Sunday, February 10, 2013
UMA MANHÃ CLARAMENTE PORTUGUESA por Daniel Abrunheira
Leiria, 9/II/2013, sábado
Sim, é uma manhã claramente portuguesa.
A luz é toda. Dos lados da Taberna lagoa (fundada em 1930), o Rio faz bem só de
ser olhado. As aves regurgitam saúde no azul muito branco. De manhã, amandei-me
uma posta de bacalhau desfiado, alhado e azeitado em punheta. À tarde, há União
de Leiria-Marrazes no estádio. Um homem lê A Bolamurmurando labiações
soletrantes. Passa de BMW o Rodrigues da farmácia com a amante. No Lagoa, um
solitário de botas de cavador trincha um belo pedaço de orelheira amaila uma
meia litrada de roxo. Três rapazes do chá-mon enrolam mortalhas de papel-bíblia
com tabaco-de-onça marca Águia. A Noémia da confeitaria coça uma mama
distraída enquanto se prognostica a irremediabilidade do amor contrariado que
há tantos anos nutre pelo Pascoal dos plásticos, que nunca s’há-de separar da
mulher, aquela bisca, aquela manilha, aquela sota. Cato pão esmifrado na relva
dos pardais: tinha, como eu, o pão, envelhecido em casa. Ando à luz – e dou por
mim sem pensar nos meus amados mortos há mais de meia hora: um recorde
olímpico. Sou o de blusão verde-ranho pela beira-Lis. Sou o contabilista de
instantes inofensivos. Ao contrário do que vaticinava o meu Professor Elias,
acabei por não salvar o mundo. Em compensação, apascento sílabas que querem ser
quilovátios. A vida é bonita do lado esquerdo. Pensar que um dia as moléculas
se rompem para se tornarem outras corporações. À noite, no Louriçal, há noite
de fados com a Cristina, filha júnior do João Portulez. No mostrador, um naco
de presunto ensina ao olhar a púrpura emoldurada a ouro-ranço. Uma mosca dura
como um fragmento de botelha patanisca-se em mármore. Há coisas que podem e
devem ser ditas, Noémia. Não me chamo Pascoal, sou tão-só feliz à beira-Lis – e
sou, claramente, sou, por minhas voz & vez, um matutino claramente
português.