Friday, November 20, 2009
Raphael Bordallo Pinheiro, o Homem, o Cidadão, o Artista
Por: Osvaldo Macedo de Sousa
1805 – “Enquanto historiadores graves, pintores famosos, poetas celebres, escultores distintos e inspirados músicos celebravam os dotes do senhor D. João VI, as bondades e virtudes do príncipe fugido para o Brasil n’um êxodo realengo e cortesanesco, diante dos franceses invasores, aparecia nos muros do paço da Bemposta uma caricatura – uma das mais antigas de Portugal – onde o marido de Carlota Joaquina aparece de pernas tortas, barriga saliente, a cabeça com os apêndices do demónio n’uma caraça de ruminante de cuja boca saía uma frase caracterizadora e uma alusão aos 200 milhões de cruzados que se dizia terem ido na armada com a côrte acobardada e foragida. À esquerda surgia a nação com uma perna de pau e na sua frente o exército, os empregados, os operários, os ricos exclamavam: «O meu soldo, o meu ordenado, o meu salário, as minhas tenças!» A Nação, segundo uma bandeirola que lhe saía da boca, dirigia-se ao príncipe n’ estes termos bem pouco respeitosos: Ouvi, cruel, a voz dos vossos filhos. O que levas não é teu. És um ladrão. Ficamos pobres e infamados! Aparecia ainda uma fileira de frades e de lobinhos, n’uma alusão aos Lobatos, favoritos de D. João; o seu conselho privado e a Inglaterra de gorro d’algodão, bradando: Vamos! Vamos! Por detrás do conselho estava escrito: Se vêem os 200 milhões, de Londres não voltam. Bela ocasião para zombar dos credores. Nada de satisfações e que se regalem com os franceses! No alto do papel havia o seguinte dístico: A nação mais valorosa, mais fiel e menos resoluta!”
“Tal é a primeira caricatura portuguesa onde se castiga um soberano n’uma explosão de cólera e com uma risada galhofeira…” (Por Rocha Martins in “Os Serões” de Setembro de 1909)
1815 – El Cid o Campeador, Rodrigo Ruy de Vivar, ficaria conhecido pela sua irreverência guerreira, nunca desconfiando que legaria essas virtudes a longínquos descendentes. Seriam outras irreverências, outras guerras que nasceriam de uma nova dinastia provocada pelo casamento de Jacinta Adelaide Herculana Bordallo Alvarez y Asturias com Manuel Felix de Oliveira Pinheiro, os quais veriam nascer em 1815 o seu primogénito Manuel Maria Bordallo Pinheiro.
1830 / 1847 - Com o Liberalismo a imprensa ganha finalmente um impulso que a transformará num elemento normal do quotidiano português, contudo o caminho não foi simples, não só por questões tecnológicas como de luta entre a Liberdade de expressão e a vontade do poder em controlar as mentes dos seus concidadãos.
Um dos elementos que teve alguma dificuldade de inserção será a ilustração, a gravura, em cujo papel Manuel Maria Bordallo Pinheiro terá um papel de destaque nas décadas de 50/60. Nas décadas de 30/40 terá um difícil percurso, em que o caciquismo, as ditaduras de Costa Cabral tentarão bloquear a liberdade de imprensa, dando ao mesmo tempo incentivo aos irreverentes para lutarem pela nova expressão de comunicação de criatividade.
1846 – A 21 de Março, na Rua da Fé nº33, Manuel Maria Bordallo Pinheiro e Augusta Maria do Ó Carvalho Prostes viram nascer o seu terceiro filho, a quem baptizarão de Raphael Augusto Bordallo Prostes Pinheiro. Seria uma prole de doze nascimentos, dos quais sobreviveriam nove: Maria Augusta (1841 / 1915); Maria José (1842); Maria (1844); Raphael Augusto (1846 / 1905); Feliciano Augusto (1849 - 1905); Manuel Maria (1850); Augusto Cesar (1851); Filomena Augusta (1849 - 1905); Maria Amélia (1855 - 1907); Columbano (1857 - 1929); Henrique (1859) e Tomáz Maria (1861 - 1921). Destes, para além de Raphael, destacar-se-ão nas artes Maria Augusta pela sua obra de pintora de flores e renovadora da indústria das rendas de Peniche; Maria Amélia casar-se-ia com o conceituado dramaturgo e escritor Henrique Lopes de Mendonça; Columbano um dos expoentes da pintura nacional; Thomaz Maria um impulsionador das industrias da cerâmica e instigador de Raphael. Este teve quatro filhos dos quais dois se destacaram no mundo da imprensa: Fernando que dirigiu oficinas de gravura nomeadamente para o Diário de Notícias, O Século… assim como trabalhará na Fabrica de cerâmica das Caldas; Pedro destacar-se-ia como jornalista e como fundador do Diário de Lisboa, do Sempre Fixe… O seio desta família seria uma constante tertúlia artística, com os residentes a serem constantemente visitados por insignes figuras da cultura de então.
1857 – Raphael entra no Liceu, frequentando o Liceu das Merceeiras. Terá sido mau aluno, faltando muitas vezes para se dedicar à sua paixão pelo teatro. Há notícias de um quadro pintado neste ano por Raphael e oferecido a uma tia.
1860 – Temos notícias da estreia de Raphael como actor no Teatro Garrett (sito na Travessa do Forno – Anjos), uma das várias Sociedade Recreativas que animavam a cultura da capital. Tinha apenas 14 anos, e aqui terá trabalhado como decorador da sala, como cenógrafo, e finalmente como actor. Em consequência desta experiência resolve inscrever-se na Escola Dramática do Conservatório de Lisboa, dirigida por Duarte de Sá.
1861 – A eterna insatisfação artística de Raphael leva-o a tentar ultrapassar as dificuldades técnicas na pesquisa plástica que as tertúlias da casa de seus pais e das tertúlias artísticas de café o fizeram explorar, por isso inscreve-se na Academia de Belas-Artes de Lisboa em Desenho de Arquitectura Civil.
1862 – Apesar de constar que poucas aulas frequentou na Academia de Belas-Artes, volta a matricular-se em Desenho de Arquitectura Civil e Desenho Histórico.
1863 – Contrariado, aceita o emprego que seu pai lhe arranjou como Amanuense da Secretaria da Câmara dos Pares, onde seu progenitor também trabalhava. Aos 17 anos passava a ter o seu próprio ordenado com 25$000 por mês, o que lhe dava toda a liberdade de manter sua irreverência boémia, sem ser incomodado por seus pais.
1865 – A sua eterna insatisfação cultural leva-o a continuar matriculado em Desenho Antigo até 1867 e procurar novos conhecimentos no Curso Superior de Letras
1866 – Com uma vida mais estável economicamente, devido ao seu trabalho na Câmara dos Pares, resolve de repente cortar com a boémia louca por razões de amor. A 15 de Setembro casa-se repentinamente com a sua paixão Elvira Ferreira de Almeida. O seu lado boémio, a conhecida irreverência não são bons elementos de apresentação e não convencem os pais da desejada que este seja o melhor partido para ela. Por essa razão, para poderem vencer os obstáculos levantados, o noivo rapta a noiva com apoio judicial, leva-a para Almada onde se casa (tendo como padrinho Júlio César Machado), fazem a lua-de-mel na Golegã e passam a viver na casa de Pedrouços. Manuel Maria Bordallo Pinheiro aceita esta decisão intempestuosa, mas tranquilizadora, porque mostra que Raphael quer assentar e criar família. Na sua estadia na Quinta da Broa da Golegã, aproveitou o tempo para fazer uma série de desenhos e aguarelas sobre personagens rurais e paisagens campestres.
1867 – Já a viver na Travessa das Parreiras, (em Santa Marta), a 20 de Junho sua esposa dá à luz o seu primogénito o qual será baptizado como Manuel Gustavo de Almeida Bordallo Pinheiro.
1868 – Apresenta pela primeira vez desenhos seus em público, ao participar no Salão da Sociedade Promotora de Belas Artes. Este Salão surge como resposta ao Salão da Academia de Belas Artes, o qual não aceitava as ousadias dos mais jovens de espírito. Apresentou aqui os desenhos “Vendedor de phosphoros”, “Vendedor de Palitos e rocas”, o “Saloio” e “Cabeça”. Em consequência do êxito público dos seus trabalhos resolve candidatar-se a uma Bolsa de Estudo para Roma, a qual lhe será recusada. Apesar de ter sido uma afronta às suas pretensões, não o desanimou, antes o impulsionou na irreverência e na luta contra os academismos vigentes.
1869 – Havendo noticias de “caricaturas” suas nas paredes da Academia de Belas Artes a satirizarem os professores, as suas obras até ao momento verificavam-se essencialmente na busca do naturalismo pitoresco, onde o grotesco e a ironia eram mais uma qualidade estética que uma opção de género. Por essa razão, até ao momento não o vemos envolvido na imprensa. Contudo o mundo da gravura não lhe é estranho, já que seu pai e Manuel Macedo, outro mestre da gravura e do realismo eram visita costumeira nas tertúlias familiares dos Bordallo Pinheiro.
Neste ano, incentivado pelos seus amigos que admiram as suas primeiras tropelias caricaturais com os professores, resolve avançar para o seu primeiro projecto satírico, ou seja a criação de uma série de caricaturas de personalidades da cultura, eventualmente para editar em álbum. Entretanto cria o cabeçalho do Jornal “O Japonêz” um dos muitos jornais satíricos (maioritariamente sem gravuras) que nasciam e morriam todos os anos. Cria uma capa para a “Crónica dos Teatros.
