Friday, April 18, 2014
18 de Abril 1914 - Centenário da Chegada de Fernando Correia Dias ao Brasil
FERNANDO CORREIA
DIAS E OS PIONEIROS DO MODERNISMO
NO CENTENÁRIO DA
SUA CHEGADA AO RIO DE JANEIRO A 18 DE ABRIL DE 1914
Por: Osvaldo Macedo de Sousa
Comemorando
os 120 anos do nascimento (em 2012) e o centenário da chegada ao Brasil (em
2014) a editora brasileira Batel acaba de lançar um super álbum sobre o
luso-brasileiro “Fernando Correia Dias, um poeta do traço”.
A génese Conimbricense
do Modernismo
A
História “clássica” aponta a “Exposição dos Livres”, realizada em 1911 em
Lisboa, como o “momento” revolucionário que impulsionou as artes plásticas para
a modernidade, apesar de toda ela ser super-académica, com excepção das obras
irreverentes do humorista Emmérico Nunes. Na realidade, a única diferença entre
esta e as outras que por cá se realizavam está no título – dos Livres… Contudo,
a história irreverente da caricatura portuguesa tem outra leitura desta génese
modernista, ao desviar o olhar da capital para a província, mais concretamente
para a cidade universitária de Coimbra onde a sorte confluiu, temporalmente e
ideologicamente, num grupo de jovens que no seu contacto estudantil,
descobriram o desenho e a irreverência estética, procurando no experimentalismo
gráfico desenvolver uma nova linha ideológica e estética, como expressão
pessoal e colectiva.
Em
1908, Fernando Correia Dias e Christiano Shepard Cruz mudam-se para Coimbra,
para prosseguirem os estudos liceais (na época só havia 3 Liceus em Portugal
com o Curso Complementar - 6º e 7º ano). Em 1909, pelos mesmos motivos, chega
Álvaro Cerveira Pinto. Estes três jovens, em cumplicidade com outros de tendência
mais literária, fundam o jornal do liceu “O Gorro” (14/11/1909 – 27/5/1910),
entrando logo de seguida também na aventura de “A Farça” (20/12/1909 –
27/4/1910), liderada agora por um estudante universitário, Luiz Filipe
Rodrigues. Este quarteto desenvolve uma ruptura gráfico-ideológica que, em
breve, se expandirá para o resto do país através do humor gráfico.
Correia Dias o
poeta do traço português
Do
“Grupo de Coimbra”, Fernando Correia Dias seria o único que prosseguiria na
carreira artística, já que este encontro, esta encruzilhada de irreverências,
de sonhos e utopias foi breve. Em Outubro de 1910 Christiano Cruz muda-se para
Lisboa onde evangelizará a juventude da capital, mas que, desiludido com as
traições, ciúmes e invejas do meio artístico se “suicidará” artisticamente em
1919 quando parte para África, como veterinário, deixando praticamente de
desenhar; em Novembro de 191, Álvaro Cerveira Pinto falece; em Julho de 1912,
Luiz Filipe, terminado o curso de Direito, parte para o seu Minho natal,
afastando-se aos poucos das artes, para que o jurista sério não seja incomodado
pela áurea do artista irreverente. Entretanto, ou seja entre Novembro de 1910 e
provavelmente Fevereiro de 1911, o jovem José Almada Negreiros passa por
Coimbra, onde nas boémias acabará por beber a influência artística de Correia
Dias e Luiz Filipe, para depois, em Lisboa, aceitar Christiano Cruz como seu
orientador nos primeiros passos da irreverência gráfica.
Fernando
Correia Dias nasceu, fisicamente, no Lugar da Mata – Penajoia – Lamego, a 10 de
Novembro de 1892 mas, como artista, germinou na cidade de Coimbra, nas
tertúlias boémias do grupo que se desenvolveria à volta de “O Gorro”, “A Farça”,
“A Rajada”… A pesquisa de um novo traço, de uma expressão mais livre,
conduziria o lápis de todos eles para a síntese e para a intervenção social da
arte. Correia Dias encarará, desde logo, a sua actividade como uma missão no conceito
filosófico das “artes & ofícios” ruskiniano.
