Wednesday, September 22, 2010
Rogério Araujo (de 18-09-2010 a 16-10-2010 ) na Galeria Palpura
A República no País das Maravilhas
por Paulo Morais-Alexandre
«The King and Queen of Hearts were seated on their throne when they arrived, with a great crowd assembled about them--all sorts of little birds and beasts, as well as the whole pack of cards: the Knave was standing before them, in chains, with a soldier on each side to guard him; and near the King was the White Rabbit, with a trumpet in one hand and a scroll of parchment in the other. In the very middle of the court was a table, with a large dish of tarts upon it. "I wish they'd get the trial done," Alice thought, "and hand 'round the refreshments!"»
Lewis Carroll - Alice in Wonderland
Serve o presente texto para aduzir alguns pensamentos interpretativos da pintura de Rogério Araújo, que aproveitou magnificamente o ensejo de comemorar os cem anos da implantação da República para ajustar algumas contas com a História.
A Pintura é também uma forma de fazer e de ensinar a ver o passado colectivo de Portugal. O trabalho de Rogério Araújo retoma uma via plástica com grandes tradições no nosso país que consiste na exploração, em termos iconográficos, da História Contemporânea, mas vai muito mais além, regista e fixa uma interpretação plástica muito pessoal de três períodos sucessivos: o ocaso da Monarquia e a primeira e a segunda Repúblicas. Trata-se de tempos conturbados que estimularam vários pintores e caricaturistas a realizar magníficos trabalhos, dos quais a grande referência relativa ao final da Monarquia será sem dúvida Rafael Bordallo Pinheiro, mas não se esqueça também, pela importância, de se citar Leal da Câmara, tantas vezes ofuscado pelo primeiro. E será, sobretudo, o trabalho do segundo que mais afinidades terá com a obra em apreço já que tem uma dimensão pictórica que escasseia no primeiro.Uma das questões mais candentes em Arte, que segue paralela às questões da inovação e das técnicas da pintura, é a problemática iconográfica. Efectivamente um dos aspectos mais interessantes é a forma como o pintor pega num tema recorrente, o reinterpreta e lhe confere uma nova dimensão e é exactamente essa reinterpretação que lhe confere muitas vezes o valor artístico. Veja-se, por exemplo, a forma como Jerónimo Bosch interpretou magistralmente o tema das tentações sofridas por Santo Antão, diferente de qualquer outra pintura ou, séculos mais tarde, essa fabulosa interpretação da crucificação pintada por Paul Gaugin conhecida como Le Christ jaune.A imagem da República é de origem francesa, a Marianne, que foi tão bem pintada por Eugène Delacroix liderando a multidão na conquista da liberdade em La liberte guidant le peuple. O movimento republicano, mau grado ter tido no seu seio fantásticos criadores plásticos, apropriou-se dessa imagem e transformou-a em República. Mas esta recebeu um tratamento e um cunho português bem marcado que a nacionalizou e a dotou do escudo nacional sobre o drapeado do vestido e das cores verde e rubra. Trata-se aliás de uma imagem que no presente vem carecendo de renovação plástica, sendo, por Rogério Araújo, também apontadas vias nesse sentido e veja-se a sua proposta para uma República do século XXI bem futurista.Sem pretensões de cronista histórico o pintor cria composições que são o espelho do país nestes diferentes períodos, mas onde tudo se passa como se fosse vivido um sonho tridimensional, pleno de absurdos, como o foi efectivamente esta época.Começa por retratar a queda da Monarquia, um dos mais extraordinários logros porque este país passou, com o Partido Republicano a alegar que todos os males da governação advinham do regime, o que obviamente não era verdade, como infelizmente se veio a provar. Mas um rei que parecia não estar preparado, nem interessado na causa pública, o marinheiro/músico Dom Luís , e cuja respectiva Rainha parecia mais preocupada com o seu guarda-roupa do que com o bem-estar dos súbditos mas cujo sofrimento e loucura inspirou, aliás, um dos mais belos textos dramáticos de toda a literatura portuguesa, O Fim de António Patrício, não ajudavam muito. Depois, em plena Belle Époque, Dom Carlos, não obstante ser um notável homem das Artes e das Ciências, nomeadamente da Oceanografia e apesar de ter granjeado prestígio