Os seus estudos na Academia prosseguem, agora com a matrícula em Modelo Vivo.
1870 – Este ano dar-se-á finalmente a revolução satírica na carreira de Raphael, iniciando-se assim, sem ele saber, o seu destino de reformador do desenho satírico de imprensa em Portugal, projectando-a para o âmbito das artes maiores do jornalismo e da estética.
Logo em Fevereiro, o seu envolvimento com o mundo do teatro, leva-o a intervir com litografia alegórica à comédia “O Dente da Baroneza” de Teixeira de Vasconcelos. Teve sucesso, deu que falar, e consequentemente impulsionou-o para novos projectos. Em Maio, devido ao pronunciamento e consequente Ministério liderado pelo Duque de Saldanha, lança a litografia “Mercado dos Melões”, onde se vê o Duque a escolher os seua ministeriáveis. Novo sucesso, e novo incentivo, agora já não apenas no mundo do espectáculo, mas também na intervenção politica, o que o leva a editar a partir de Julho o periódico “A Berlinda”. È difícil considerar isto um jornal, e mesmo chamar-lhe periódico, já que eram folhas litográficas soltas, sem regularidade de saída. Ele próprio apresenta-se como “Reproduções de um álbum humorístico ao correr do Lápis”. Foram editadas 3 folhas, prosseguindo só mais tarde a sua edição. Nessa questão de conceitos, a edição que ele lançou a partir de Outubro, com a designação “O Binóculo” será mais correctamente um periódico. Neste, o próprio artista sub titula-o como hebdomadário de caricaturas. Tinha a particularidade de ser especializado no mundo do espectáculo, e vender-se dentro dos próprios teatros. Saíram 4 números. Como a maioria dos jornais deste género nesta época, teve vida curta, é um passo significativo na evolução artística de Raphael, e também porque aqui encontramos a sua primeira definição da sua arte: “O Binóculo apresenta, não comenta. Analisa, não sintetiza. Mostra os tipos. /…/ É o “binóculo” o instrumento de que o leitor, espectador ou amador se serve para ver mais de perto cenas que facilmente lhe passariam desapercebidas a olho nu. Mostra o bom e o mau: e está nisso a justificação do seu título. Quem tiver olhos, que veja; quem não quiser ver, que durma.”
No meio deste fervilhar editorial, saiu finalmente a tal série de caricaturas de personalidades, o primeiro álbum das glórias nacionais, ao qual ele deu como titulo genérico “Calcanhar d’Aquiles”. Foi o primeiro álbum de caricaturas editado em Portugal, e ao mesmo tempo o primeiro grande teste do sentido de humor da nossa sociedade. Apesar de todos os visados terem aceite serem caricaturados (já que o artista teve o cuidado de ter um consentimento prévio, em tempos de grandes susceptibilidades), fizeram-no contra vontade, para não caírem no ridículo de não terem sentido de humor, mas resmungando entre dentes que seria melhor ao artista descarregar seu talento em obras mais interessantes que o humor. E o humor crítico de Raphael ainda era incipiente, pequenas farpas que nem sequer faziam doer; mesmo assim a pele nacional parecia não querer aceitar que um artista de génio estético se dedicasse a esta baixezas mais adequadas à língua de sarcasmo e mal dizer popular. Foram seis estampas numa primeira série, e seria mais outras tantas numa segunda série, que acabou por nem ser publicado a pedido do pai do artista, sob pressão de seus confrades de tertúlia assim “ridicularizados” pelo filho deste.
Raphael prosseguiu com seus estudos de Modelo Vivo (um contraponto do belo à sua obra de grotesco na litografia), assim como continua a participar no Salão da Sociedade Promotora com seus trabalhos de realismo pitoresco.
1871 – Essa sua pesquisa no realismo, no pitoresco romântico levá-lo-à este ano a Madrid, onde participa na Exposição Internacional que ali se realizou. Teve sucesso da crítica a sua obra “As Bodas da Aldeia”.
A aventura jornalística prosseguirá com a recuperação das folhas de “A Berlinda, editando entre Janeiro e Julho mais quatro folhas, sendo a ultima referente ás Conferencias do casino, o que se transformará num excepcional registo daquela manifestação revolucionária da cultura portuguesa.
Entretanto a sua actividade de ilustrador desenvolve-se com a criação das capas dos livros “Paizagens” de Bulhão Pato, e do “Brinde Annual do Diário de Notícias”. Colaborou também no “Almanach de Gargalhadas”.
Com tanta actividade artística, mais o trabalho na Câmara dos Pares, para além da vida familiar, Raphael frequenta pelo último ano a Academia, na disciplina de Desenho do Antigo. Dizer aqui que frequenta talvez possa ser um exagero nosso, já que sabemos que se matriculou, mas não temos a certeza que ia mesmo ás aulas, já que os ecos que nos chegam é que raramente cruzava a porta daquela Academia, preferindo discutir as evoluções estéticas nas tertúlias artísticas dos cafés, antros de irreverência muito mais profícuas que as salas poeirentas da Academia. Do realismo, com inspirações românticas, vai evoluindo aos pouco para o naturalismo vanguardista.
1872 – Estes seus trabalhos de irreverência jornalística foram-se desenvolvendo essencialmente através do género da narrativa gráfica, ou seja sequência de imagens com textos que nos vão explicando de forma humorística, os grotescos do lápis. Por essa razão, não é de estranhar a nova obra que Raphael lança neste ano, o álbum “Apontamentos sobre a Picaresca Viagem do Imperador do Rasib pela Europa”. Um álbum caricatural de narrativa gráfica sobre a viagem de D.Pedro II do Brasil pela Europa. Apesar de “A Berlinda” se ter apresentado como álbum, e também ter usado este género gráfico, é tradição apresentar esta obra como o primeiro álbum de BD em Portugal. O sucesso foi enorme, o que obrigou à realização de três edições.
Para além deste trabalhos encontramos desenhos seus no álbum “A Gravura de Madeira em Portugal” de João Pedroso (um desenho sobre o fado); na revista “Artes e Letras”, no “Novo Almocreve das Petas” e em “O Japonez” (o jornal para o qual tinha feito o cabeçalho).
A sua participação nos Salões da Sociedade Promotora mantém-se, apresentando agora em Portugal a obra exposta em Madrid, complementada por um “Enterro na Aldeia”.
1873 – A 14 de Janeiro a família de Raphael cresce, com o nascimento da sua filha Helena (já tinha havido o nascimento de Augusta que não sobreviveu).
Com a família a crescer, havia necessidade de mais dinheiro, desdobrando-se Raphael numa série de colaborações, nomeadamente no “Diário Ilustrado”, no “Almanach de artes e Letras”, no “Almanach de Caricaturas para 1874”… assim como ilustrações para livros como “O Demónio do Ouro” de Camilo Castelo Branco, “A Mulher Adúltera” e “As Obras de Misericórdia” de D. Enrique Perez Escrich, “Contos e lendas” de Rebello da Silva, “A Thesourinha ou a História dos Couces” de António José Figueiredo.
Por moto próprio prossegue a intervenção com álbuns de narrativa gráfica, desta vez dedicada ao mundo do espectáculo: “M.J. ou a História Tétrica duma Empresa Lírica”, uma paródia ás vicissitudes dos empresários que tentavam explorar o Teatro de ópera de São Carlos, que apesar de ser o maior centro sócio cultural de Lisboa, passava por muitas dificuldades de sobrevivência. Dentro deste mesmo mundo do espectáculo, que Raphael adorava, inicia a edição de uma série de litografias com retratos-charge dos principais actores da cena de então. Neste ano sairão as caricaturas de João Anastácio Rosa, João Rosa, Augusto Rosa, Francisco Taborda, Theodorico Baptista da Cruz e Delfina.
A exposição em Madrid, ligada ao conhecimento do que ia publicando em Portugal, com algum contacto directo, levaria a que o caricaturista José Luis Pellicer convidasse Raphael a colaborar na sua revista “El Mundo Cómico”. Aí teria direito a capas, editando 4 desenhos de “Tipos de Lisboa”. Esta colaboração seria cobiçada por outras publicações, acabando também por colaborar na “Illustracion Española y Americana”, “El Bazar” (em 1874).
Esta sua internacionalização não se resumiria ás terras de Espanha, apesar de esta ter sido o epicentro da sua carreira extra-fronteiras. Neste ano, o seu trabalho seria também publicado em terras britânicas, já que no início do ano o redactor William Ingram do “The Illustrated London News” veio a Lisboa à procura de um ilustrador que o acompanhasse a Espanha para cobrir a guerra civil que se desenrolava naquele país entre Carlistas e Liberais. O artista escolhido foi Raphael que executou 29 magníficos “Sketchs in Spain”, divididos por números editados entre 19 de Abril e 8 de Novembro. Foi um grande sucesso em terras inglesas, que levariam a editar mais um desenho em 1875 no “The Illustrated London Almanac”. Esta foi uma aventura que certamente deu muito prazer estético a Raphael, desenvolvendo uma nova vertente gráfica da sua obra. Foi um projecto que lhe deu alento, já que devido ao sucesso do seu trabalho seria convidado a mudar-se para Londres e ser ilustrador residente da revista. Não sabemos as razões pessoais. Sabemos apenas que não aceitou, apesar da insistência, e mesmo quando mais tarde lhe pedem mais colaborações como correspondente, acaba por nunca mais enviar trabalhos.
