Saturday, June 04, 2011

O ANIMAL POLITICO ou ZOOMORFISMOS POLITICOS NA SÁTIRA PORTUGUESA

Por: Osvaldo Macedo de Sousa
“Pelo Natal de 99 (1899), no café Martinho, João Chagas,
uma noite falou-me interessado num jornal de crítica, um semanário.
Marcou-se encontro para o dia seguinte. Almoçamos juntos, e,
depois do almoço ficou assente convidar o Rafael Bordalo Pinheiro.
E lá fomos os dois ao Largo da Abegoaria, a casa de Rafael Bordalo Pinheiro,
que abraçou a ideia com entusiasmo. E assim nasceu “A Paródia”,
que começou a sua publicação em meados de Janeiro de 1900.
Rafael Bordalo e Chagas aventavam ideias para a primeira página do primeiro
número, que no parecer de João Chagas deveria ser de comentário politico.
Desabafei: - Politica!... a grande porca.
Rafael Bordalo exclamou radiante: - Ai está a primeira página: Política, a grande porca…”
“Outros tempos” por Cunha Dias
in Vida Mundial Ilustrada de 30/5/1946


Com essa grande Porca, a Politica, se inicia quase tudo, seja o séc. XX, seja o último jornal satírico de Raphael Bordallo Pinheiro. Foi assim, com uma série de zoomorfismos que este grande mestre do humor, do jornalismo nacional, iniciou a sua última etapa criativa que terminaria precisamente em 1905.
Raphael Bordallo Pinheiro nasceu em Lisboa a 21 de Março de 1846, a tempo de assistir ao nascimento oficial do humor gráfico na imprensa portuguesa, que aconteceu a 12 de Agosto de 1847. Até então tinha havido jornais de humor sem gravuras, folhas volantes de cunho satírico, lithografias que eram inseridas de tempos a tempos. Só a partir dessa data encontramos gravuras satíricas publicadas no corpo do jornal, com edição regular, e assinadas por artistas nacional, três elementos que nos leva a dar aquela como a data oficial do nascimento desta arte de irreverência jornalística e estética em Portugal.
A forma mais fácil de fazer a sátira é a Alegoria, a efabulação da vida, razão pela qual nós descobrimos na génese da sátira portuguesa todo um mundo de zoomorfismos. Estes são vários exemplos de Folhas Volantes da década de quarenta de oitocentos, anteriores à data do nascimento oficial do Humor de Imprensa. Aqui se podem ver Leões, Gatos, Macacos… Cavalos, Cães…
A 12 de Agosto de 1847 surge o Suplemento Burlesco de O Patriota, um jornal semanário que incluirá pela primeira vez a gravura satírica impressa no corpo do jornal, com edição regular, e assinada por artistas lithografos nacionais.
Como se vivia o fim da Ditadura do Cabralismo, e as guerras entre Absolutistas e Liberais ainda não estavam todas resolvidas, para além de todas as quezílias entre os vários bandos de caciques ditos Liberais, a sátira teve que se refugiar no anonimato, com pseudónimos como Maria, Afonso, Cecília… A maior parte deles pertenciam ao mesmo artista do qual não sabemos o nome, mas que ficou conhecido no meio como o “Pinta Monos” e que viria a morrer de tísica em 1851.
Para melhor enquadrar as figuras, estes artistas jogaram com o nome dos Cabrais, para caricaturar todos os políticos do cabralismo com patas de cabra, esse animal que devora tudo o que lhe aparece à frente. Uma alegoria muito eficaz para caracterizar uma facção de cabralismo e uma característica que será aproveitada por todo o animal político.
Raphael Bordallo Pinheiro, apesar de ter sido apontado como o pai da caricatura de imprensa em Portugal, não o pode ter sido já que se tinha vivido a pré-história, e já se fazia história quando ele iniciou a sua actividade. Contudo, se não foi o pai, foi o reformador desta arte, conduzindo-a para uma nova forma de ironia critica, uma nova de comentário irreverente da sociedade e da política.
