Wednesday, June 04, 2014

Rosário Breve – “Sei onde está a Maddie e digo como chegar a ela” por Daniel Abrunheiro

1. Julgo ser acertado afirmar que: ou passamos a vida a contrariar a Infância, se ela nos foi feliz, ou a reiterá-la, no caso de triste. A Maddie ter-se-á safado de ambas as hipóteses. Ou não. Se calhar, não foi ela quem desapareceu. Se calhar, fomos nós.
2. Esmaltados a azul-cerúleo eram os púcaros de folha por que bebiam café de cafeteira caseira as mulheres da Praça. Derredor do núcleo de bancas com coisas de comer, respiravam cor e cheiros sãos as tendas com bonés de caqui, quicos de palha, leques de fantasia à espanhola, ferramentas de brincar, bolas de borracha, corta-ventos de lona. Bancas de mármore alinhavam a perfumaria de prata dos peixes. Do ar amplo sob a abóbada diáfana, chegava a fragrância do frango rodando no espeto como o ponteiro dos segundos. Aquilo era toda uma profusão de bolos crestados a açúcar fino e a amarelo-ovo em moldura de linho grosso: chegava a ser preciso enxotar deles as pombas do futuro, estas que ora mesmo espero no Jardim como estátua ázima trazendo de alhures o pão que ninguém quis. Ninguém, isto é: nós, os desaparecidos.
3. Os pais da minha geração nunca nos deixariam, nem nos deixaram jamais, a nós tão pequeninos, em casa sozinhos para ir beber copos fora. Os dentre nós portadores de infâncias felizes não sofreram, por assim dizer, de mccannização parental. Por isso me custa tanto compreender por que raio não foram os dois pequenitos extra-Maddie entregues à criação de e por famílias responsáveis. Nem por que espécie não foram, logo ali e no acto, presos os McCann. Que eu saiba, os pais do Rui Pedro não fizeram da desgraça profissão.
4. É o que V. digo: não foi a Maddie a desaparecer. Quem desaparece, são os jovens enfermeiros portugueses. São os investigadores da ciência. São os nossos assentadores de tijolo. É o que e é como V. repito: não foi nada a Maddie. Condenados ao avesso da Infância, resta-nos o orfanato da distância.
5. Vale, ainda assim, que desta pátria badameca nem todas as crianças desaparecem. Um senhor chamado Barra da Costa elencou alguns casos felizes. O rol ciranda pelas redes (ditas) sociais da net. Indica ele que, só no Ministério da Economia, há oito petizes muito mas mesmo muito felizes. Nenhum deles chegou aos trinta. Anos. O Joãozito Miguelito Folgado Verol Marques, por exemplo. Tem 24-anos-24. Aufere, o brutinho o vencimento mensal bruto de 5.069,34 €. Chamam-lhe “especialista/assessor”. (Como se alguém pudesse, sem se chamar Leonardo, aquele de Vinci, ser “especialista” seja do que for…) Na secretária ao lado da do Joãozito, batem palminhas-no-ar os outros sete patinhos-que-sabem-bem-nadar. Entre eles, a Anita, que é da Conceição Gracias Duarte. Também ela, aos 25-anos-25, é “especialista”. E vence a mesma brutidade que o Joãozito leva para casa. Abençoada. Abençoada infância. Abençoadas velhas juventudes partidárias.
Já no Ministério da Agricultura, a Joaninha Mariazinha Enes da Silva Malheiro Novo está muito chateada. Recebe menos um cêntimo do que limpam por mês os supra-referidos seus comparsas da Economia. E já tem 25-anos-25, essa por igual veterana “especialista”. Ingrata! Bem mais amarga razão de queixa há-de ter (e tem) o Ricardito Morgado do Ministério da Educação e Ciência, cuja apressável mas inapreçável “carreira”, aos 24-anos-24, não lhe rende mais do que os miseráveis patacos perfazedores de 4.505,46 €. Como fará ele para gelados e downloads do Justin Bieber é que eu não sei.
5. De modo que, enquanto eu, de pão d’ontem no saco, acumulo o bolor de infante velho à espera de pombas que não prometeram vir e na antemão de um futuro que hoje não há-de chegar amanhã, acabo por deslindar (e à borla, sem querer e sem scotlandyards-de-inglês-ver-e-português-pasmar) o paradeiro da Maddie: estará, viva e gordamente remunerada à nossa custa, nalgum desses ministérios coelheiros. O rostinho loiro de abandonada deu lugar a uma photoshop de cartão-de-jota (S ou SD, que o parasitismo juvenil não distingue letras). Pois: desaparecer, desapareceu – mas pouco.

Já quanto à verdadeira Infância (pelos menos a minha), é o que dela V. garanti antes e acima: foi-se no éter, como eu próprio agora vou, enxotado qual pomba que não chegou a vir ao pão da crónica.

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