1874 – A série de litografias com caricaturas de actores prosseguirá com a execução de retratos-charge de António Pedro, José Carlos dos Santos, Rosa Damasceno e uma nova versão de João Anastácio Rosa. Lançará também duas gravuras volantes sobre “Bom e Barato” e “Código Penal”.
O Teatro estará sempre presente em seus jornais, acompanhando as estreias, os sucessos dos actores destacando-os em magníficos retratos-charge. Muitas vezes aparecerá Raphael como assistência, como compére do espectáculo. Só tão forte como o teatro declamado, o espectáculo operático. Assim como foi um cronista da sociedade lisboeta, foi também um repórter da vida do Teatro de São Carlos, destacando as estreias, comentando as vicissitudes empresariais, caricaturando os grandes ídolos que por aqui passaram ou usando as grandes óperas para parodiar a politica nacional.
Na ilustração colaborará nos livros “O Bussaco” de Silva Matos e Lopes Mendes; “Scenas de Lisboa” de D. Tomás de Melo; “Flores Românticas – Casamentos do Diabo” e “Flores Românticas – As Obras de Misericordia” de D. Enrique Perez Escrich; “Almanach de Artes e Letras” e “Almanach de Caricaturas para 1875”.
Exporá pela última vez no Salão da Sociedade Promotora, com especial elogio do crítico António Enes.
1875 – Neste ano prosseguira suas colaborações no “Almanach de Artes e Letras” e “Almanach de Caricaturas”, assim como ilustrará o livro “Os Teatros de Lisboa” de Júlio César Machado. O teatro, a ópera, o espectáculo será presença constante na obra de Raphael, já que é uma das suas grandes paixões, como ficará expresso nesta colaboração.
Raphael está cada vez mais apaixonado pelo seu poder de intervenção jornalística e estética. Não está sozinho neste percurso, porque a sua vida artística vive essencialmente de cumplicidades, seja com os seus companheiros de tertúlia que o instigam nas suas aventuras, seja com editores, litógrafos, e essencialmente com escritores / jornalistas que de vez em quando embarcam nos seus projectos, ou que são eles os motores e o levam a integrar uma nova aventura gráfica. É o que vai acontecer este ano como o jornal “Lanterna Mágica”. É um jornal de intervenção política e comentário sócio-cultural que Guerra Junqueiro e Guilherme Azevedo sonham, e que desejam que seja ilustrado. Os melhores ilustradores da época são sem duvida Raphael e Manuel Macedo, e assim está formada a redacção base do jornal sob o pseudónimo de Gil Vaz. O mestre Manuel Macedo pouco colaborará, e aos poucos Raphael vai-se assumindo como o verdadeiro motor do jornal. Este periódico teve sucesso, razão pela qual a partir do número 8 de semanário passa a diário, o que se torna um pesado fardo para Raphael, que tem de se dividir entre o jornal, o trabalho na Câmara dos pares e a família. Apesar de tudo, o seu trabalho mantém uma qualidade crescente, com um poder interventivo que revolucionaria o jornalismo satírico em Portugal. Um dos momentos altos será a criação de uma figura (a 12 de Junho), um ícone do povo português – o Zé Povinho, o qual se transformará não apenas num boneco de Raphael, muleta de suas alegorias, mas num símbolo adoptado imediatamente por toda a nação, por todos os artistas satíricos. As outras nações criaram ícones do seu orgulho nacionalista, enquanto que Portugal preferiu um símbolo degradante de seu povo de brandos costumes, um povo sempre receptivo ás albardas que lhe adoçam no lombo, sempre submisso à miséria de políticos que ele deixa governar este país.
Raphael finalmente tinha um jornal que triunfava. Tinha um veículo de qualidade para suas charges, acompanhado de excelentes colaboradores literários… contudo a insatisfação era maior, e perante tal sentimento só há uma saída, a mudança radical, e assim, se não aceitou os convites de Londres, aceitaria de braços abertos um convite vindo do Brasil. Esse convite chegou a 23 de Julho e a 19 de Agosto estava já a embarcar para as terras de Vera Cruz, abandonando um projecto vitorioso de jornalismo, abandonando um emprego de ordenado seguro.
Fala-se que a par deste desafio vindo do Brasil também terá havido um aliciamento de uma bolsa de estudo para Roma (a tal que lhe tinha sido recusada anteriormente), para o afastar de Lisboa, e calar sua verbe satírica, mas não há elementos seguros que confirmem este boato.
Com a sua partida a “Lanterna Mágica” não tinha meios de subsistir e assim termina ao fim de 33 números, ou seja a 31 de Julho, sem qualquer justificação apresentada aos leitores. Antes de partir ainda deixou trabalhos para o “Almanach de Artes e letras”, “Almanach de Caricaturas” e ilustra “Pepita Jiménez” de D. Juan Valera.
Júlio César Machado descreve-o como “ora exaltado, ora abatido, muitas vezes sem razão; susceptível de grandes rasgos, heróico por vezes na lida, na ânsia do trabalho e da glória, mas dado a enfados, mudando de ânimo facilmente, tendo os entusiasmos e os desvios, a generosidade, o desinteresse, e também os despeitos súbitos, a inconstância febril, de artista!”.
Procurava um novo alento para a sua carreira, e já em Setembro está a trabalhar para o jornal que o contratou, “O Mosquito”, e por ironia como recepção a estas terras ainda selvagens contrai a febre amarela, por picadela de um outro mosquito.
1876 – Ainda durante o ano de 1875, enquanto fazia a “Lanterna Mágica”, foi trabalhando em mais um álbum de caricaturas, que será baptizado como “Frases e Anexins da Língua Portuguesa”, mais uma vez editado pelo seu amigo Mattos Moreira, o editor que lhe tem dado trabalho como ilustrador de livros. É mais um trabalho de observação costumbrista, onde, ao lado da filosofia popular, nos dá um retrato dos tipos que habitam este país oitocentista.
Este primeiro ano de Rio de Janeiro, vivendo numa republica de artistas (11 numa casa) foi de boémia, de aventura cultural, de descoberta de novos mundos, novas técnicas. O sucesso em breve o coloca como director do jornal. Estava feliz, razão pela qual mandou vir mulher e filha, ficando o primogénito aos cuidados dos avós paternos, tios e tias. Isto porque a 15 de Setembro morrerá sua mãe.
No Brasil não se estava a dar mal, apesar de ter sido uma viragem muito abrupta na sua vida. Em Lisboa estava habituado ao seu pequeno mundo, vivendo nesta pequena redoma que era o universo do Chiado. O seu humor era o de um observador de olhos atentos para o qual necessitava apenas de um binóculo de teatro para abarcar todos os podres, todos os vícios da governação e da sociedade. No Brasil vai descobrir que o mundo é muito maior, e não tão poeticamente romântico. Primeiro porque foi substituir no jornal o italo-brasileiro Angelo Agostini, vedeta de terras brasileiras que mais tarde não conseguirá ultrapassar a inveja que o sucesso de Raphael lhe trará; segundo porque o ambiente politico brasileiro era bem mais selvagem que o luso, ainda sob a violência do caciquismo, dos jagunços…
Se, por um lado, o público não se contentava com as singelas ironias dos desenhos da primeira fase de Raphael, exigindo maior contundência de grotescos, essa opção obrigava a maiores conflitos com os políticos e com os capangas. Raphael conseguiu cumprir os desejos dos leitores, razão pela qual se tornou rapidamente em figura admirada, respeitada, mas também temida.
Do Brasil manda colaborações para o “Almanach de Artes e letras”, “Almanach de caricaturas para 1876” e colabora no “Almanach das Senhoras para 1876”.
1877 – A sobrevivência dos jornais satíricos no Brasil, afinal tinham a mesma solidez que em Portugal. E se Raphael foi com um bom salário, em breve teve que assumir a posse de “O Mosquito” para poder sobreviver já que este ia fechar. Entrou no número 313, realizou 104 números, e mais uma vez sem aviso nem justificação, terminará sua vida a 26 de Maio de 1877. Não sabemos como sobreviverá entretanto, já que só passados quatro meses o encontramos de novo a trabalhar. Para o conseguir teve que ser ele o editor do seu novo projecto “Psit!!!” (15 de Setembro – 17 de Novembro). Psit e o Arola serão as duas personagens criados para dar vida a esta aventura, uma dupla inspirada em D. Quixote e Sancho Pança que, para grande tristeza de Raphael, não vingarão. Este jornal evitará a politica, na tentativa de não entrar em guerras que lhe trouxessem dissabores. Mesmo assim, não teve sucesso, e teve de encerrar de um dia para o outro mais esta aventura de nove números.
1878 - De novo esteve seis meses sem trabalhos, até que consegue a protecção de um capitalista português, o Visconde de S. Salvador de Matozinhos. Com esta base económica pode-se lançar a um projecto mais sólido, o qual baptizou por “O Besouro” com o objectivo de incomodar pela sátira a sociedade politica e cultural. No seu editorial faz uma breve resenha da vida de Bordallo no Brasil desde o mosquito, passando pelo Psitt: “Temos arrastado por entre vós uma existência de bicho-da-seda. Ora por cima ora por baixo da folha. Furado o primeiro casulo por falta de égua quente para matar o bicho, saiu a borboleta que nasceu e morreu efémera como o nome Psit. Dai a semente que produziu o besouro. Metamorfoseados hoje no corpulento besouro, com os pulmões bem fornecidos de ar, cravaremos de novo e com segurança a nossa velha bandeira. Viveremos muito e viveremos bem se tivermos a fortuna de lhes agradar e de os alegrar. Começamos a zumbir”.