Raphael nasceu envolto nesse mundo de lithografias, gravuras, humor, já que seu pai, Manuel Maria, e seus amigos Manuel Macedo e Nogueira da Silva farão a transição da primeira fase panfletária, em que a sátira reflectia as tempos agressivos de luta entre o resto das hostes absolutistas e as várias facções ditas liberais, mas ainda não habituadas a aceitarem o dialogo democrático, que ainda não sabiam viver em parlamentarismo.
Após os primeiros anos de sátira agressiva, escondidos por detrás de pseudónimos. Houve um momento de transição, onde os artistas atrás referidos tiveram grande importância, porque desviando-se da política, centrando-se na crítica social, foi valorizado o lado estético através do vanguardismo, então designado por Realismo.
A sua actividade jornalística inicia-se em 1869, com a criação de um cabeçalho, seguido em 1870 por uma Lithografia teatral, e umas farpas no “Calcanhar de Aquiles” da sociedade politica intelectual. Nesse mesmo ano surgirão finalmente os seus primeiros periódicos, “A Berlinda” e “O Binóculo”, tentando um fazer politica e outro critica de espectáculos, como se toda a vida não passasse de uma representação trágico-cómica, e não pudessem os dois tratar de tudo isso no mesmo espaço. São experiências com muitas dificuldades de sobrevivência, já que a sociedade ainda não estava preparada para este novo tido de abordagem crítica, tendo assim vidas efémeras. Mas o jovem Raphael não desiste de seus intentos, e para além de almanaques, e do álbum “Apontamentos sobre a Picaresca Viagem do Imperador de Rasib pela Europa” (o primeiro álbum de banda desenhada portuguesa) em 1875, está de novo na praça com uma nova aventura gráfica, “A Lanterna Mágica”, essa sim, um grande marco na sátira jornalística portuguesa, o qual abrirá as portas a novas formas de ironizar a política.
Já não são tempos de crueza de Realismo, antes do Naturalismo, uma visão mais matizada por uma visão irónico-romantica A sua abordagem jornalística, envolta na beleza estética do Naturalismo, que Raphael cultivava como um vanguardistas das nossas artes, surge também como uma nova forma de estar na oposição politica. Ou seja, à sátira agressiva, desenvolvia-se a ironia parlamentar, e irreverência filosófica de ser “oposição aos governos, e oposição ás oposições”.
É nesta nova forma de filosofar pelo riso, neste novo tipo de meditação dos problemas da sociedade que ele irá “cozinhar” o anti-heroi que representará o povo português. Se outros povos (artistas) inventaram um ícone satírico que os glorificasse no esplendor das suas nações, Portugal acaba por criar um símbolo que reflecte o anti-poder. É o anti-heroi, o soberano que poderia ter o voto como arma de governar, mas que prefere não se assumir, delegando nos outros a condução da manada. Não é um povo, é um povinho, é o “Zé Povinho”, saloio, sem vontade de lutar, de mãos nos bolsos….
Foi em 1875 que Raphael criou este personagem, nas Páginas da Lanterna Mágica, e se ele poderia ter desaparecido, como muitos outros personagens que ele criou, ou que ter ficado como uma simples bengala “icónica” usada apenas pelo seu criador, a verdade é que desde logo se impôs na realidade nacional, se assumiu como ícone nacional, ao ser copiado de imediato por outros artistas, ou ser usado como título de periódicos (o primeiro logo em 1880). Deixou de ser um “boneco” irónico para ser um ícone, um símbolo, e depois um Logótipo nacional ainda hoje usado pelos nossos artistas.
A política nacional cresceu com a sátira, aprendendo os políticos a aceitarem as glórias de viverem na imprensa, para o bem e para o mal. Raphael foi uma figura tão importante neste “rotativismo” parlamentar, como um Fontes, um Hintz, um Braancamp… Não zurzia das bancadas de S. Bento, mas as bancadas onde os “barrigas” se tentavam governar.