De
1908 a 11 é o período de auto-descoberta, do domínio da mão, da investigação
estilística através das tertúlias, da leitura de imprensa estrangeira e de uma
brevíssima viagem a Paris. 1912 será o ano de viragem, de ruptura do projecto
de futuro vaticinado pela família, cortando com os estudos universitários,
optando por uma carreira artística.
O
facto do “Grupo de Coimbra” se ter desenvolvido à volta de projectos
jornalísticos, de tertúlias estudantis mais vocacionadas para a discussão
literária que a plástica, molda o carácter e a filosofia criativa de Fernando,
numa visão mais humanística, onde toda a expressão, todas as técnicas e meios
são fundamentais para um criador completo, desde o design básico da página,
passando pela caricatura, ilustração, cerâmica, pirogravura, marcenaria,
desenho arquitectónico, decoração de interiores à publicidade gráfica ou
decorativa de montras, não esquecendo de contribuir com um vocalizo na arte
musical.
A
deslocação do Orfeon ao Rio de Janeiro foi sendo adiada de mês a mês, de ano a
ano, mas o desafio estava lançado e o entusiasmo nunca esmoreceu, criando uma
obra extraordinária para a época, em que ultrapassou a centena de trabalhos.
Essa criação orientou o seu dia-a-dia, ao mesmo tempo que, para sobrevier, ia
respondendo às encomendas locais e nacionais, como cartazes, ex-libris, móveis,
campas funerárias, vitrais, pirogravuras, cerâmicas, design de revistas, capas,
ilustrações…numa abordagem polimórfica, impondo-o como um pioneiro nos mais
variados campos do modernismo, incluindo o primeiro auto-anúncio, estruturado
como tal com ilustração, na sua revista “A Rajada”. Este último título é a revista icónica do modernismo conimbricense
e nacional, porque aí se encontra a obra madura dos artistas do “Grupo de
Coimbra” (com natural ausência do já falecido Cerveira Pinto), com a inclusão
dos “novos”, como Almada Negreiros, Jorge Barradas, Silvio Duarte, para além de
um riquíssimo plantel de intelectuais como o Director Literário Afonso Duarte,
Nuno Simões, Vergílio Correia, Veiga Simões, João de Barros, Manuel Laranjeira,
Jaime Cortesão… O simbolismo filosófico e a síntese gráfica dominam o movimento
criativo ligado à “Renascença Portuguesa” cujo porta-voz jornalístico “A Águia”
Correia Dias também era colaborador.
Correia
Dias, para além, das colaborações em “A Águia” (e criação da capa da segunda
série), “A Sátira”, “Alma Académica” e “Ilustração Portuguesa”, foi Director
Artístico de “A Rajada”, “Gente Nova” e da projectada revista “Terra Mãe” de
que só faria a capa 0, porque foi um projecto que não vingou.
Entretanto,
a sua criatividade não parava e em 1912, como balanço desse esforço, realiza a
sua primeira exposição individual em Agosto, no Espaço Gymnasio, ao mesmo tempo
que ia decorando algumas montras com obras suas. Esta exposição magna, ou
parciais, não tinham verdadeiramente como objectivo a venda, já que necessitava
de toda essa obra para a referida exposição carioca, mas as necessidades
fizeram com que algumas peças fossem mesmo vendidas, logo substituídas por
outras que em 1914 somam o montante de 98 obras expostas em nova exposição,
agora no seu próprio ateliê, antes de seguirem para o Salão da Ilustração
Portuguesa, onde Lisboa - o país, pode descobrir a obra genial deste jovem
artista. Os críticos frisam que esta é a melhor e mais irreverente exposição
realizada naquele conceituado espaço, uma pedrada no charco amorfo de uma
capital com muitas intenções ideológicas, intenções plástico revolucionárias e
raras concretizações na ousadia e vanguardismo modernista. Surpreendeu não só a
diversidade de estilos, onde incluía pintura cubista, cerâmicas
abstraccionistas, caricaturas expressionistas, ou paisagens simbolistas, como a
diversidade técnica deste jovem artista. Surpreendeu os críticos, sem os
chocar, como o faria Amadeo de Souza-Cardoso, razão pela qual acabou por, finda
a exposição, ser logo esquecido, entrando os modernistas/orfistas/futuristas
lisboetas na modorra dos debates inconclusivos de café sem avançarem,
verdadeiramente, para a criação da obra revolucionária de vanguarda. Não era
intenção de Correia Dias ser um revolucionário, apenas queria fazer a sua obra,
fazer a sua vida a qual estava projectada como passo seguinte seguir finalmente
para o Rio de Janeiro, onde chega em Abril de 1914.