O zumbido incomodou certas personalidades, razão pela qual Raphael passa a receber algumas ameaças, e no final do ano a redacção é assaltada, como aviso para não incomodar tanto. Contudo o único objectivo de Bordallo é o de sempre: “Não somos mais do que os fotógrafos reproduzindo as máculas dos vossos narizes, das vossas literaturas e das vossas políticas”.
Como porta-voz da mediocridade politica brasileira, Raphael criou o personagem Fagundes, uma espécie de barriga travestida de deputado, de governante, de fura vidas na politiquice.
1879 – Para além das quezílias de politiquices, Bordallo acabará também por sofrer com as quezílias do seio dos humoristas. Artistas que em vez de serem humildes perante o êxito dos colegas preferem rebaixarem-se na mediocridade das intrigas, das divisões. Se pensamos que os humoristas/caricaturistas são seres imunes à inveja, estamos muito enganados. São seres que por vezes ainda são mais aviltantes, com menor poder de encaixe, com menor sentido de humor. Foi o que aconteceu com Angelo Agostini que instigará a sociedade brasileira contra Raphael. Em breve se desenvolverá uma troca de desenhos pouco abonatórios para os dois. Este ambiente instigou os adversários de Raphael a incomodarem-no com novas perseguições, novos atentados. Abatido, incomodado, desiludido resolve regressar a Portugal, acabando a 8 de Março com “O Besouro”.
No final do mês está já embarcado, mas os primeiros dias de Abril passá-los-à em quarentena no Lazareto de Lisboa, já que esse era o procedimento com navios provindos de terras “suspeitas”. Esta sua estadia nesta hospedaria imprevista dar-lhe-á tempo para resumir a sua estadia no Brasil, e seus sonhos de regresso ao país, num álbum que será editado em 1881 com o título de “No Lazareto de Lisboa”.
De regresso, o eterno protector, ou seja, seu pai consegue que ele seja readmitido no lugar da Câmara dos Pares que ele tinha abandonado com a sua saída do país. Mas mais uma vez Raphael contrariará a vontade de seu pai, e voltará a desiludi-lo ao não aceitar tal favor. Quer ser apenas jornalista, quer viver apenas da sua arte, e de imediato arranja cúmplices para lançar um projecto jornalístico – “O António Maria” (12 de Junho).
È outro Raphael que regressa do Brasil, mais maduro, não só jornalisticamente como esteticamente. Vem com um novo olhar, sendo mais contundente nas criticas políticas, mas mantendo-se o mesmo diletante, o mesmo apaixonado pela cultura, pelo espectáculo. O novo jornal vai reflectir todo esse olhar descarnado da sociedade.
Começa por baptizar o seu jornal com os nomes próprios do principal político da época – António Maria Fontes Pereira de Melo. Apesar de ironicamente sempre afirmar que este título nada tem a ver com o tal político, nesta escolha está eminente o sarcasmo com que olha os políticos, os senhores que pensam ser os reis do mundo. A sua filosofia de irreverência esta patente no editorial que diz: “O António Maria intenta ser a synthese do bom senso nacional tocado por um raio alegre d’ esse bom sol peninsular que n’ este momento nos illumina a todos. Fará todas as diligencias para ter razão, empregando ao mesmo tempo esforços titânicos para de quando em quando, ter graça. Possuído d’estas duas ambições, claro está que António Maria não tem outro remédio, na maioria dos casos senão ser opposição declarada e franca aos governos, e opposição aberta e systematica a opposições, o que não o impossibilita de ser amável uns dias por outros, e cheio de cortezia em todos os números.”
No final do ano lançará, como marketing satírico uma série de charutos com a cinta de “António Maria”.
Para além dos trabalhos no “António Maria” também colaborará na revista “Ocidente”.
1880 – A 31 de Janeiro teve um novo golpe pessoal, com a morte de seu pai. Apesar de nem sempre ter sido um filho obediente, havia uma relação muito próxima entre todos os irmãos e entre pais e filhos. No fundo, foi Manuel Maria, com a sua paixão pelas artes, com os seus serões de exercícios plásticos, com as suas tertúlias de discussão sobre as técnicas da gravura, da pintura, das correntes estéticas que incutiu em todos os filhos esse gosto pelas artes. Por isso, se Raphael não foi um funcionário exemplar na Câmara dos Pares, se incomodou alguns dos amigos protectores do pai, este no íntimo sempre teve orgulho na obra, na carreira do filho.
O jornal “António Maria” necessitou naturalmente de um sócio com dinheiro para poder ser lançado, contudo parece que esse capitalista queria como contrapartida alguma retenção nas críticas ao partido da sua simpatia, o que obrigou a um esforço económico da parte de Raphael para recuperar a sua liberdade, comprando a cota desse capitalista partidário.
Raphael, apesar da sua anarquia de artista, em relação a questões económicas, foi conquistando alguns conhecimentos de sobrevivência jornalística, e em meados do ano reforça a sua intervenção, integrando de quando em vez uma colecção de litografias, que terão como nome global, o “Álbum das Glórias: Homens d’Estado. Poetas, Jornalistas, Dramaturgos, Actores, Políticos, Pintores, Médicos, Industriais, Typos das salas, typos das ruas, instituições, etc.”. Se o “António Maria” retrata a vida numa crónica quotidiana, o “Album” imortalizou em pose caricatural as grandes figuras de oitocentos, dando-lhes a glória da imortalidade.
1881 – Sai finalmente o álbum “No Lazareto de Lisboa”, feito em 1879 aquando do seu regresso do Brasil.
O “António Maria” não terá tido a mesma aceitação pública que a “Lanterna Mágica”, contudo dava para sobreviver, e com altos e baixos conseguirá vencer todas as vicissitudes. De todas as formas tornou-se num periódico de referência, essencial na vida dos políticos, na vida da sociedade intelectual do Chiado, ao ponto de António Meneses (Argus) ter aproveitado o seu título, para escrever uma Revista à Portuguesa. Já no ano anterior Sousa Bastos tinha usado a figura de Raphael para um quadro da sua “Revista do Ano de 1879”. Se o Teatro falava dele é porque era já uma personagem popular, e não apenas do meio restrito da política ou da alta sociedade.
Como complemento deste élan, são lançadas uma Bolachas com a marca “António Maria” e Raphael começa a publicar o seu Almanach annual, o “Almanach d’António Maria para 1882”.
Neste ano colaborará também no jornal “O Voto Livre” dos republicanos Manuel Arriaga e Magalhães Lima.
1882 – O “António Maria” apesar de ser essencialmente obra de Raphael, teve importantes colaboradores literários. O primeiro foi Guilherme de Azevedo, que assina como Ribaixo, mas com a sua partida para Paris, é substituído por Ramalho Ortigão, o Rialto, o qual a partir de Abril “voa” para outros projectos, sendo substituído por Alfredo de Morais Pinto, o Pan-tarantula.
Foram importantes estas colaborações directas, contudo Raphael usou sempre outros colaboradores indirectos para ter um humor mais directo e objectivo. Grande conversador, apaixonado pela cavaqueira de café, de botequim, de corredores dos teatros, Raphael aproveitava esses diálogos para sentir as reacções da sociedade, não só ao seu trabalho, mas essencialmente ás politicas, ás posições dos ministérios, da casa real… Como sempre defendeu, o caricaturista é essencialmente um fotógrafo, numa visão ampliada, deformada para melhor compreensão, da realidade.
Terminará neste ano a primeira série do Álbum das Glórias, com indicações para encadernação das folhas soltas entretanto vendidas encartadas no “António Maria”.
Neste ano voltará a editar o “Almanach d’António Maria para 1883”.
1883 – Apesar de o regime dizer que defende a Liberdade de Expressão, ao longo dos anos uma Lei das Rolhas foi estreitando os conceitos de liberdade de pensamento e expressão. Os políticos até então, sentiam-se incomodados com as criticas dos caricaturistas, principalmente com as de Bordallo, por serem mais inteligentes, com maior sentido humorístico, ou seja mais profundas. E como a paciência tem limites, chegou a um ponto em que o regime resolveu assustar Raphael levantando-lhe um processo. Aconteceu este ano contra o “António Maria”, o primeiro entre muitos. Contudo não tiveram coragem de apreender o jornal, ou de o suspender. Foi apenas um aviso, nada que assustasse Raphael, já vacinado em terras do Brasil. É que não havia figura politica, do poder, da oposição que não fosse vitima do lápis observador de Bordallo, sempre pronto a parodiar as situações, e as contradições entre as palavras ditas enquanto opositores e depois como governantes. Se os políticos foram as vitimas preferidas dos seus jornais, a igreja também teve seus heróis caricaturais, desde o Núncio Apostólico, passando pelos jesuítas até ao Prior da Lapa. A própria casa real, foi alvo de algumas paródias, por vezes com simpatia pelo protector das artes D. Fernando, e com mais agressividade a D. Luíz ou D. Carlos como governantes que deixavam o reino entregue a tais políticos. Os Republicanos seriam na maioria das vezes louvados, já que o republicanismo era uma solução que agradava cada vez mais a Raphael, mas como verdadeiro caricaturista de imprensa, sempre que foi necessário, também sofreram com o látego da ironia e da sátira.
