Thursday, January 23, 2014
Crónica Rosário Breve - A mesma história duas vezes por Daniel Abrunheiro
Por ocasião
dos primeiros dias do ano corrente, apareceu vadiando pelas imediações do
bairro onde assentei praça para a vida um gato. Bonito, masculino, sozinho, o
todo dele parecia-se demasiado com o nada, mercê do golpe sem mercê do
abandono. Pela esplanada da pastelaria, o animal roçava-se pelas pernas humanas
dos sentados, mais mendigando afagos na cabeça do que comida. Conto-me entre as
pessoas que se condoeram do bicho, decerto perdido de carinhos até então usufruídos.
Não mostrava feridas para além da do olhar, que catrapiscava desamparo a milhas
longas. Um dia, na passagem coberta entre prédios, apareceram duas taças
plásticas, uma com água fresca e outra com ração seca própria para felídeos.
Comecei a trazer a minha contribuição diária.
Pelos
mesmos entretantos, ali-além, à beira de uma vala que delimita a oriente um
terreiro de feira, fiz outra descoberta. Existe nesse azimute um cubículo
pré-fabricado, desses que servem de guarita de billheteira para os certames
pimbas tão ao gosto da populaça de alegada ascendência lusitana. Como o gato
referido supra, também o cubículo amanh’anoitece todos os dias em abandono. Até
começar o ano.
Aconteceu
que, debruçando-me eu para içar do chão o guarda-chuva, que se me escapulira do
antebraço do lado do relógio, me foi dado sentir que a minha pluvial e
proverbial solidão não estava tão sozinha quão de costume. E não estava:
reerguido, vi pela janela estilhaçada da ex-bilheteira um homem quase ainda rapaz
lá dentro. Também sozinho, também masculino, talvez bonito quando criança com
casa de pais ou mulher. Estava lá dentro deitado, por paradoxo, entre cartões
de embalar frigoríficos para se aquecer, que o Janeiro tem andado de modos
frígidos. A minha cabeça assustou-o. Como que devassado, mirou-me em cautelas
defensivas. Tivera ele asas – e estou certo que teria despassarado dali num
fósforo de tempo. Por respeito, por embaraço também, murmurei-lhe Desculpe e despassarei eu de chapéu,
guarda-chuva e gabardina, que até parecia o Jacques Tati. Na crónica que de
imediato senti não poder deixar de escrever, guardo o olhar dele: fulgia
daquela brasa álgida tão própria dos que perderam tudo menos a certeza de a
vida ser uma estéril meretriz quando lhe apetece.
Levei-me
para outra geografia onde as chuvas não doessem tanto na almácega do coração.
Tão cedo, não volto lá a passar. Não é que eu não tenha em casa comida de gente
para partilhar com ele. O meu receio é que, levando-lhe algum pão, me distraia
a ponto de, sem que ele mo peça ou de mim o espere, ainda acabe por lhe fazer
algum afago na cabeça.