Correia Dias, o
poeta do traço modernista brasileiro
No
cais do Rio seria recebido de braços abertos pela intelectualidade literária e
jornalística que, de imediato, arranjam o Salão da Associação dos Jornalistas
para realizarem tão esperada exposição que inaugurou a 5 de Maio. O sucesso foi
tão abrangente como o de Lisboa, mas com consequências diferentes. Estava ainda
na mente de Fernando um possível seguimento para Paris, onde pensava expôr de
novo, mas a venda da maioria das peças (que não estavam à venda em Lisboa,
tendo sido contudo desfalcado de uma peça quando foi confrontado com o pedido
do Presidente da República), os múltiplos convites de trabalho da sedenta
sociedade carioca e a posterior explosão da Grande Guerra na Europa fez com que
Fernando se deixasse embalar no futuro risonho que se esboçava naquele
continente.
O
Rio de Janeiro vivia ainda um momento de reestruturação do urbanismo,
reconstruindo-se a cidade na modernidade cosmopolita, acompanhada, naturalmente,
por uma tentativa de revolução social, numa filosofia europeísta que queria
apagar a “mancha” colonial” do fazendeiro rico, para uma sociedade moderna em
que o ideário cultural procurava absorver todas as influências internacionais,
principalmente francófonas. Dentro desta dinâmica de renovação, a indústria
tipográfica luta pela recuperação do seu atraso tecnológico, não só na
qualidade de impressão, como na produção de papel, agrupando à sua volta as
mais variadas mentes criativas na pesquisa de novas linhas gráficas, novas
estéticas de design que cativem o publico, e que incentivem o consumo. Fernando
chega na hora certa para integrar e até liderar parte desse núcleo de pioneiros
do desenho gráfico e da ilustração modernista.
Chega com o epíteto de caricaturista, já que
essa era a designação comum para os desenhadores de imprensa, e continuará a
realizar, de vez em quando, caricaturas pessoais e ilustrações humorísticas,
mas a sua principal valia é que Correia Dias não era apenas um esteta, mas
também um técnico que dominava as múltiplas técnicas artesanais e mecânicas. Já
em Portugal, sendo responsável como Director Artístico de periódicos, era
também responsável pela paginação, ilustração, diafragmação e montagem, ou seja,
o homem dos sete ofícios que resolvia todos os problemas. No Brasil, apesar de
não ter de assumir todas aquelas funções, ao ser convidado para director
artístico de Gráficas e de periódicos, desenvolveu novas técnicas, novas linhas
de desenvolvimento do design gráfico carioca. A sua aposta, prazer, dedicação, foi essencialmente no
desenho gráfico das revistas, dos livros, das páginas como capista, paginador,
ilustrador de poemas / crónicas / contos… ex-librista, publicitário…
revolucionando estas artes no universo carioca. Dispersou o seu talento por
dezenas de títulos, nomeadamente: Fon-Fon / Revista da Semana / O País /
Selecta / Front / Rio / Revista Nacional / Boa Nova / D. Quixote / Apolo / A Época / A Manhã / Brazilian American / Ilustração Brasileira / O Globo / O Jornal / O Radical / O
Malho / A Rajada / Arvore Nova / Terra de Sol / Ilustração Musical / O
Cruzeiro / Festa / A Nação / Diário de Notícias…
Ele viveu toda a sua vida
preferencialmente nos meios literários e a poesia será sempre a linha
filosófica, o traço orientador da sua vida e da sua criatividade. Esse risco
literário-grafico foi desenvolvido como uma construção lírica e cenográfica da
página. Não é um estilo fechado à volta da sua assinatura, nem uma corrente
estética uniformizada por modismos, mas sim uma explosão da versatilidade
criativa, da genialidade polifacética do artista que, em vez de impor
ditatorialmente uma estética pessoal, adapta-se em cada criação a cada obra,
dialogando, comungando com o escritor a sua veia estilística, respeitando cada
conteúdo numa interpretação lírica objectiva, com cenografias que tanto podem
viajar até à iluminura mediavelista, como nos transportar ao fantástico
arabesco, do exotismo do extremo-oriente ao naturalismo puro, do barroco ao
sintético, do modernismo ao deco… com a sombra do simbolismo sempre presente.