Por isso prosseguia o seu percurso satírico com o mesmo empenho, lançando mais um “Almanach d’António Maria, colaborando no “Jornal da Infância”… Fará também capas ou ilustrações para livros como “O Real Teatro de S. Carlos” de Fonseca Benevides, “Delenda Albion” de Lusus (Henrique Lopes de Mendonça”; “Os fantoches de Madame Diabo” de Xavier Montepin, “Uma Viagem ao Amazonas” de D.C. Sanches de Frias…
Lançará este ano umas bolachas com a etiqueta de Bordallo Pinheiro, em vez de António Maria
Nesse ano o seu irmão Feliciano (em parceria com Felisberto José da Costa) publica um estudo sobre o mundo da cerâmica intitulado “O Projecto de uma Fábrica Nacional de Faianças das Caldas da Rainha”. Seria um acontecimento sem qualquer relevo, não se desse o caso de isto ter acontecido paralelamente a um cerco a Raphael para o interessar sobre esse projecto.
Raphael já se interessava pela maleabilidade dos barros, tendo explorado alguns barros na fábrica de cerâmica de Sacavém. Eram apenas explorações de um artista curioso, contudo a força do seio familiar no reforço da sobrevivência de todos terá alguma força nas resoluções futuras.
1884 – Raphael desenvolve mais experiências de cerâmica na Fábrica de Sacavém e na Fábrica de Francisco Gomes de Avelar, nas Caldas da Rainha durante os meses de Março e Abril, cujos trabalhos expõe em Junho no salão da Promotora. Teve boa aceitação, o que o anima para, nesse mesmo mês, entrar na aventura de seu irmão e criam a Sociedade Fabril das Caldas da Rainha. Em Setembro têm já o sector de materiais de construção em funcionamento, enquanto viajam por França, Bélgica e Inglaterra para se inteirarem das inovações tecnológicas da indústria da cerâmica. No regresso de uma destas viagens será de novo posto em quarentena no Lazareto de Lisboa, aceitando desta vez melhor essa resolução de saúde pública.
A família, como já vimos, é o núcleo fundamental da estabilidade dos Bordallo Pinheiro. A cumplicidade com o seu cunhado Henrique Lopes de Mendonça está bem patente nas páginas dos seus jornais, com constante elogios ás suas peças de Teatro, com colaboração de ilustrações… Seu irmão Columbano, ainda em pesquisa por um caminho na pintura portuguesa colaborará (medianamente) nos “António Maria” em 1883 e 1884, e a partir deste ano (desde Maio) o seu filho Manuel Gustavo passará a partilhar consigo o estirador satírico de seus jornais: “Herdeiro presuntivo da nossa glória e dos nossos bonecos, a carne da nossa carne, o lápis do nosso lápis”. Manuel Gustavo não será apenas um colaborador, mas o braço direito, o faz tudo, o cúmplice, o amparo e alento do Mestre.
O “António Maria” prosseguia seu caminho de farpas, de bengaladas nas instituições, motivo suficiente para alegoricamente ter lançado, em nova campanha de marketing, uma colecção de Bengalas sob o nome de “António Maria”.
A sociedade era não só o alvo, como o oxigénio de Raphael, já que amava este pequeno mundo que era o Chiado e seus arredores, por isso sempre que necessário ele partilha, colabora, dirige movimentos de solidariedade. Neste ano encontramo-lo à frente, como director e ilustrador, da edição de um pequeno jornal chamado “Lisboa-Creche”, jornal em benefício das Creches de D. Maria Pia. Este acto de solidariedade levará a uma pequena ruptura com o partido Republicano que o chama de vendido, ao associar-se a uma instituição que, de certo modo, estava ligada à casa real. Isso não o impede de glorificar a eleição de três deputados republicanos pela região de Lisboa, já que ele, apesar de magoado pela incompreensão do Partido, mantinha o seu ideário acima de quezílias pessoais,
Excepcionalmente enviará trabalhos seus para o estrangeiro, publicando desenhos para o “La Broma” de Madrid. Colaborará também na “Ilustração Universal”, assim como fará capas e ilustrações para o livro “Itália, recordações” e para partituras várias como o “Cancioneiro Musical Portuguez” de G. Salvini.
1885 – Em Janeiro, mais uma vez encartada no “António Maria”, inicia-se a publicação de uma segunda série de estampas do “Álbum das Glórias”. A primeira série tinha acabado em 1883, reunidas as 36 caricaturas num álbum, mas esta segunda série será apenas de 3, ficando dispersas, tal como acontecerá com as 3 saídas na terceira série de 1902.
Nesse mesmo mês de Janeiro a vida do “António Maria” teve uma morte súbita, num dos repentes do mestre. Se nas anteriores publicações não havia uma atitude drástica por razões exteriores, neste caso, deu-se como protesto pessoal de Raphael. O que aconteceu foi que se verificou um terramoto nas terras da Andaluzia, com muitas vítimas e estragos materiais. Raphael, o eterno solidário resolve apoiar a ideia de Ramalho Ortigão em realizar um peditório a favor das vítimas através dos jornais, sem qualquer ideário politico, mesmo só de solidariedade popular. Essa iniciativa foi então proibida pelo Governo Civil, com medo de aproveitamento dos republicanos. De imediato correu um abaixo-assinado entre os jornalistas contra a prepotência e falta de solidariedade governamental. Raphael tenta ir mais longe e propõe uma greve geral da imprensa por oito dias. Os jornalistas, os jornais, aqui retraíram-se, acobardaram-se… ou seja Raphael ficou sozinho, e revoltado contra a corja de jornalistas resolve acabar com o seu jornal como forma de luto, a 21 de Janeiro.
Esta quezília mais uma vez provocará uma ruptura entre ele e os partidos monárquicos, que o apelidavam de revolucionário, para além dos republicanos para quem Raphael era um “vendido”. São os custos da isenção satírica, da filosofia objectiva. Como escreverá Magalhães Lima: “De todos os jornais, de todas as publicações. De todas as manifestações feitas, promovidas e organizadas pelo Partido Republicano em Portugal, nenhuma conseguiu ainda exceder o efeito produzido por uma só página d’Antonio Maria”.
Entretanto a cerâmica serviu de via de escape a esta frustração, preparando projectos, criando condições para inicio da manufacturarão das suas peças pela sua Fábrica das Caldas. Uma das primeiras peças será um painel decorativo para a Cervejaria Leão de Ouro, um dos seus locais de tertúlia. Ele integrará, com seu irmão, o Grupo do Leão de Ouro, reunido à volta de Silva Porto, José Malhoa, do naturalismo. Este grupo será importante no amadurecimento das suas opções estéticas.
Mas bastará um simples mau humor para afastar Raphael do universo do Chiado, encerrando-se na pequena Caldas da Rainha? Esta contrariedade era suficiente para matar a sua necessidade de intervenção na sociedade, quando esta, segundo as suas páginas, estava cada vez mais necessitada de uma ruptura politica? Chegaram três meses de luto, de meditação, para perceber que a sátira, a sociedade portuguesa necessitava de si. Lança então, com seu filho o novo projecto jornalístico com a intenção de por os “Pontos nos ii”. Morreu o António, mas ficou a Maria, que já farta do luto rigoroso quer “rir, rir sem descanso, de boca escancarada até mostrar o cavername, de todos os mil grotescos que por ai fervilham como formigas n’um açucareiro”.
Como sempre, Raphael dará apoio a um ou outro jornal, assim como colaborou com várias edições de livros, como nos periódicos “Ilustração Universal”, e “Beja.créche”; ou no “Álbum do Actor Santos” de José Carlos dos Santos; “A Revolta” de Magalhães Lima, “Do Outro Lado: Cançoneta” de Alfredo Morais Pinto, “Memórias de um Sapatinho” de Thomaz de Mello; “Tam-tans” de Argus (António de Menezes), “A Velhice da Madre Eterna” de Marraschino & C.ª (Xavier de Carvalho); “A Lusa Bambochata” de J.C. Mila
1886 – Os “Pontos nos ii” prossegue o seu percurso, como continuador do “António Maria”, Mudou o título, não a filosofia, nem o interesse do publico por se manter informado, com bom humor. Como prova deste interesse, deste sucesso, encontramos no teatro de Revista, pela pena de Baptista Machado mais uma peça teatral com o título de “Pontos nos ii”.
A imprensa continuava a estar na frente dos interesses de Bordallo, contudo nova paixão ia crescendo. Na sua fábrica das Caldas, Raphael ia desenvolvendo os seus projectos; em Fevereiro já tem material suficiente para expor em Lisboa, nas salas do Comércio de Portugal”, seguida de abertura de uma loja na Avenida da Liberdade.
O sucesso foi grande, dedicando-lhe Ramalho Ortigão um estudo. Contudo para o ceramista não chegam as palmas, os elogios, necessita de encomendas para sobreviver. São peças bonitas, mas não acessíveis a qualquer bolsa. Os principais clientes serão as pessoas do regime, portanto monárquicos. Contudo Raphael não só mostra publicamente as suas simpatias pelo partido republicano, como acaba de recusar a Ordem de São Tiago concedida pelo R. D. Luís.
A Casa Real tem também uma postura de objectividade neste caso, e a rainha D. Maria Pia não tem problemas em ir visitar a exposição em Lisboa, assim como durante as suas férias em Agosto ir visitar a Fábrica das Caldas. Ela certamente não se esquece do apoio de solidariedade de Raphael a iniciativas humanitárias por ela lideradas. Em Setembro será a vez do Ministro Emílio Navarro ir visitar a Fábrica e prometer apoios, só que neste caso havia uma relação de amizade entre o cidadão e o artista. De toda esta movimentação, deste sucesso Bordallo teve duas grandes encomendas, ou seja esculturas destinadas à capela de Buçaco (uma “Via Sacra” que infelizmente acabaria por ficar suspensa já com algumas das esculturas realizadas), e painéis decorativos para o palacete Valenças.
