Saturday, September 14, 2013
Crónica Rosário Breve - Os Trapos por Daniel Abrunheiro
Envelhecemos,
deveras e de vez, quando deixamos de praticar a eternidade. (A de cada dia,
digo, que a não a outra, a de mentira das seitas autistas-evangélicas, essas
matilhas engravatadas que andam de Deus na boca como cães que não desmordem o
osso.)
A
eternidade é aquilo que as crianças são de cor – e às cores. Certa idade madura
existe que, não desprovida de lucidez, logra até assomos de felicidade,
consistindo esta num ardil simples. É o ardil do alzheimer voluntário: esquecer
a morte, deixando-a dissipar-se como pretérito hélio de balão passado, inútil
(e nociva até) para o dia-a-dia.
Mas os
velhos existem – e nem todos o são pela idade. Todos os dias os vejo por esta
galeria que erigi em observatório mundial. Andam devagar, rasteirados pela
exasperante areia que (n)os não deixa fugir, essa areia de quando, nos sonhos,
o pânico nos congela o sangue. Parecem-me pombas golpeadas pelo falcão da
irreversibilidade. São de uma castidade involuntária. O mais alto acontecimento
deles é respirar ainda, ao alto de uma digestão de lâminas dispépticas. Casas
que ameaçam derrocada, não têm a quem abrir a janela do que viveram. Têm pena,
e raiva até, de que deles saibamos tão-só a história de irem morrer como se para
nada mais houvessem nascido e sido. Semelham, um a um, lojas de centro
comercial que, uma a uma, se liquidam as existências antes de, de vez e
deveras, fecharem a porta e dar a chave ao gato.
Volvem-se
aquíferos tártaros pelos mesmos poros por onde outrora jorraram salubridades
chamadas filhos. Hibernam em pleno
Verão, imunes à estupidez malévola dos netos, que entretanto ascenderam ao
púlpito das freguesias, dos municípios, das secretarias de Estado e dos
sobreiros trocados por submarinos em vez de, ao menos, helicópteros para o
bombeiral.
Os velhos
são a ominosa e luminosa evidência, por obscuro contraste, de que tudo arde.
Não só, como hoje, à inclemência de Setembro, a tarde – mas a própria vida, a
vida mesmo. Alienados, por deles e para eles, feliz nesciência, das tropelias
malsãs do quotidiano, vegetam iodadamente numa espécie de algodão já surdo às
premências mais básicas: comer um morango entre risadas de champanhe, soletrar
sílaba a sílaba a carnação suculenta & suco & lenta de um ser que se
nos dispa, reler Cesário Verde sem segundo resgate da Troika – e não necessitar
ainda da perícia benevolente do doutor Vítor Martins do Hospital de Santarém,
que, por assim dizer, miniaturiza no coração a vontade pacemaker de viver, nem que seja só mais um bocadito.
(Explicação,
em prol e/ou prece da cumplicidade do meu leitor: dá-me sempre para isto, cada
vez que Setembro volta a fingir que é o mesmo Setembro de antigamente. “Para isto”: isto é: para,
verso/velho/a/velho/verso, reiterar a necessidade outonal do húmus, que é a
latência polar do Inverno, que sagra à Vivaldi e à Stravinsky a Primavera que
tudo, como tudo e como vereis, Verão será.)
Foi que,
como esta manhã, mal ainda se anilando a alva no alvor entrecortado do morse
dos estores e raspando-me eu a barba, o pequeno milagre da repetição quis ser
mais novo do que trapo: ao espelho, a barba era minha que se ia, mas vinha dos
olhos o olhar que foi, e há-de ser, o do meu Pai, esse trapo.