Tuesday, March 01, 2011
Stuart Carvalhais no "Diário de Notícias”
Por: Osvaldo Macedo de Sousa (Texto do catálogo da exp. de Vila Real Maio 1987)
Estava-se nos finais do Inverno, quando Eduardo Coelho, sentado na sua tarimba de jornalista, foi interrompido de rom¬pante, pelo aprendiz que entrava, gritando:
- Mestre! Já sabe a última?
Como a curiosidade é o pecado de todo o jornalista, o direc¬tor, sem sequer levantar a cabeça, tentando manter uma pos¬tura imperturbável, disfarçou esse sentimento, na pergunta indiferente:
- Qual é essa notícia tão perturbante?
- É que acabo de ter conhecimento do nascimento do Zé ...
- Ora, esse já nasceu em 75, do pai Bordalo, já cresceu, e os outros que por aí aparecem como novos, não são senão novas tentativas de lhe acender a lanterna apagada!
- Não falo desse pobre saloio, mas sim no Herculano!
- Ignorante e idiota, o Herculano já desapareceu no Val de Lobos que nos rodeia.
- Mestre! Eu refiro-me ao José Herculano Stuart Carvalhais - retorquiu, impaciente, o aprendiz.
Seja porque o Eduardo não ligou aos mexericos de um aprendiz de «meia-desfeita», seja porque não considerou importância ao nome, o que na verdade foi uma grande falta de visão futura, o facto é que naquele dia, 7 de Março de 1887, o Diário de Notícias não publicou a notícia desse nascimento, do que resultou, na evolução dos acontecimentos, uma grande confusão e especulação sobre dados concretos do evento. Em último recurso, no desempatar das apostas, foi a velha arquivista do Registo da Freguesia de S. Pedro, de Vila Real de Trás-os-Montes, que nos enviou a certidão registada e selada de tal data, confirmando a veracidade da notícia trazida pelo aprendiz alfacinha em tal data.
O Diário de Notícias era na altura uma instituição noticiosa já de maioridade, ou seja, 23 anos de serviço sério e objectivo, sem interferências humorísticas. Naturalmente riu-se da ideia de publicar algo sobre um Stuart, esquecendo o ditado «nunca digas que desta água não beberás". Também é certo que a ironia das coisas feitas sátira só entrariam nas suas por¬tas tipográficas, nos anos 90, pela pena do mestre Celso Her¬mínio, qual conquistador das letras hermínias da romanidade jornalística. Este jornal, um dos mais antigos ainda vivo, não poderia ter começado de melhor forma a carreira satírica do que com aquele traço «expressionista", em terras de naturalis¬tas românticos, quando o impressionismo ainda ofuscava a visão nas terras longínquas da Europa.
Quando o jovem José Herculano, no desenrolar das várias peripécias que é a vida, foi transferido por com seus pais para Lisboa (1902), era o traço de Celso que, contemporâneo de um Bordalo envelhecido na Paródia, fazia rir-pensar nas segundas-feiras do Diário de Notícias. O desenho, a ilustra¬ção, o humor tinham conquistado já esse novo bastião noti¬cioso, mas sem a força de outros titulares não menos secula¬res, que a ganância de uns e a apatia de outros deixaram desaparecer.
Foi precisamente no Século que o jovem José se transformou no artista Stuart Carvalhais. Como tudo na vida, deste território, é pelas amizades e influências que as coisas aconte¬cem. Infelizmente ele não conhecia ninguém no Diário de Notícias, enquanto o seu mestre, Jorge Colaço, dirigia o Suplemento de O Século, "O Cómico na luta-opinião política". Era 1906 quando esse novo evento aconteceu. Se "os sinos tocam, quando um anjo ganha as suas asas", nada acontece quando um Artista nasce para as artes, e por vezes nem mesmo quando ele morre.
Tal como dois amantes platónicos, ambos se desconheciam na intimidade, mas observar-se-ão mutuamente à distancia durante muito tempo. Stuart, para além de O Século, intervi¬nha em quase todos os periódicos da capital, naqueles que sobreviviam, nos que faliam, apoiando a República ou o regresso à Monarquia, o Sidónio Pais como o Afonso Costa ... O Diário de Notícias, após uma pausa irónica no final da Monarquia / princípio da República, recuperou a sua posição satírica com nomes como Valença, Manuel Gustavo Bordalo Pinheiro, Leal da Câmara, Jorge Barradas, Almada, António Soares ...
