Friday, May 16, 2014
Crónica Rosário Breve Fala o escriba por Daniel Abrunheiro
Desde
princípios de Abril passado que ando a manuscrever duas biografias. Nenhum dos
trabalhos tem como alvo alguma celebridade. Foi uma Editora amiga (minha amiga)
a encomendar-mas. Respondi logo que sim, que as fazia, claro, que o vento é
muito e o provento é pouco.
Em
ambos os casos, os meus biografados (homens ambos) são aquilo a que vulgarmente
se chama gente comum. Única,
portanto. Não é paradoxo: para mim, é no ordinário que o extraordinário vinga.
Para mim, são os anónimos que substanciam as eras, as civilizações, o que por
algum tempo fica. Alguém arrastou, içou e assentou aqueles calhaus que ainda
hoje articulam as Grandes Pirâmides – e não estou em crer que tenha sido o
Faraó.
Cada
um por si, estes dois senhores abordaram a tal Editora. Que queriam, o mais
dignamente aliás, deixar de si alguma coisa em letra impressa. Um rasto. Um
resto. Um rosto. Uma vida que se lesse tal como eles quereriam saber
escrevê-la. O Editor e eles numeraram e enumeraram os custos e os emolumentos
da coisa. Chegaram a acordo. Daí, tocou o meu telefone. E há mês e meio que
ando na coisa.
Cá
ando. Visito-lhes as infâncias, devasso-lhes as casas, miro-lhes as fotografias
amareladas pelo soro das décadas, falo-lhes com as esposas, os filhos, os
amigos, os vizinhos, os profissionais relativos. Com as amantes, não: dizem que
as não têm, que nunca as tiveram – isto do que fica escrito é de muito
respeitinho, de muita prudênciazinha. Tenho alguma pena: sempre outra pimenta
me perfumaria o sal da bionarrativa, sempre outro talozinho de coentro viria ao
mordiscar do dente. Paciência: pode ser que ainda me apareça alguma marquesa
decrépita que queira, em baskerville old
face tamanho 12, e aos olhos do mundo, desempoeirar a alcova dos seus
muitos anos.
Em
Out of Africa (África Minha, na tradução portuguesa), há páginas maravilhosas
sobre isso de a vida ser definitivamente real e realmente maravilhosa quando
passada a escrito. A também maravilhosa Karen Blixen, que as escreveu, arruma
assim o episódio consagrador da maravilha do indígena que, havendo merecido da
mulher branca dona da fazenda uma carta de identidade & favor, logrou a
eternidade em vida:
“A cada
leitura o seu rosto assumia a mesma expressão de profundo triunfo religioso e
após a leitura alisava cuidadosamente o papel, dobrava-o e metia-o no saco. A
importância do relato não diminuiu, antes aumentou com o tempo, como se para
Jogona a maior maravilha a seu respeito fosse o facto de não mudar. O passado,
que fora tão difícil de trazer à memória e que provavelmente parecia
modificar-se cada vez que ele pensava nele, havia sido captado, conquistado e
imobilizado ali, perante os seus olhos. Tinha-se transformado em História, com
o que perdera todo o perigo de variação e de sujeição às sombras da mudança.”
Ao
cabo do corrente Maio, devo ter completado a primeira; lá para Setembro, a
outra. Mas o que eu não enjeitaria mesmo, juro, seria, de uma assentada mas sem
perder o cunho individualíssimo de cada caso e de cada casa, escrever as trinta
biografias dos trabalhadores que a Viver Santarém se prepara para pôr na rua.
Essas trinta e – no reverso de cada uma, ao gosto da antítese – as
não-biografias dos nascimentos que a “reorganização
dos hospitais” do distrito de Santarém vem proibir.
Não
me parece, no entanto, que eu venha, nem a escrever tais linhas, nem a ficar
célebre por elas.
É
o que faz ser escriba por conta do Faraó.