Tuesday, December 31, 2013
Remorsos de um encenador de teatro por FILIPE LA FÉRIA*29 dezembro 2013 no Diário de Notícias
Remorsos
de um encenador de teatro por FILIPE LA FÉRIA*29 dezembro 2013 no
Diário de Notícias
Muita gente me acusa de
ser o culpado do estado de desgraça do nosso país por ter reprovado Pedro
Passos Coelho numa audição em que eu procurava um cantor para fazer parte do
elenco de My Fair Lady. Até o espertíssimo
gato fedorento Ricardo Araújo Pereira já afirmou que eu devia ser chicoteado em
público todos os dias até Passos Coelho desistir de ser primeiro-ministro, como
insistentemente o aconselha o Dr. Soares.
Na verdade, confesso que
em 2002, quando preparava os ensaios para levar à cena My Fair Lady fiz uma série de audições a cantores para
procurar o intérprete do galã apaixonado por Elisa Doolittle, a pobre vendedora
de flores do Covent Garden, personagem saída da cabeça brincalhona e
maniqueísta de Bernard Shaw, genial dramaturgo que no seu tempo se fartou de
gozar com políticos. Entre muitos concorrentes à audição, apareceu Pedro Passos
Coelho de jeans, voz colocada, educadíssimo e
bem-falante. Era aluno de Cristina de Castro, uma excelente cantora dos tempos
de glória do São Carlos que tinha sido escolhida por Maria Callas para
contracenar com a diva naTraviata quando da sua passagem
histórica por Lisboa. As recomendações portanto não podiam ser melhores e a
prova foi convincente. Porém, Passos Coelho era barítono e a partitura exigia
um tenor. Foi por essa pequena idiossincrasia vocal que Passos Coelho não foi
aceite, o que veio a ditar o futuro do jovem aspirante a cantor que, em breve,
ascenderia a actor protagonista do perverso musical da política. Se não fosse a
sua tessitura de voz de barítono, hoje estaria no palco do Politeama na Grande Revista à Portuguesa a dar à perna com o João
Baião, a Marina Mota, a Maria Vieira, e talvez fosse muitíssimo mais feliz.
Diria mal da forma como o Estado trata a cultura em Portugal, revoltar-se-ia
com os impostos que o teatro é obrigado a pagar, saberia que um bilhete que é
vendido ao público a dez euros, sete vão para o Estado, teria um ataque de
nervos contra os lobbies da Secretaria de Estado da Cultura, há quarenta anos
sempre os mesmos... não saberia sequer o nome do obscuro e discretíssimo
secretário da Cultura oficial, não perceberia porque em Portugal não há uma Lei
do Mecenato que permita aos produtores de espectáculos cativar os mecenas, tal
é a volúpia cega dos impostos, saberia que cada vez mais há artistas no
desemprego em condições miserabilistas e degradantes, que fazer teatro, cinema
ou arte em Portugal se tornou um acto de loucura e de militância
esquizofrénica. Mas a cantar no palco do Politeama estaria bem longe da
bomba-relógio do Dr. Paulo Portas, cada vez mais fulgurante como pop-star, da troika, agora terrível e pós-seguramente
medonha, das reuniões de quinta-feira com o Senhor Professor, do Gaspar que se
pisgou para o Banco de Portugal, dos enredos do partido bem mais enfadonhas do
que as animadas tricas dos bastidores do teatro, das reuniões intermináveis com
os alucinados ministros, das manifestações dos professores, dos polícias, dos
funcionários públicos, dos pescadores, dos estivadores, dos reformados, dos
trabalhadores de tudo o que mexe e não mexe em cima deste desgraçado país, ah!,
e das sentenças do Palácio Ratton que agora são chamadas para tudo, só para
tramarem a cabeça intervencionada do pobre Pedrinho... não bastava já as
constantes birrinhas do Tó Zé Seguro, as conversas da tanga do Dr. Durão
Barroso, o charme cínico e discreto de Madame Christine Lagarde, as leoninas
exigências da mandona da Europa para Bruxelas assinar a porcaria do cheque.
Valha-me o Papa Francisco que tudo isto é de mais para um barítono!
Assumo o meu mais
profundo remorso. Devia ter proporcionado ao rapaz um futuro mais
insignificante mas mais feliz. Mas, tal como Elisa Doolittle, que depois de ser
uma grande dama prefere voltar a vender flores no mercado de Covent Garden,
talvez o nosso herói renegue todas as vaidades e vicissitudes da política e
suba ao palco do Politeama para interpretar a versão pobrezinha mas bem
portuguesa de Os Miseráveis!
PS. O artigo foi escrito em português antigo. No Teatro Politeama nem as
bailarinas russas aderiram ao Acordo Ortográfico.
* Encenador e
dramaturgo. Diplomou-se em Londres com uma bolsa da Fundação Gulbenkian, foi
diretor da Casa da Comédia. Com "What happened to Madalena Iglésias"
iniciou e revitalizou o teatro ligeiro