Teríamos de esperar pelos anos trinta, para se dar o encon¬tro há muito desejado. t: em 1935 que o novo evento acontece, e outra vez sem qualquer manifestação exterior de comemo¬ração. Foi um simples surgir da mancha negra sobre o papel branco, o traço que dá origem ao "banco».
A ditadura dominava já os espíritos, e os tempos não eram propícios à sátira política. Após o fervor da luta dos anos dez, do cansaço transformado numa certa apatia mundana, ou pseudocosmopolita, o humor ainda teve força para criticar o início da ditadura, o professor que tentava surgir como o sal¬vador do país. Em 35, apesar da censura estar já incrementada a todos os níveis, como na Imprensa, no humor houve ainda uma certa condescendência a alguns comentários. Mas, com o passar dos anos, e endurecimento do regime, a sátira, o humor transformou-se em simples anedotas de salão, que mais pareciam de tasca. O comentário, ou opinião sobre a política internacional ainda era aceite pelos censores, princi¬palmente durante a Segunda Guerra Mundial, como fachada de liberalismo de pensamento. Por outro lado, a ironia na ane¬dota social, a sátira entre linhas do comentário inocente, eram os caminhos possíveis de acusar o regime, a miséria do povo, a falta de liberdade, o estagnamento, do qual os tipos imutá¬veis da sociedade se tornavam heróis de um nacionalismo medievo.
Este foi o trajecto do Stuart no "Diário de Notícias", tal como dos outros humoristas. Comentar de tempos a tempos a política internacional; tentar de longe a longe passar uma anedota mais comprometida; jogar os sentidos duplos, e fun¬damentalmente criar a "piada do dia", a brincadeira da sogra, dos bêbedos, dos náufragos ... temas comuns a todo o humor de circunstância.
Os condicionalismos em homens de génio têm sempre como fruto de escape, uma alternativa, que no caso do Stuart foi a exploração de um mundo muito querido para ele, o povo, seus hábitos, sua cidade. Ainda não havia exploração turística, ainda não havia o culto do pitoresco como cenografia, havia sim a petrificação de uma sociedade-povo na tradição cente¬nária que a civilização industrial não modificava, por a evolu¬ção ter sido proíbida pelo regime. Stuart foi desta forma o desenhador-pintor, o humorista de uma Lisboa encantadora mas retrógrada, pitoresca mas miserável..
A par do desenho de humor, Stuart foi ilustrador do Diário de Notícias para os romances em folhetins que publicava, as capas ou páginas referentes aos números de Carnaval, Pás¬coa, Santos Populares, Natal... A sua relação de colaborador do Diário de Notícias era igual à sua relação com os outros jornais, ou com a vida. Desprendido de contratos, ou com¬promissos castradores, cumpria os pedidos quando lhe apete¬cia, fazia os «bonecos» com o material que tinha à mão, ou seja tinta, café, graxa, remédios... com um pincel de dois pelos, um pau de fósforo, um lápis, um carvão ...
Diz-se dele que foi um boémio genial, o desenhador das varinas e gatos, das pernas mais bonitas de mulheres, de Lis¬boa e seus becos, do humor simples quotidiano, mas no Diá¬rio de Notícias foi apenas um colaborador, genial, que para o jornal trabalhou durante algumas dezenas de anos, a par do Bernardo Marques, Albuquerque, Teixeira Cabral, e poste¬riormente, «substituído» por um Júlio Gil, João Abel Manta, António, 3am, Zé Manel, Pedro Palma ...
Os colaboradores passam, a obra fica registada no papel pardo do jornal, o qual quando é de valor, ou especial, como é o caso, volta sempre a reaparecer na ribalta do jornalismo, ou das salas de exposições, feitas obras de Arte, que na verdade o são. Desta vez, o Diário de Notícias alia-se ao Centenário do artista, expondo «Stuart no Diário de Notícias» na terra natal do artista.
