Saturday, December 29, 2012
Crónica persa - Rosário Breve crónica de Daniel Abrunheiro
Dona
Gerenciana Ávila de Montenegro sofreu, aos 87 anos de idade, a vontade
peregrina de casar-se.
Virgem
devota de horóscopo e condição, era senhora de seus dela haveres, plural que
incluía um gato persa, um naperon português, um jarrão da China e um pastel de
Tentúgal. Mais pinhais a perder vista, apartamentos na Lapa lisbonense, dois
petroleiros e uma caderneta da Caixa Agrícola com mais dígitos que eu caspa. Objecto
lúbrico de seu dela amor era um rapaz de breves 22 anos chamado Arnaldo. O qual
era marceneiro por castigo, que desistir de estudar no 8º ano dá nisto. Alto,
moreno, cabelo negro até raias de azul, espadaúdo, saudável como um pêssego e
portador de beiço grosso peliculado de saliva viva, o rapaz gelatinou as
deferências cardíacas de Dona Gerenciana, a pobre que pensava saber tudo da
vida até que o amor a arrastou em vórtice para os arrais desta crónica. Ventando-se
de nipónico leque à janela, a velha senhora esperava as nove menos cinco da
manhã e os três depois das seis da tarde de cada dia todos os dias, menos
domingos e meios sábados. Eram as horas a que passava Arnaldo, tão insolente
como inocente, deus de motorizada a caminho de setenta contos por mês. Belo
como o sol, fresco como a lua, Arnaldo lapijava, sem o saber, uma ruga nova,
cada vez que passava, no rosto já pergaminhado de Dona Gerenciana. Ele não se
sabia amado por toda aquela renda. O
rolo dos meses fez-se, num riscar de fósforo, dois anos. Aos 89 de idade, Dona
Gerenciana desfalecia mas não falecia, posto que o amor dá rijezas inauditas a
quem o sofre. Arnaldo, sempre marceneiro, sempre sem saber, passava sem saber
que ficava, mais fundo ficado e fincado no coração de melancia de Dona
Gerenciana. Esta história não é para rir, mas à vontade o faça quem a isto ache
graça. O gato persa, bufando de mau ciúme, escalavrou de sangue as varetas
varizentas de Dona Gerenciana, que estiolava de amor a uma janela que se
apagava. Arnaldo acabou arranjando outro emprego, pelo que deixou de passar.
Dona Gerenciana murchou como uma jardineira. As orelhas antigas fizeram-se-lhe
cera translúcida. O olhar, sumido pelo abuso da luz de quase um século,
amortizou-se-lhe como um resto de dívida. As sardas do peito uniram-se-lhe de
negro. Os joanetes pantufados romperam pela parede, causando mossas no reboco. Até
que, uma quarta-feira, Dona Gerenciana desistiu da janela. Recuou em passinhos
curtos de monge budista até o sofá, onde se lhe desmoronou o amor, todo o amor.
Chorou de mansinho a conta exacta de sal: se há coisa que a velhice traz, é a
medida certa do pranto. Depois, a coisa passou. Todas as coisas: o rapaz, a
juventude, a motorizada, a esperança, a saúde, a espera, a luz, a loucura.
Passou tudo. A senhora da Assistência Social veio dar com ela atravessada no
sofá, partida de tanto ter vivido sem viver. Chegou o ouvido à boca dela e
ainda teve tempo de guardar um sussurro sem explicação: “Eu volto, Arnaldo”.