Como todo o interveniente político, houve momentos de glória, e outros de cinzentismo, e decadência, e com os tempos Raphael foi-se cansando desse mundo pantanoso, refugiando-se na sua actividade criativa de ceramista, de decorador, deixando na mão de seu filho Manuel Gustavo as partes que já não lhe apetecia fazer. A segunda série do António Maria é quase totalmente dominada pela mão de Manuel Gustavo, e após de 19 anos de presença semanal continua nas bancas de jornais, em 1898 a família Bordallo Pinheiro deixa de editar jornais. Pelo meio ficaram títulos como “António Maria” (com duas séries–1879-1885, 1891-1898), e “Pontos nos ii” (1885-1891).
Quando se pensavam que estavam reformados, já que os meses se passavam, os anos se passavam, Raphael em 1900 não resistiu ao desafio de João Chagas, e regressa cheio de energia com um novo projecto, “A Paródia”. Contudo, após os primeiros entusiasmos, veremos que de numero para numero veremos Raphael esmorecer, deixando-se ser substituído aos poucos pelo filho, e pela primeira vez, dar espaço a novos colaboradores, abrindo assim portas ao futuro de novos artistas. Raphael está a transmitir seu testemunho com este ultimo jornal, que preencherá os seus últimos anos de vida.
A importância desta “Paródia”, para além das excepcionais sátiras publicadas, para além do novo alento gráfico estético com experimentalísmos neo-goticos, neo-cllássicos, de arte nova… é o “Testamento” que Raphael nos vai deixar, como síntese filosófica de uma longa carreira de observação da política.
O seu primeiro grande jornal, “A Lanterna Mágica” foi marcada pela criação genial desse ícone nacional – Zé Povinho, e o seu ultimo jornal acabará por ser marcado por uma série de ícones, os zoomorfismos políticos.
Infelizmente, após o entusiasmo inicial, Raphael esmoreceu na sua actividade gráfica em “A Paródia”, e apenas os 3 primeiro zoomorfismos foram desenhados por ele, entregando essa tarefa a seu filho, mas certamente sob sua orientação, regressando apenas para encerrar o ciclo, desenhando o nono e última síntese iconográfica da política. Se a Porca da Politica acabou como ao metáfora mais célebre, não menos importantes são os outros. Analizando toda a obra de raphael, vemos que não foi apenas em “A Paródia” que este artista usou alegorias zoológicas, contudo é notória a proliferação deste recurso iconográfico nesta ultima fase da sua obra, dando-nos assim razão para pensarmos que “A Paródia” o fez meditar, filosofar sobre o que se passa sinteticamente na politica, e como resultado explorar esse lado animal da política.
Eles resumem uma visão satírica marcada pela experiência de três décadas de actividade crítica. Com estes ícones sintéticos da politica, Raphael deixou-nos o seu Testamento em maldição de como é a animalidade politica, quais os animais que nos governam: Mudam os interpretes, os cenários, as ideologias reinantes, mas tudo se resume a uma Porca que todos desejam mamar, a um cão esfaimado nas finanças, uma galinha choca económica, uma burra que não aprende, ao papagaios do parlamento que só se repetem… Estamos entregues aos bichos
Raphael Bordallo Pinheiro viria a morrer em 1905, o que faz com que neste ano se comemorem 100 anos da sua morte. Uma das formas de celebrar este génio das artes, do jornalismo, da irreverência é recordar a sua obra, recordar o seu legado.
Partindo pois destas metáforas animais desenhadas em “Paródia”, vamos fazer uma viagem pela sátira portuguesa destes últimos 150 anos e procurar até que ponto o animal politico foi utilizado como alegoria para a critica jornalística da nossa politica. Tudo começa pela mãe de todas as virtudes da governação, porque é por ai que a porca torce o rabo – A Política.
Mas nem só de Bordallo vive a sátira Zoopolitica, já que o próprio nascimento da caricatura de imprensa em Portugal se inicia com a alegoria das Cabras, já que vivíamos em tempo dos Cabrais. E Hoje, quem são os animais políticos?

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