Quando o Stuart morreu a 2 de Março de 1961, o director do Diário de Notícias mandou notificar esse infeliz evento, com saudade e tristeza.
Estava-se nos finais do Inverno, quando Eduardo Coelho, sentado na sua tarimba de jornalista, foi interrompido de rom¬pante, pelo aprendiz que entrava, gritando:
- Mestre! Já sabe a última?
Como a curiosidade é o pecado de todo o jornalista, o direc¬tor, sem sequer levantar a cabeça, tentando manter uma pos¬tura imperturbável, disfarçou esse sentimento, na pergunta indiferente:
- Qual é essa notícia tão perturbante?
- É que acabo de ter conhecimento do nascimento do Zé ...
- Ora, esse já nasceu em 75, do pai Bordalo, já cresceu, e os outros que por aí aparecem como novos, não são senão novas tentativas de lhe acender a lanterna apagada!
- Não falo desse pobre saloio, mas sim no Herculano!
- Ignorante e idiota, o Herculano já desapareceu no Val de Lobos que nos rodeia.
- Mestre! Eu refiro-me ao José Herculano Stuart Carvalhais - retorquiu, impaciente, o aprendiz.
Seja porque o Eduardo não ligou aos mexericos de um aprendiz de «meia-desfeita», seja porque não considerou importância ao nome, o que na verdade foi uma grande falta de visão futura, o facto é que naquele dia, 7 de Março de 1887, o Diário de Notícias não publicou a notícia desse nascimento, do que resultou, na evolução dos acontecimentos, uma grande confusão e especulação sobre dados concretos do evento. Em último recurso, no desempatar das apostas, foi a velha arquivista do Registo da Freguesia de S. Pedro, de Vila Real de Trás-os-Montes, que nos enviou a certidão registada e selada de tal data, confirmando a veracidade da notícia trazida pelo aprendiz alfacinha em tal data.
O Diário de Notícias era na altura uma instituição noticiosa já de maioridade, ou seja, 23 anos de serviço sério e objectivo, sem interferências humorísticas. Naturalmente riu-se da ideia de publicar algo sobre um Stuart, esquecendo o ditado «nunca digas que desta água não beberás". Também é certo que a ironia das coisas feitas sátira só entrariam nas suas por¬tas tipográficas, nos anos 90, pela pena do mestre Celso Her¬mínio, qual conquistador das letras hermínias da romanidade jornalística. Este jornal, um dos mais antigos ainda vivo, não poderia ter começado de melhor forma a carreira satírica do que com aquele traço «expressionista", em terras de naturalis¬tas românticos, quando o impressionismo ainda ofuscava a visão nas terras longínquas da Europa.
Quando o jovem José Herculano, no desenrolar das várias peripécias que é a vida, foi transferido por com seus pais para Lisboa (1902), era o traço de Celso que, contemporâneo de um Bordalo envelhecido na Paródia, fazia rir-pensar nas segundas-feiras do Diário de Notícias. O desenho, a ilustra¬ção, o humor tinham conquistado já esse novo bastião noti¬cioso, mas sem a força de outros titulares não menos secula¬res, que a ganância de uns e a apatia de outros deixaram desaparecer.
Foi precisamente no Século que o jovem José se transformou no artista Stuart Carvalhais. Como tudo na vida, deste território, é pelas amizades e influências que as coisas aconte¬cem. Infelizmente ele não conhecia ninguém no Diário de Notícias, enquanto o seu mestre, Jorge Colaço, dirigia o Suplemento de O Século, "O Cómico na luta-opinião política". Era 1906 quando esse novo evento aconteceu. Se "os sinos tocam, quando um anjo ganha as suas asas", nada acontece quando um Artista nasce para as artes, e por vezes nem mesmo quando ele morre.
Tal como dois amantes platónicos, ambos se desconheciam na intimidade, mas observar-se-ão mutuamente à distancia durante muito tempo. Stuart, para além de O Século, intervi¬nha em quase todos os periódicos da capital, naqueles que sobreviviam, nos que faliam, apoiando a República ou o regresso à Monarquia, o Sidónio Pais como o Afonso Costa ... O Diário de Notícias, após uma pausa irónica no final da Monarquia / princípio da República, recuperou a sua posição satírica com nomes como Valença, Manuel Gustavo Bordalo Pinheiro, Leal da Câmara, Jorge Barradas, Almada, António Soares ...