Realiza capa e ilustrações para o livro “Aos Mutilados de Sacavém”, assim como realiza para a Fábrica de Tabacos Vasco da Gama uma série de desenhos para mortalhas.
1887 – Dia para dia a cerâmica vai tomando conta da paixão artística de Raphael, dando cada vez mais espaço nas páginas dos “Pontos nos ii” ao seu filho Manuel Gustavo. A política vai perdendo interesse, e quando morre o António Maria Fontes Pereira de Melo (3/2), o “homem dos sete instrumentos”, a “velha raposa matreira” ele suspende as ironias, os sarcasmos para afirmar a admiração pelo homem, pelo político. Escreveria então, no jornal onde muitas vezes o atacou: “… com a serenidade de quem nunca receou agredir o vivo, malquistando-se com ele, como se não peja agora de louvar o morto, que não pode agradecer-lh’o; é com essa isenção, com essa serenidade, com essa convicção e com esse desassombro, que lastimamos hoje aqui, sinceramente, com essa convicção e com esse desassombro, que lastimamos hoje aqui, sinceramente, devotamente, a perda enorme que o paíz acaba de soffrer na infausta morte de Fontes Pereira de Mello!”. Claro que houve muitas mentes tacanhas, da parte republicana e monárquica que não compreenderam este gesto, mas Raphael manteve sempre esta integridade de homem de imprensa, de comentador satírico.
Contudo Raphael manteve sempre um largo grupo de amigos, seja nas tertúlias artísticas, como nas tertúlias de boémia. Estas já não as frequentava como nos velhos tempos, mas pertencia a várias confrarias de convívio social, astronómico… Uma das mais famosas foi a criada por Francisco de Almeida Grandela, “Os Makavenkos”, os quais tinham a obrigação de ser “pantagruélicos, sentimentais, ecléticos, estóicos e polígamos”. Sobre a poligamia contam-se alguns boatos, nomeadamente de uma relação com a actriz Maria Visconti; de uma menina que seria sua filha natural, mas esses são elementos demasiado pessoais para fomentarmos boatos, sem certezas absolutas.
Apesar de ter cada vez mais o tempo ocupado nas Caldas da Rainha, ainda tem tempo para colaborar em “A Ilustração”, assim como para fazer as capas para a série de livros “Contos Modernos”, assim como para “No Tejo, publicação de caridade” e “Meios de Transporte” de Alfredo de Morais Pinto.
1888 – As invejas, a incompreensão sobre os actos dos homens não se restringe aos políticos, e os humoristas, como homens normais, e por vezes banais como muitos outros também caiem nas baixezas do insulto. Aconteceu com o caricaturista Almeida e Silva. Como já anteriormente referido, o Ministro da Industria Emílio Navarro simpatizava com o trabalho industrial de Raphael, e tal como apoiou outros industriais, também deu a Fábrica das Caldas da Rainha
Este ano verificou-se um escândalo, conhecido pela Questão Hersant, da qual Emílio Navarro acabou por ser o bode expiatório. Raphael, como seu amigo, e por achar que as culpas não eram dele, defendeu-o no jornal. Os opositores do regime, e seus inimigos que não gostavam da sua opção de criticar gregos e troianos, aproveitaram isto para o atacar. O “Charivari” do Porto não tinham muita simpatia por Bordallo, ou mais concretamente Almeida e Silva, por ser acusado de plagiar os desenhos de Raphael, o que era verdade, aproveitando então esta questão para o atacar vilmente, tendo havido uma troca de “insultos”… Tudo acabaria com o fair play de Raphael: “Pouco depois da refrega – relataria mais tarde Francisco Valença - veio Almeida e Silva a Lisboa e por qualquer motivo, precisou de ir à tipografia do Lallemant. Quem havia de lá estar também? O Rafael. Dão de cara um com o outro. Almeida e Silva estaca e pensa: Bonito! É agora! O Bordalo vai increpar-me, e daqui a pouco estamos ambos engalfinhados. Mas qual história: Rafael dirige-se-lhe, mas apenas disse: «-Ah! Silva! Você moeu-me! Você moeu-me bem!». E nada mais acrescentou. Um tanto confundido, Almeida e Silva – muito mais novo que o antagonista, respondeu-lhe com palavras cortezes e, regressado ao Porto, publicou a página de homenagem a Bordallo intitulada “Abaixo o ídolo! Viva o artista!”.
De novo o seu espírito solidário leva-o a colaborar no “Lisboa-Porto” a favor das vítimas do Teatro Baquet, que ardeu, assim como colaborará com ilustrações para os livros “Álbum de Costumes Portugueses”, e “Viagens” de Coelho de Carvalho.
No campo da cerâmica, volta a expor, agora no Ateneu Comercial do Porto, assim como na Exposição Industrial Portuguesa onde recebe uma Medalha de Ouro. Para enriquecimento técnico, partirá com seu irmão e sócio, Feliciano Bordallo Pinheiro, numa digressão por vários países.
1889 – Os “Pontos nos ii” estão cada vez mais entregues nas mãos de Manuel Gustavo. Mantendo contudo sempre a qualidade dos jornais de Bordallo Pinheiro, o qual a partir de Março é enriquecido com a colaboração literária de Fialho de Almeida, que assinará Irkan.
A cerâmica terá de novo um destaque especial este ano, ao ser convidado para decorar o Pavilhão de Portugal na Exposição Universal de Paris. Usou só elementos nacionais nos motivos cerâmicos que levou de Portugal. Este trabalho foi galardoado com uma medalha de ouro em nome da Fábrica das Caldas, uma medalha de prata e nível pessoal, para além de ter sido galardoado com o Grau de Cavaleiro da Legião de Honra.
Ainda em Paris os humoristas franceses não quiseram deixar passar despercebida a sua estadia, homenageando-o com uma soirée no “Chat Noir” (9 de Agosto), tendo como organizador o proprietário (Rodolphe Salis) do jornal humorístico, com o mesmo nome do cabaret.
Para registo deste evento, foi editada uma brochura sobre “Exposição de Paris. O pavilhão português do Quai d’Orsay”. Aqui Raphael descarrega o seu azedume em ironia por o seu trabalho ser tão elogiado no estrangeiro, e ter dificuldades de sobrevivência em Portugal. Eis suas palavras em ironia: “Nós queremos que as nossas industrias percam os seus restos do carácter nacional que ainda possuem, e passem a copiar cegamente os tipos das industrias franceses, inglesas e alemãs. Nós queremos tudo, nas nossas cidades, nas nossas casas, nas nossas mesas, nos nossos teatros, na nossa arte, na nossa literatura, e nas nossas industrias, tudo quanto não seja português, e quanto cheire a estrangeirismo… O que nós temos horror de ser é portugueses!”.
Neste âmbito de procura de decorações nacionalistas desenvolve alguns projectos de “carácter nacional” como faqueiro, baixela… de influência manuelina.
Bordallo Pinheiro será sempre um nacionalista, e se desenhou o Zé Povinho de uma forma grotesca, de uma forma aviltante foi com o sonho de ele um dia despertar para a realidade e levantar-se da modorra, revoltar-se contra a opressão de muitos séculos de inquisição religiosa e monárquica. Os seus jornais vão cada vez mais lutar por um sentimento nacionalista, tanto mais que, com os problemas nas colónias, os nossos governos iam cedendo cada vez mais aos interesses internacionais.
1890 – O ponto de ruptura verificou-se com a carta de Ultimatum que o governo inglês enviou ao governo Português para retirar as tropas portugueses da zona do Chire, zona que a Grã Bretanha resolveu assumir na sua posse. Destruindo o sonho português do Mapa cor-de-rosa, com o qual Portugal assumia como suas as terras entre Angola e Moçambique.
Raphael já há muito que usava a figura caricatural de John Bull como símbolo da prepotente Inglaterra, o qual usava o Zé como seu bombo da festa, o aviltava perante as outras nações. Seria o seu cunhado Henrique Lopes de Mendonça que faria o poema para a canção de revolta denominada “A Portuguesa”…
Os “Pontos nos ii” serão um verdadeiro baluarte de nacionalismo, de revolta, o que incomodará os senhores do poder, num momento de grande susceptibilidades, que não desejavam ver suas cobardias expostas, razão pela qual reactivam a opressão, limitam a Liberdade de expressão e querelarão Raphael.
Uma das características dos jornais dos Bordallos é que, excepção feita ás colaborações literárias, as suas páginas eram mesmo de exclusiva participação de pai e filho. Já tinha havido uma ou outra colaboração do mano Columbano, numa altura em que Raphael não estava no país e era necessário manter o jornal na rua. É verdade que houve a publicação de um ou outro desenho importado, reproduções de Caran d’Ache e William Busch (artistas que influenciaram o início de carreira de Manuel Gustavo, o qual os imitou por diversas vezes), de J. Blass e outros artistas do “Fliegenden Blatter”, mas neste ano de 1890 abrirão uma nova excepção e publicam dois desenhos de Julião Machado. Foram desenhos menores de um artista em quem Raphael depositou esperança, e com razões já que se transformará num grande artista, especialmente em terras brasileiras.
Para equilíbrio das contas, ou para responder a pedidos de amigos continua a colaborar em “A Ilustração”, ou “Anátema” (número único), e a fazer capas ou ilustrações para “A Marcha do Ódio” de Guerra Junqueiro, “ABC do Povo” de Trindade Coelho e capa a cartaz de “A Ruína da Inglaterra” de Camilo Debans.
