Tuesday, December 03, 2013
Crónica Rosário Breve - Mea non vestra culpa por Daniel Abrunheiro
Já
uma vez aqui mesmo Vo-lo disse, pelo que é mesmo aqui que Vo-lo reitero: há
três décadas e meia que PS e PSD, com o ocasional penduricalho do CDS-PP,
alternam à boca do tacho da desgovernação da Pátria – portanto a culpa é minha.
É
minha – mas não é dos circunstantes com quem compartilho o usufruto cafeíno do
café-galeria onde todos os dias, a partir das seis da manhã, matino os ossos, o
lápis e o meu olhar de papel. Estes homens e estas mulheres são todas e todos
de uma dignidade que não merece, nem de perto nem ao longe, ser amesquinhada
como anda a sê-lo com mais agravo do que apelo.
Não
duvideis: estas pessoas são como Vós e como eu pretendo ser, a compostura delas
é a Vossa mesma, que reflectir pretendo. Permiti-me, pois, que Vo-las descreva
com o, sumário embora, apuro possível:
–
o Quarteto de Mulheres-da-Limpeza:
começaram, crianças ainda, a contribuir para pão & sabão em casa; pouca
escola lhes deram; batidas ora pelos maridos como pelos pais outrora; por luxo
único, esta chávena quente e parlamentar de cada madrugada; sei quando recebem
o pouquíssimo que lhes pagam: é quando se permitem a extravagância mensal do
pastel-de-nata; acho-as bonitas a todas, uma por uma; e considero-as não menos
do que princesas reais. Ou canoas respiratórias ancoradas na precária angra do
pão-de-cada-dia.
–
o Assentador-de-Pavimentos: é rapaz
que não vai para criança, por isso mesmo que já cinco décadas e meia de nascido
o coroam; gosto das mãos dele: parecem-me estrelas-do-mar capazes de tornar
coral a pedra-pomes da subsistência; já o espinhaço batido se lhe adunca em
fadiga óssea, é certo – mas certo é por igual não ser ele homem para desistir
de merecer o que come, amailos filhos e a mulher, amanhã.
–
a Estagiária-de-Farmácia: era para
ter sido médica, pelos sonhos de prestígio social que por ela e em vez dela
tinham os pais e os avós, mas uma certa desvocação escolar para as Ciências interditou-lhe
a formação clínica, pelo que se vinga em xaropes e supositórios do que nem
Esculápio nem Hipócrates quiseram dela; é delicada como uma gardénia revestida
a seda; namora um barbudo que mete música afro-brasileira numa espelunca de
alterne aqui perto; enternece-me sempre muito o modo como, cedinho, esparge derredor
si os bons-dias: como se francamente no-los desejara; mas, à boca-pequena, já
se comenta que a directora-técnica da farmácia lhe lancetou que lugar efectivo,
no fim do estágio, nem pensar.
Mais
exemplos titulares vos escreve(da)ria, mas para tal são poucas as colunas que o
Jornal me dá. Valham-Vos os supra-alinhados por paradigma, ainda assim.
O
Tempo é o Rio que a todos nos usa por margens. Saibamos ao menos, como Ele,
viver em moção, prescindindo ou desistindo jamais da fundamental dignidade que
é a de não morrer sem ter vivido.
Há
pelo menos trinta e cinco anos que Vós não cuidais muito disso, eu sei. Nem
Vós, nem aqueles de “lá de cima”.
Como
aliás sei que a culpa de tal é minha.