Teríamos de esperar pelos anos trinta, para se dar o encon¬tro há muito desejado. t: em 1935 que o novo evento acontece, e outra vez sem qualquer manifestação exterior de comemo¬ração. Foi um simples surgir da mancha negra sobre o papel branco, o traço que dá origem ao "banco».
A ditadura dominava já os espíritos, e os tempos não eram propícios à sátira política. Após o fervor da luta dos anos dez, do cansaço transformado numa certa apatia mundana, ou pseudocosmopolita, o humor ainda teve força para criticar o início da ditadura, o professor que tentava surgir como o sal¬vador do país. Em 35, apesar da censura estar já incrementada a todos os níveis, como na Imprensa, no humor houve ainda uma certa condescendência a alguns comentários. Mas, com o passar dos anos, e endurecimento do regime, a sátira, o humor transformou-se em simples anedotas de salão, que mais pareciam de tasca. O comentário, ou opinião sobre a política internacional ainda era aceite pelos censores, princi¬palmente durante a Segunda Guerra Mundial, como fachada de liberalismo de pensamento. Por outro lado, a ironia na ane¬dota social, a sátira entre linhas do comentário inocente, eram os caminhos possíveis de acusar o regime, a miséria do povo, a falta de liberdade, o estagnamento, do qual os tipos imutá¬veis da sociedade se tornavam heróis de um nacionalismo medievo.
Este foi o trajecto do Stuart no "Diário de Notícias", tal como dos outros humoristas. Comentar de tempos a tempos a política internacional; tentar de longe a longe passar uma anedota mais comprometida; jogar os sentidos duplos, e fun¬damentalmente criar a "piada do dia", a brincadeira da sogra, dos bêbedos, dos náufragos ... temas comuns a todo o humor de circunstância.
Os condicionalismos em homens de génio têm sempre como fruto de escape, uma alternativa, que no caso do Stuart foi a exploração de um mundo muito querido para ele, o povo, seus hábitos, sua cidade. Ainda não havia exploração turística, ainda não havia o culto do pitoresco como cenografia, havia sim a petrificação de uma sociedade-povo na tradição cente¬nária que a civilização industrial não modificava, por a evolu¬ção ter sido proíbida pelo regime. Stuart foi desta forma o desenhador-pintor, o humorista de uma Lisboa encantadora mas retrógrada, pitoresca mas miserável..
A par do desenho de humor, Stuart foi ilustrador do Diário de Notícias para os romances em folhetins que publicava, as capas ou páginas referentes aos números de Carnaval, Pás¬coa, Santos Populares, Natal... A sua relação de colaborador do Diário de Notícias era igual à sua relação com os outros jornais, ou com a vida. Desprendido de contratos, ou com¬promissos castradores, cumpria os pedidos quando lhe apete¬cia, fazia os «bonecos» com o material que tinha à mão, ou seja tinta, café, graxa, remédios... com um pincel de dois pelos, um pau de fósforo, um lápis, um carvão ...
Diz-se dele que foi um boémio genial, o desenhador das varinas e gatos, das pernas mais bonitas de mulheres, de Lis¬boa e seus becos, do humor simples quotidiano, mas no Diá¬rio de Notícias foi apenas um colaborador, genial, que para o jornal trabalhou durante algumas dezenas de anos, a par do Bernardo Marques, Albuquerque, Teixeira Cabral, e poste¬riormente, «substituído» por um Júlio Gil, João Abel Manta, António, 3am, Zé Manel, Pedro Palma ...
Os colaboradores passam, a obra fica registada no papel pardo do jornal, o qual quando é de valor, ou especial, como é o caso, volta sempre a reaparecer na ribalta do jornalismo, ou das salas de exposições, feitas obras de Arte, que na verdade o são. Desta vez, o Diário de Notícias alia-se ao Centenário do artista, expondo «Stuart no Diário de Notícias» na terra natal do artista.
Quando o Stuart morreu a 2 de Março de 1961, o director do Diário de Notícias mandou notificar esse infeliz evento, com saudade e tristeza.