Tuesday, January 07, 2014

Crónica Rosário Breve - Meninos-da-trapeira também nós somos, enfim por Daniel Abrunheiro

A dobradiça que rangeu o pórtico da passagem do ano 13 para o ano 14 do corrente milénio nosso fez, como é do crepuscular costume dos ocasos, os seus óbitos ilustres e as suas terminações anónimas.
Gente comum houve que deixou de haver por o mar físico a ter levado. E gente outra foi levada pelo mar do Tempo, que ainda assim não logrou, dados dela o gigantismo colossal e dela o nome claro, roubar-no-la de todo. Falo de Nelson Mandela e de Eusébio da Silva Ferreira.
Tanto ao tribuno e estadista sul-africano como ao incomparável sports(gentle)man afroportuguês, muito encómio foi em boa-fé tecido, em uma impressionante universalidade que só pode resultar do mais elementar consenso em matrimónio com o mais curial bom-senso. Do passamento deste último, resultou-nos um baque no coração que nos trouxe à boca o amargor frustre do golo sofrido na própria baliza, que é como quem diz, sem nacional-sentimentalismos tolos, Pátria.
Muito a quente do acontecimento obituário deste homem que tinha pelo menos tanto de pantera negra quanto de gaivota branca, desta figura que como tão poucos humanos irmanou Beleza e Graça em sinonímia pura, escrevi, como se sobre os martirizados joelhos mesmos dele, umas breves horas depois da alvorada triste que determinou o furto, ao colar do Mundo, de tal pérola. Estas foram tais linhas:

Órfãos do menino-da-trapeira desde a madrugad’agora

Leiria, manhã de domingo, 5 de Janeiro de 2014

Órfãos do menino-da-trapeira desde a madrugad’agora:às 3h30m, morreu Eusébio, o grande senhor Eusébio da Silva Ferreira, que deixa viúva Flora e viúvo Portugal. Nascera em Moçambique a 25 de Janeiro de 1942. Chamaram-lhe depois Pantera. Negra, naturalmente. Vi-o três vezes nas nossas vidas: uma, em Coimbra (perdeu por 2-0 com a Académica); outra, em Coimbra também (os encarnados deram 0-4 ao meu União); e outra, em Lisboa, no Cemitério do Alto de São João, tinha ele lá ido fazer as honras a alguém do dirigismo futeboleiro, enquanto, quanto a mim, passeava por ali lendo lápides, visitando o derradeiro sítio de Ramalho Ortigão, sentindo coisas para escreviver. Sinto o mesmo, com exactidão o mesmo, que senti
quando, no ocaso do ano 1999, nos morreu a divina Amália: dois colossos pátrios, duas pessoas melhores, dois artistas de uma época que a eles deve, em boa ho(n)ra, ser imorredoura chamada.
(E trapeira é bola de trapo, na terra batida da antiga Lourenço Marques.)

Parece-me não ter andado em grande desacerto isto escrevendo. Lamento tão-só, a reboque de certa justíssima observação do meu Amigo Júlio Murraças no Facebook no próprio dia das grandes exéquias e das altas honras, não poder fazê-lo também a propósito de todos e de cada um que este País diariamente aniquila sem ao menos lhes volver meã a haste da Bandeira:
o idoso que comete o improvável crime geriátrico do envelhecimento e a quem uma reforma obscenamente miserável proíbe o medicamento paliativo e a higiene da dignidade;
o moço que incorre na insensatez de estudar e a quem a voracidade da besta hiante do troikapitalismo interdita o futuro agora-já;
o jornaleiro agrícola que, loucamente contumaz no intuito de fazer das próprias mãos duas estrelas férteis, vê impotente que e como lhe (trans)tornam as searas em campos de golfe, para exclusivo e regalado usufruto de inúteis plutocratas que devem pensar que o pão cresce das árvores e o azeite pinga dos intervalos da chuva;
o funcionário público “promovido” de repente a avatar de todos os males sistémicos deste mundo e do outro, mas cuja verdadeira origem, a dos males, reside sem discussão na chulice da corja parasitária que tão bem sabemos quem seja mas que também não deixamos, pontuais, de reeleger ad infinitum, à maneira de fedelhos estúpidos que se deitam com o papão nosso de cada dia;
e toda a demais honesta gente a quem Portugal, tirante o bom Eusébio, gosta de fazer mal porque o Bem é um luxo demasiado requintado para desperdiçar com pelintras.
Nelson Eusébio Mandela da Silva Ferreira nunca nos deixaram, porém, de mostrar que o contrário não só é possível como obrigatório.

Bem-hajam por isso, lá na éter-eternidade que os não deixa morrer, como a nós deixa.

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