Tuesday, May 14, 2013

Crónica Rosário Breve - Felicidade é mais depressa açúcar dos caramelos que azeite dos iluminados por Daniel Abrunheiro



Agora já não, que o tomou já a calvície sem retorno, mas ele era naquele tempo de uma cabeleira lustral qual tocha de gel. O mesmo espaço esférico-cabeçal funcionava au ralenti de uma acefalia atinente ao seu linguajar pulha e à sua estroinice miseranda. Mas ela era dele assim mesmo que gostava. Isto do amor pode ter muito que se lhe repita, mas, no fundo, nada tem que se lhe inove.
Nunca lhe conhecemos o piripíri de uma ideia, o mentol de uma graça, a pimenta de uma hipótese, o coentro de uma opinião perfumada de fundamento. Invariável, inevitavelmente, o seu raciocínio íngreme estatelava-o, nunca sem estrépito e jamais sem edemas, na cloaca petrificada do guano mais endurecido. Mas que tal lho dissessem a ela mil vezes, que mil e uma e mais cem ela o queria e curava e amava e babujava.
Dele, lesmice e mesmice eram uma só e mesma coisice. Se lhe causticavam uma toleima, cacarejava todo espalha-penas com aquela estupidez indignada das galinhas-carecas quando um cachorro pueril quer brincar às cadelas com elas. Só podia, por tudo isto, ser carimbado daquele terrível apodo que é a derradeira coisa que se pode chamar a um zé-ninguém: era bom-rapaz. Não fazia mal e nunca mal fez, para ela: porque ela hipostasiava nele a essência mesma do santo, cuidada e tomada a vulgaridade piolhosa por insígnia a mais virtuosa.
A ignorância envelheceu-o em novo, como é quilate pindérico da beterraba que se julga ananás. Rangia de incompreensão à face de paráfrases simples como “Quando mais o euromerkel sobe, mais o Alcabideche”. Rábulas e fábulas de figurado sentido moral não puderam nunca adentrar-lhe o maciço granítico sobre que os antigos usavam chapéu e em cujo cocuruto os rastas de jamaicana import-imitação espessam o esterco da grenha. Mas ela? Oh se ela alguma vez outro peso de alimária quisera que lhe amulatasse a alvura!
Ele tinha dinheiro. Deixara-lho uma avó, figurinha de cera que conseguiu, chegando embora aos 94 anos, não estourar tudo em padres. Nisso, vá lá e venha cá, não foi ele burro: vivia, sem abrir sequer uma mola de roupa, dos juros dessa maquia que nunca viu sol. Disso – e das rendas de dois prédios (um com farmácia e tudo no piso térreo) sitos no miolo comercial mais nobre da Vila. Naturalmente, ela também disso gostava muito nele, dele emprenhando a tempo de salvaguardar para si o caldo e o cabeleireiro da velhice amailo um fiat-uno para cada um dos quatro moços que pariu sem dor na glória das estruturas de hélice do ADN auto-replicativo.  
Foram, é claro, muitas vezes a Fátima, mas sempre pela Marateca, à guisa de quem ruma ao Algarve da fé. Uma vez até se deram à extravagância de ir ao Complexo do Bonito, no Entroncamento, onde gozaram a boa sorte de assistir àquela memorável e dramática conquista da Taça do Ribatejo pelos rapazes juniores do União de Tomar frente aos seus não menos bravos homólogos do Alcanenense. No fim do prélio, foram os dois com sua/deles quaternária prole fedelha alambazar-se de enguias a Escaroupim, jóia de terra-água-ar de Salvaterra de Magos, por acaso até no mesmo dia em que os fotógrafos Zé Freitas e Tó Vieira por lá andavam também, aquele como de costume a fotografar passarocos e este sem fotografar fosse o que fosse por, como de costume, andar de óptica toda obturada nas gajas.
O tempo entretanto passou (que é aliás o que ele mais faz nos entretantos) e tornou-se hoje.
Ora, acontece que hoje é precisamente o dia em que mais nada tenho a dizer, portanto não digo.

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