como estadista sobretudo internacionalmente, ajudou à festa com a instauração da ditadura de João Franco Castello-Branco. De disparate em disparate e mais por culpa dos “mesurosos” cortesãos que rodeavam os reis do que dos monarcas o regime deixou-se animadamente extinguir.Coevamente surgiram novos actores: apareceram os altos dignitários do Partido Republicano, alguns dos quais trânsfugas do anterior regime como José Relvas ou Anselmo Braancamp Freire e depois uma miríade de novos políticos como Bernardino Machado, Manuel de Arriaga, António José de Almeida ou Afonso Costa. Se alguns pareciam bem-intencionados, outros eram francamente demagogos, havia os idealistas, e uns, poucos, pragmáticos, mas no fundo estavam impreparados para governar e verifica-se que o país não estava pronto para os receber. Estes traziam consigo uma nova iconografia, que passava também pela forma como os protagonistas se vestiam, se comportavam e até pelos ornatos capilares que exibiam.Mas qual será o país retratado e magistralmente por Rogério Araújo? Será o país onde a República tem apóstolos que a defendem e por ela tagarelam, o país parlamentar onde todos falam, alguns zurram e ninguém se entende, o país da República bicada por corvos das mais variadas cores, o país que se desenvolveu para o melhor, mas para o pior, o país das intentonas, o país que os ratos abandonam, o país rural do João Ratão, do comboio a vapor e do campanário da igreja, o país que viu nascer Pessoa e o país que foi emprateleirado e acondicionado por Salazar, o país da bica e do pastel de nata com canela, o país do folclore, da família Prudêncio e da Mocidade Portuguesa? Tudo está magnificamente sintetizado na tela onde numa barraca de Robertos, como aquelas que existiam nas praias da nossa infância, as diversas forças se confrontam e digladiam rodeadas por uma assistência de outros fantoches que assistem prontas a cruzar espadas, neste caso “traulitadas”, em defesa da sua dama.Posto isto cumpre perguntar se será Rogério Araújo surrealista ou se pelo contrário se limitou a pintar a realidade e surrealistas seremos nós???
Uma certeza fica: lá pintor é ele!
Rogério Araujo
Galeria Palpura - Rua Alberto Villaverde Cabral, Lisboa
por Paulo Morais-Alexandre
«The King and Queen of Hearts were seated on their throne when they arrived, with a great crowd assembled about them--all sorts of little birds and beasts, as well as the whole pack of cards: the Knave was standing before them, in chains, with a soldier on each side to guard him; and near the King was the White Rabbit, with a trumpet in one hand and a scroll of parchment in the other. In the very middle of the court was a table, with a large dish of tarts upon it. "I wish they'd get the trial done," Alice thought, "and hand 'round the refreshments!"»
Lewis Carroll - Alice in Wonderland
Serve o presente texto para aduzir alguns pensamentos interpretativos da pintura de Rogério Araújo, que aproveitou magnificamente o ensejo de comemorar os cem anos da implantação da República para ajustar algumas contas com a História.
A Pintura é também uma forma de fazer e de ensinar a ver o passado colectivo de Portugal. O trabalho de Rogério Araújo retoma uma via plástica com grandes tradições no nosso país que consiste na exploração, em termos iconográficos, da História Contemporânea, mas vai muito mais além, regista e fixa uma interpretação plástica muito pessoal de três períodos sucessivos: o ocaso da Monarquia e a primeira e a segunda Repúblicas. Trata-se de tempos conturbados que estimularam vários pintores e caricaturistas a realizar magníficos trabalhos, dos quais a grande referência relativa ao final da Monarquia será sem dúvida Rafael Bordallo Pinheiro, mas não se esqueça também, pela importância, de se citar Leal da Câmara, tantas vezes ofuscado pelo primeiro. E será, sobretudo, o trabalho do segundo que mais afinidades terá com a obra em apreço já que tem uma dimensão pictórica que escasseia no primeiro.Uma das questões mais candentes em Arte, que segue paralela às questões da inovação e das técnicas da pintura, é a problemática iconográfica. Efectivamente um dos aspectos mais interessantes é a forma como o pintor pega num tema recorrente, o reinterpreta e lhe confere uma nova dimensão e é exactamente essa reinterpretação que