalhos de maior empenho técnico e de “conteúdo” interventivo, encontramos nalguns croquis preparatórios o “burguês” citadino, numa visão naturalmente caricatural.
Cingindo-me aos pequenos desenhos, croquis, anedotas, caricaturas… Desconcerta-me a variedade de traços. Apear de se encontrar uma grande evolução técnica e estilística, de um momento para o outro, devido à espontaneidade do desenho, encontramos um trabalho que nada tem a ver com o traço característico de Cunhal, como por exemplo a pequena história do pescador, de comicidade pura. Em sentido oposto encontramos aquele grupo de desenhos, de puro cartunismo político, satirizando o imperialismo americano, a imagem do Hitler-Carcereiro barrigudo… que utilizando aquela riqueza de matizes de claro escuro tão típico da sua obra gráfica, reflete alguma influencia do desenho de imprensa francês da época.
Conheço poucas, mas há também a caricatura de amigos, alguns num cunho mais de retrato, outro com mais traços sintéticos da caricatura, mas todos eles de grande interesse técnico e artístico.
Temos assim desenhos de descontração, relaxe mental contra a opressão da tortura, mental dos carrascos, do quotidiano. Um exercício, uma profunda força de vontade de se manter à tona com todas as capacidades normais da vida, como a capacidade de se rir de si próprio, da sua posição, da vida mesmo quando a tragédia deseja submergi-lo. Essa página em branco é uma janela que se abre para a liberdade de expressão, como um espelho da sua alma em riso, em ternura, em medição sobre o que se passa na sociedade, independentemente de estar a fazer uma obra maior ou menor, porque o importante é a sua extravasão do pensamento. Pelo traço assume a consciencialização da realidade, inspirando-se na força popular (com as suas festas ou tragédias9 para se manter na luta, para manter a “boa saúde do espírito” e assim, na sombra do sofrimento nasceu a maior parte da sua obra gráfica e literária.
Depois, no exílio e na dita democracia portuguesa, a mão irreverente nunca parou, porque continuamos aprisionados num quotidiano em que os carcereiros são mais invisíveis e a luta continua pela liberdade, igualdade e fraternidade. Se para o político a mente nunca para, para o artista a mão dificilmente está quieta durante as longas reuniões, as longas discussões, ou nas presenteiras tertúlias de amigos, fazendo um pequeno retrato, um pequeno gag sob a questão em discussão, um desenho ternurenta numa carta para a família… trabalhos esses surripiados como recordação, como respeito e admiração de um amigo, de um camarada… Quantas dezenas desses trabalhos ainda ai escondidos, esquecidos em gavetas?
Como já referi, cada croqui, cada desabafo humorístico é um suspiro de um lutador, um farrapo de uma alma. São traços supérfluos? São obras menores? Ou o que é menor é a consciência dos que não conseguem ver, viajar mais além da folha de papel?

A arte, como qualquer outra ideologia, assenta na vida e lutas da sociedade.
Só pode ser explicada, interpretada, avaliada, tendo em conta essa vida e essas lutas.”
Álvaro Cunhal



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