Jean Grande-Carteret publica em Paris o livro “Bismarck en Caricatures” onde inclui desenho de Raphael Bordallo Pinheiro.
1891 – Por casualidade, quando os “Pontos nos ii” chegam ao número 294, ou seja o mesmo do “António Maria” quando este foi encerrado, termina também a sua publicação (5 de Fevereiro). Desta vez aconteceu, não por decisão pessoal, mas por imposição do Governo Civil incomodado com o apoio de Raphael à Revolta de 31 de Janeiro no Porto. Curiosamente os desenhos e artigos nem são muito corrosivos em relação à monarquia ou ao governo, antes críticos em relação ao partido Republicano por avançar com iniciativas destas, antecipando-se no tempo, quando o país ainda não está preparado. O governo não gostou destas sugestões e, de uma forma radical, proibiu a sua edição.
Apesar de Raphael estar cada vez mais interessado na sobrevivência da Fábrica das Caldas da Rainha, o momento político exigia-lhe manter-se no activo jornalístico. Foi uma fase difícil, com decisões difíceis. Por um lado a Fábrica estava com maiores problemas de tesouraria. Tiveram de encerrar a linha de produção de materiais de construção, a qual em principio seria a bóia de sustentação da parte de cerâmica criativa, e esta última não vendia tanto como seria conveniente. Por outro os jornais se não davam grandes lucros, também não davam prejuízos, ou seja equilibravam um pouco as contas.
Criar um novo jornal poderia afastar algum público menos informado, e podia incentivar a censura, por isso foi recuperar o velho título, e relançou, passado precisamente um mês, a segunda série de “O António Maria” (5 de Março). Procuram manter a mesmo filosofia satírica, ou seja serem a “synthese do bom senso nacional”, o equilíbrio entre a pacatez do António e a virulência da Maria, já que “António é o filósofo da escola de Sancho Pança, e Maria a personificação da fúria sertaneja alfacinha. António procurava ser o bom senso e a graça indígena, sem grandes admirações pelos homens, mas também sem grandes ódios por esses medonhos animaizinhos de pés, sobrecasaca, luvas pretas e boquilha, que formigam e fervilham das onze às três sob as arcadas do Terreiro do Paço. Maria era a pontinha de fel, era a dynamite, era o venenosinho do capote e lenço, introduzindo-se todos os dias na santa beatitude do atelier…”. Na realidade aqui também está sintetizado o interior de Raphael, onde a irreverência do artista deseja explodir como a Maria, enquanto que o velho mestre já só quer a pacatez do António. No meio encontramos Manuel Gustavo a dar continuidade ao projecto, a mantê-lo sempre à tona. Nesta nova série o colaborador literário será Eugénio de Castro sob o pseudónimo de Eu.
O retrato de Raphael realizado por seu irmão Columbano data deste ano (já o tinha retratado também no Grupo do Leão d’Ouro). A família será alvo de vários dos retratos do mestre da pintura, mas a figura de Raphael não ficará apenas registada por seu irmão já que ele teve sempre o gosto de se auto-retratar constantemente nos jornais, integrando-o na sociedade onde vivia, sendo um dos muitos diletantes de S. Carlos, e doutros teatros, sendo figura das tertúlias e boémias. Ele e seu filho crescerão e envelhecerão nas páginas dos seus jornais, assim como os gatos de sua casa, verdadeiros símbolos da terra alfacinha, ao ponto de um dia, por brincadeira ter sugerido criar uma hora de comida no Rossio, onde os turistas pudessem ver os milhares de gatos da capital, como vêem os pombos da praça de São Marcos em Veneza.
1892 – A crise na fábrica de Cerâmica afligia cada vez mais Raphael, o que o incentivava a fazer cada vez mais peças de extraordinária irreverência técnica, como a Talha Manuelina, a Jarra Beethoven…. Em Madrid mostra trabalhos seus na Exposição Colombiana onde mais uma fez foi galardoado com uma Medalha de Ouro. A peça Talha Manuelina acabaria por ser adquirida pelo Rei D. Carlos.
Os “Pontos nos ii” prossegue o seu caminho de comentar o quotidiano, sempre pressionado pelo poder, cada vez mais sensível ás criticas, já que, de eleição em eleição, o Partido Republicano ia conquistando cada vez mais simpatizantes.
Os amigos de Raphael conhecedores do desalento, do desânimo perante as dificuldades de sobreviver artisticamente neste país retrógrado, de tempos a tempos, procuram incentivá-lo em mudar de país. A nova aventura seria de novo em Londres. A ideia utópica partiu de Joaquim Nabuco o qual sonhava em criar um jornal ao serviço do Liberalismo internacional, radicado em Londres, onde a linguagem internacional da sátira servia de comunicação internacional. Claro que era um projecto que pecava por megalómano e sem pés para andar, e por muito louco que fosse Raphael, este nunca aceitaria entrar em tal loucura.
Para além do “António Maria”, Raphael criou um número especial para o “Comércio do Porto” denominado “Comércio do Porto Ilustrado”, onde desenvolveu a arte da BD com várias histórias humorísticas, uma colaboração anual que manteve até 1904. Realizou também uma capa para a “Charitas. Escola Politécnica” e capa e ilustrações para um “Programa do Torneio no Hippodromo de Belém”, recinto que serviu muitas vezes como cenário para alegorias politicas.
A versatilidade de assuntos comentados nos jornais dos Bordallo é imensa, desde os desportos de cavalos, passando pelas touradas, pela ginástica (Raphael tinha uma preocupação na colocação em curriculum escolar da educação física), destacando-se a esgrima onde Manuel Gustavo era um esgrimista de primeira. Os saraus, com seus bailes, festas, banquetes de homenagem estão sempre comentados nas suas páginas. Mesmo a sociedade das Caldas da Rainha, segunda casa de Raphael, passará a merecer destaque nas páginas de seus jornais, com as festas de veraneio da Foz do Arelho que frequentava.
1893 – Raphael sente-se cada vez mais apertado na sobrevivência do seu jornal, e da Fábrica de Cerâmica ao ponto de seu filho começar a pensar em criar outro trabalho paralelo para lhe dar um ordenado mais seguro ao final de cada mês. Manuel Gustavo, que era a sombra de seu pai, o seu ombro a sua bengala, nunca deixando de o venerar, nunca querendo ser destacado na sua arte não deixou de fazer seu percurso de irreverência, integrando as tertúlias de jovens artistas, procurando novos caminhos estéticos, novas experiências. Essas pesquisas, essas experiências acabaram por serem incentivo para o “velho” Bordallo também experimentar essas extravagâncias gráficas, fazendo evoluir o jornal, fazendo modernizar a paginação. Se Raphael tem sempre uma voz, tem uma autoridade na edição, não nos podemos esquecer que, na maioria dos números, ele é fechado, na quase totalidade, por Manuel Gustavo, já que Raphael passava a maior parte do tempo nas Caldas da Rainha. Havia sim uma grande cumplicidade, um constante diálogo entre ambos como se fossem um artista único.
1894 – Eugénio de Castro deixa de colaborar no “António Maria”, passando essa colaboração a E. Fernandes, o qual assina como Esculápio. Outro colaborador que aparece este ano é Celso Hermínio, só que este era um colaborador gráfico, ou seja uma nova excepção nestas páginas dominadas no desenho pelos Bordallo. Mais uma vez foi uma colaboração breve, mas neste caso não foi por o artista ter avançado para outros projectos, mas por incompatibilidades de irreverência.
Companheiro de boémias de Manuel Gustavo, companheiro das tertúlias dos “Nefelibatos”, de “Os Novos” tinha acabado de desistir de uma carreira militar para se entregar à irreverência da sátira, para lutar contra a monarquia pelo lápis. Comungava os mesmos ideais dos Bordallo, só que tinha demasiado sangue na guelra e tornava-se demasiado incomodativo para a paz que o “António Maria” desejava. Raphael já estava demasiado cansado de lutas, por essa razão Celso foi desconvidado de colaborar. Seguiria então um caminho de ruptura contra a ironia vigente, e com Leal da Câmara assumiriam uma sátira panfletária e revolucionária, num traço de expressionismo vanguardista. Porém, era um artista que Raphael muito admirava, e mais tarde quando a sua irreverência amainou, seria convidado de novo a colaborar nos projectos dos Bordallo.
Na política o país vai de mal a pior, ao ponto de ter havido dissolução do Parlamento, com implantação de uma ditadura disfarçada em eleições manobradas. O “Solar dos Barrigas” está bem acomodado numa sesta sem autorização para sobressaltos, impondo um tal Juiz Veiga para vigiar a imprensa e outros pensamentos mais ousados, e apertar-lhes as liberdades de expressão. Raphael e Manuel Gustavo nunca calarão o seu desagrado pelo aperto destas Leis da Rolha, e manifestar-se-ão sempre contra estes abusos de poder. Só que o farão de uma forma subtil, com ironia, mas procurando evitar as apreensões, as querelas judiciais.
Raphael criará este ano, ilustrações para o álbum comemorativo do Centenário do Infante D. Henrique – “In Memoriam 1394-1894 Talent de Bien Faire”, assim como para o “Livro das Crianças” de Alfredo Morais Pinto (Pantarantula).
Na imprensa realiza mais um “O Comércio do Porto Ilustrado” assim como colabora em “A Mónaco” (número único). Este jornal está ligado ao lançamento de “A Mónaco” no Rossio, para a qual Raphael realiza painéis decorativos de azulejo.
Neste campo da cerâmica Raphael verá a sua obra ser mais uma vez galardoada extra-fronteiras, com uma Medalha de Ouro na Exposição Universal de Antuérpia, quando em Portugal tem dificuldades em escoar as suas criações.
