Sunday, June 09, 2013

Rosário Breve Carlos, Ionesco e N’Dinga por Daniel Abrunheiro

Os livros bons são os que procuram (e encontram) gente que coincida com eles. Há anos que porfio as estopinhas para ser capaz de um – até hoje, porém, nem um dos que já fiz ao desbarato dos anos me trouxe população a suficiente para uma matraquilhada completa: a minha carreira por assim dizer literária tem sido jogar sozinho ao varão da baliza e ao idem do ataque. Cheiro a óleo e a pano de desperdício, mas coincido comigo. É justo. Mas.
Mas, aqui há dias poucos, aconteceu-me uma epifania gentil. Foi no Café Colonial (o da Rosa, vós sabeis, aquele ali além). É lá que me dedico às minhas três principais tarefas: escrever, escreviver & escrebeber. Cada uma leva às outras duas. (Posto assim, parece magia – e é-a.)
Foi portanto no Colonial da Rosa. Tinha eu acabado de revisitar uma frase portentosa de um gajo romeno chamado Ionesco: “Cada um de nós é o primeiro a morrer.” Senti-me logo coincidido. Verdade. Um gajo nasce como toda a gente, mas morre só como só um. A vida é tipo Maria-vem-como-as-outras. A morte faz-nos príncipes, aniversariantes do mesmo eterno dia. Pena que tal palaciana glória dure tão pouco, pena tanto gás para tão pouco champanhe. Mas adiante.  
Foi então que ele entrou. Chama-se Carlos. Cavalheiro freguês, há bem mais décadas do que eu, do Colonial, é de olhos líquidos, vívidos e vividos. Delicado no falar e no manusear, a primeira e talvez mais definitiva impressão que dá – é a de alguém que gosta de viver. E do que viveu. E do que viver lhe falta, por tanta falta sentir que viver lhe faz.
Este senhor costuma tomar o abatanado e a meia-torrada em mesa da minha vizinha. Deve ter pensado, se calhar mal, que eu seria capaz de escrever a história dele. Que é esta:
A 17 de Julho de 2005 foi-lhe diagnosticado um linfoma sublingual. Cancro. Cancro tem seis letras, a primeira é C – como Carlos. Ele tinha completado 57 anos oito dias antes: era um rapaz, portanto. Moço de mais para saber se Ionesco está ou não certo.
Até então, uma vida de trabalho resgatada aos trabalhos da vida: moço-de-recados aos 13 anos, contabilista aos 19 (idade em que se casa com outra criança como ele), supervisor turístico aos 24. Falida a Torralta para que trabalhava, embarca a partir dos primeiros tempos pós-25 de Abril no ofício de “olheiro” de futebol em África. Para Vitória de Guimarães, Desportivo de Chaves, Leixões, Rio Ave e FCP, viaja e “olha” por Gana, Zimbabwe, Congo(s), Mali.
Acumulando-se representante de vinhos alentejanos e durienses na zona Centro do País, conhece finalmente Ivone, que para médica estudava em Coimbra. Casa-se com ela logo que pôde, que só olhar, mesmo por ofício, não chega, mesmo para o caçador de talentos nela, mulher, confirmado. Trinta anos passam num fósforo. Até esse 17 de Julho de 2005. Linfoma. Na base da língua. Cancro. A morte na boca antes de no papo.
– Daniel, é uma rua escura. Não tem luz. Não tem janelas.”
Mas tem Ivone.
Sabe o povo, e di-lo bem, que quem se ionesca ao mar, ivona-se em terra. Médica sempre, mas esposa para sempre, revolve céus e lezírias em prol do pai da sua Catarina. Voltam ambos à Coimbra do tempo primeiro em comum. Vão ao IPO, onde o(s) acolhe(m) o doutor Arnaldo Guimarães e respectiva equipa.
Há oito anos que a tal “rua” voltou a ter “janelas”.
Digo eu, sem errar muito talvez, que janelas são o lapso espácio-temporal por que transitam o dentro e o fora.

É neste ponto que o Carlos, levando como todos os dias o almoço à mãe (aos 64 anos, ainda tem mãe, o danado, o felizardo), me sopra uma manchete que o Tempo me torna impublicável: sussurra-me ele que, há coisa de valentes anos, esteve vai-não-vem para trazer o Ionesco para o Guimarães, mas que a coisa só se não concretizou porque os vitorianos preferiram o zairense N’Dinga, que não era romeno nem jamais constou que, como Carlos, fosse gajo para morrer primeiro, ou para, restabelecida a igualdade no marcador, não ser, para sempre, o primeiro a viver.

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