Esta mesma filosofia criativa reinará no design dos livros, onde foi pioneiro
de uma escola gráfica modernista brasileira, com uma produção que ultrapassa as
cinco dezenas de títulos.
Entretanto, temos de referir que, se em
Portugal Correia Dias usou temporariamente o pseudónimo de “tira-linhas”, a
partir de 1917 viverá uma vida dupla de criatividade usando o seu próprio nome
ou assinando como “esp”, uma marca iconográfica que sugere um pseudónimo, ao
mesmo tempo que, fazendo uma análise caligráfica,
podemos defender que mais não é que as suas iniciais “cd” em escrita corrida.
Sendo “esp” ou “cd”, é uma assinatura que convivendo com a “correiadias”, veio
dificultar a identificação de muitas das suas obras, já que não sendo um
anagrama bem legível pelos historiadores de hoje, faz com que muitos deles não
lhe atribuam as referidas obras. Isto acontece a partir de 1918 e, segundo
creio, usada pela primeira vez na "D. Quixote".
Mas a sua criatividade multifacetada não se restringiu ao
universo tipográfico, já que a sua irreverência também abordou as artes
decorativas, nessa função social modernista ruskiniana de embelezar o quotidiano. A
sua actividade abordou o mobiliário de casa ou urbano, a tapeçaria, a marroquinaria,
o metal, a cerâmica… numa exploração preferencial por uma arte nacionalista (corrente
nativista) em que o deco-carioca, moldado pela recuperação da arte amazónica marajoara,
teve especial relevo. O neo-marajoara será um estilo iconográfico de Correia
Dias que deixará marca profunda no Rio dos anos vinte. Infelizmente, devido à
dificuldade de identificação da autoria neste género de obras “artesanais”, a
maior parte das suas criações vivem anonimamente nas residências da cidade
carioca.
Uma
visita à mãe pátria, em vez de lhe renovar a alma na recepção calorosa dos
amigos e familiares por cá deixados, resultou na ampliação da solidão perante a
ausência total de amigos como Fernando Pessoa, Almada Negreiros, Balha e Melo…
que o evitaram; perante a frustração da realização de uma prometida exposição
das obras criadas durante a viagem; perante a situação de não ser mais do que o
marido da grande sensação da viagem, a jovem e bela Cecília Meirelles; a
conferencista de sucesso com o triunfo da sua poesia e dos seus desenhos que
até mereceram exposição…
Setenta anos após este dramático desaparecimento, é pois tempo de recuperar essa obra “perdida” nos baús do constrangimento familiar, no esquecimento das memórias efémeras das hemerotecas, alfarrabistas e historiadores desatentos. É o momento de se abrirem as arcas, de desempoeirar a memória, recuperar o esplendor desta obra genial deste pioneiro do modernismo luso-brasileiro e dar-lhe o verdadeiro destaque na história de arte.
Bibliografia: Fernando Correia Dias um
Poeta do Traço” de Osvaldo Macedo de Sousa Editora Batel (Rio de Janeiro 2013)