lhe confere muitas vezes o valor artístico. Veja-se, por exemplo, a forma como Jerónimo Bosch interpretou magistralmente o tema das tentações sofridas por Santo Antão, diferente de qualquer outra pintura ou, séculos mais tarde, essa fabulosa interpretação da crucificação pintada por Paul Gaugin conhecida como Le Christ jaune.A imagem da República é de origem francesa, a Marianne, que foi tão bem pintada por Eugène Delacroix liderando a multidão na conquista da liberdade em La liberte guidant le peuple. O movimento republicano, mau grado ter tido no seu seio fantásticos criadores plásticos, apropriou-se dessa imagem e transformou-a em República. Mas esta recebeu um tratamento e um cunho português bem marcado que a nacionalizou e a dotou do escudo nacional sobre o drapeado do vestido e das cores verde e rubra. Trata-se aliás de uma imagem que no presente vem carecendo de renovação plástica, sendo, por Rogério Araújo, também apontadas vias nesse sentido e veja-se a sua proposta para uma República do século XXI bem futurista.Sem pretensões de cronista histórico o pintor cria composições que são o espelho do país nestes diferentes períodos, mas onde tudo se passa como se fosse vivido um sonho tridimensional, pleno de absurdos, como o foi efectivamente esta época.Começa por retratar a queda da Monarquia, um dos mais extraordinários logros porque este país passou, com o Partido Republicano a alegar que todos os males da governação advinham do regime, o que obviamente não era verdade, como infelizmente se veio a provar. Mas um rei que parecia não estar preparado, nem interessado na causa pública, o marinheiro/músico Dom Luís , e cuja respectiva Rainha parecia mais preocupada com o seu guarda-roupa do que com o bem-estar dos súbditos mas cujo sofrimento e loucura inspirou, aliás, um dos mais belos textos dramáticos de toda a literatura portuguesa, O Fim de António Patrício, não ajudavam muito. Depois, em plena Belle Époque, Dom Carlos, não obstante ser um notável homem das Artes e das Ciências, nomeadamente da Oceanografia e apesar de ter granjeado prestígio como estadista sobretudo internacionalmente, ajudou à festa com a instauração da ditadura de João Franco Castello-Branco. De disparate em disparate e mais por culpa dos “mesurosos” cortesãos que rodeavam os reis do que dos monarcas o regime deixou-se animadamente extinguir.Coevamente surgiram novos actores: apareceram os altos dignitários do Partido Republicano, alguns dos quais trânsfugas do anterior regime como José Relvas ou Anselmo Braancamp Freire e depois uma miríade de novos políticos como Bernardino Machado, Manuel de Arriaga, António José de Almeida ou Afonso Costa. Se alguns pareciam bem-intencionados, outros eram francamente demagogos, havia os idealistas, e uns, poucos, pragmáticos, mas no fundo estavam impreparados para governar e verifica-se que o país não estava pronto para os receber. Estes traziam consigo uma nova iconografia, que passava também pela forma como os protagonistas se vestiam, se comportavam e até pelos ornatos capilares que exibiam.Mas qual será o país retratado e magistralmente por Rogério Araújo? Será o país onde a República tem apóstolos que a defendem e por ela tagarelam, o país parlamentar onde todos falam, alguns zurram e ninguém se entende, o país da República bicada por corvos das mais variadas cores, o país que se desenvolveu para o melhor, mas para o pior, o país das intentonas, o país que os ratos abandonam, o país rural do João Ratão, do comboio a vapor e do campanário da igreja, o país que viu nascer Pessoa e o país que foi emprateleirado e acondicionado por Salazar, o país da bica e do pastel de nata com canela, o país do folclore, da família Prudêncio e da Mocidade Portuguesa? Tudo está magnificamente sintetizado na tela onde numa barraca de Robertos, como aquelas que existiam nas praias da nossa infância, as diversas forças se confrontam e digladiam rodeadas por uma assistência de outros fantoches que assistem prontas a cruzar espadas, neste caso “traulitadas”, em defesa da sua dama.Posto isto cumpre perguntar se será Rogério Araújo surrealista ou se pelo contrário se limitou a pintar a realidade e surrealistas seremos nós???
Uma certeza fica: lá pintor é ele!
Rogério Araujo
Galeria Palpura - Rua Alberto Villaverde Cabral, Lisboa