1895 – Na Exposição Industrial Portuguesa no Porto, Raphael receberá mais uma Medalha de Ouro pelo seu trabalho cerâmico. Estes prémios que vai recebendo, essencialmente no estrangeiro, não se devem a questões de decorativismo pitoresco, por virem de um país exótico da Europa, mas sim pelas ousadias estéticas e técnicas do genial artista. Insatisfeito com a monotonia, Raphael procura a irreverência que, como sempre, é criticada não só pelos académicos, assim como por vezes pelos seus amigos que deveriam estar mais receptivos a ousadias do artista.
O cansaço é muito, desiludido, triste com o país, Raphael vai abandonando cada vez mais o desenho, fechando-se nas Caldas da Rainha procurando dar voz à sua irreverência em ousadias de cerâmica. O “António Maria” sofre com este desânimo, não só de Raphael, como do próprio Manuel Gustavo, e acaba por nem sempre respeitar a periodicidade que os jornais dos Bordallo sempre tiveram.
De todos os modos o panorama da imprensa em Portugal já não é o mesmo de quando Raphael se iniciou nestas lides. Na altura os jornais noticiosos generalistas eram poucos, e o que dominava eram jornais ou políticos, ou de entretenimento, ou humorísticos. Cada um tinha a sua especialidade. Com o aparecimento do “Comércio do Porto”, do “Diário de Notícias”, do “Século”… essa estrutura foi-se alterando no final do século, ou seja, por estes anos já vai incluindo nas suas páginas alguns desenhos de humor, até integrar regularmente caricaturas na sua paginação. Isto ditará aos poucos a morte de muitos jornais satíricos, já que num jornal o leitor acabaria por encontrar tudo o que desejava, desde as noticias mais sérias, ao humor e aos comentários sociais. Raphael colaborará no “Comércio do Porto”, no “Diário de Notícias”, no “Século”
Continuando a colaborar com o editor Mattos Moreira realiza este ano capa e ilustrações para o livro “A Perdição da Mulher” de D. Perez Esrich.
1896 – Raphael mantêm a edição de números especiais do “Comércio do Porto Ilustrado” assim como colabora no “Diário de Notícias”, ao mesmo tempo que descolabora cada vez mais no “António Maria”. O próprio Manuel Gustavo também já não aposta muito no jornal e inicia a sua carreira como professor, primeiro como professor de desenho na Escola Rodrigues Sampaio, e mais tarde na Escola Industrial Fonseca Denevides,
As Caldas da Rainha são cada vez mais o seu universo. Depois da passagem de seus principais bonecos caricaturais para a cerâmica, como o John Bull escarrador, o Zé Povinho do manguito, a Maria Paciência e outras figuras basculantes, o moringue Antonio Maria… dedicava-se cada vez mais a peças sérias como o Perfumador Árabe, a Jarra Beethoven…
1897 – Dará a sua colaboração ao “Século” de Magalhães Lima, um republicano a quem Raphael mostrou sempre uma grande admiração e o apoiou. Raphael, como já vimos era um republicano de coração, contudo manteve sempre a mente aberta para ver mais longe que os fundamentalistas da politica. Foi republicano, como foi um lutador pelo operariado, pelos pobres… A politica só lhe interessava como força para mudar o que estava mal na sociedade e não como poder, já que ele sempre desconfiou dos barrigas que só se querem governar. Por essa razão foi combatido pelos monárquicos e pelos republicanos que não compreenderam a profundidade de seu pensamento crítico.
Apesar de já não frequentar, como gostaria, com a mesma assiduidade os teatros declamados, as óperas em S. Carlos… mantinha em seu convívio as grandes figuras do Teatro, e sempre que a ele se dirigiam eram incapazes de não apoiar um projecto. É dessa forma que neste ano encontramos em cena figurinos desenhados pelo mestre na peça “O Reino da Bolha” do dramaturgo Eduardo Schwalbach.
1898 – De novo encontraremos colaboração de Raphael numa peça de Eduardo Schwalbach, figurinos para a peça “Formigas e Formigueiros”. Nas muitas visitas que o dramaturgo fez a Bordallo, ás Caldas para acertar pormenores teatrais, ele recorda em suas memórias (“Á Lareira do passado” Lisboa 1944), o estado de espírito do Mestre perante as criticas de incompreensão pelo seu trabalho. Desde 1895 que trabalhava num dos projectos mais irreverentes de cerâmica, a Jarra Beethoven, não só pelo seu tamanho, como pela complexidade de elementos. Deu muito de si nela, e não aceitava que amigos seus, como Fialho de Almeida, conhecedores da sua luta pela originalidade, fossem tão críticos perante a peça. Outros poderiam sê-lo, não os amigos, tanto mais que o publico aclamará de viva voz a beleza da peça. Eis como Schwalbach nos descreve seu estado de espírito: “Uma tarde entro no seu gabinete e vejo-o sentado à mesa de trabalho, acabrunhado, os olhos murchos, os braços caídos. Em manifesto abatimento de corpo e espírito. Porquê? Por uma crítica desfavorável do Fialho à “Jarra Beethoven” que o insigne artista concebera com tão grande e propositada rebeldia. Fialho apontara-lhe formas irregulares, exageradas, inestéticas e não me lembro que mais imperfeições em desabono da obra. Raphael, amolecido, cabeça pendida e já de braços frouxos sobre as coxas desabafou «parabéns a você… não lhe parece que quando se chega à minha idade, quando se tem dado provas de não ser um ignorante, quando se conquista um nome à custa de muito trabalho e de algum fósforo cá dentro, não pode haver duvida de que o artista conhece as formas clássicas, consagradas e que se lhes foge para criar qualquer coisa arrojada, muito sua, é porque o moveram razões de especial engenho. Não comete um erro, liberta-se de peias e voa à sua vontade. Na minha Jarra a fantasia abandonou as regras estabelecidas para fazer ressaltar alguns grupos, uma figura, motivos ornamentais. De propósito o fiz, nunca por ignorância., valha-nos Deus! Atacarem por êste motivo é triste e tira a vontade de trabalhar.».
A Jarra será exposta no jardim de Inverno do Teatro D. Amélia, louvada por todos os visitantes, e onde os amigos o entusiasmaram a ir mostrar ao Brasil, e lá vende-la se não havia por cá comprador.
A fábrica estava cada vez mais com problemas económicos, e a ideia de venda em terras do Brasil parecia cada vez mais cativante.
Após as querelas últimas, após o cansaço de uma divisão entre a cerâmica e o jornal da parte de Raphael, e entre o ensino e o jornal por parte de Manuel Gustavo, os Bordallo a 7 de Julho dão por finda a aventura do “António Maria”.
Apesar do desânimo, terá ainda força para colaborar no jornal “O Proletário” e no “Diário de Notícias Ilustrado”. Fará também uma capa para o livro “A Carteira do Artista” de Sousa bastos e ilustrações para “Luigi Rasi, la Elleanor Duse”.
1899 – Sem preocupações a nível de jornalismo, Raphael dedica-se inteiramente à cerâmica. Se por um lado está aliviado por não ter aquela obrigação semanal de desenhar, ou de esquartejar a vida do país em sátiras e ironias que lhe amargavam mais a vida, não deixava de ter grandes preocupações em como salvar a Fábrica das Caldas da falência. Por essa razão parte para o Brasil para expor as suas cerâmicas, tendo como figura principal da exposição-venda, a Jarra Beethoven, Se foi difícil a sua manufacturação, pelo seu tamanho e delicadeza, não menos difícil foi o seu transporte, mas lá chegou sã e salva. Foi recebido como um grande artista que era, e as exposições no Rio de Janeiro e em São Paulo foram um grande sucesso, contudo não conseguiu comprador para a Jarra Beethoven. Como era difícil o seu transporte de regresso, fez um sorteio de rifas, conseguindo mais alguns proventos, mas não conseguindo desembaraçar-se da Jarra, porque a rifa premiada estava ainda em seu poder, resolve por isso oferece-la ao Presidente da República Campos Sales. Assim, ficou em terras brasileiras esta obra que tanta polémica deu.
De regresso (desta vez sem ter de passar pelo Lazareto), volta a dedicar-se em força à criação de peças. A principal obra deste ano foi a decoração do Palácio do Marquês da Foz.
1900 – Quando tudo fazia crer que Raphael estava definitivamente reformado do jornalismo, a sua irreverência, a sua insatisfação pelo estado do país não o deixou recusar um novo desafio lançado pelo amigo João Chagas, que será o principal colaborador literário (Rimanso): “Pelo Natal de 99, no café Martinho, - recorda Cunha Dias - João Chagas, uma noite falou-me interessado num jonal de crítica, um semanário. Marcou-se encontro para o dia seguinte. Almoçamos juntos e, depois do almoço ficou assente convidar o Rafael Bordalo Pinheiro. E lá fomos os dois ao Largo da Albegoaria, a casa do Rafael Bordalo Pinheiro, que abraçou a ideia com entusiasmo. E assim nasceu “A Paródia”, que começou a sua publicação em meados de Janeiro de 1900.”
Este projecto, ao qual Raphael se entregou com entusiasmo, apesar da consciência de já não ser aquele jovem fogoso de 1879, antes um velho cansado e doente como ele se caricaturou magistralmente no desenho “Vinte Annos depois”, procurando ainda o lume da irreverência juvenil. Mais uma vez arrastará atrás de si Manuel Gustavo para lhe segurar as pontas, e aceitando à partida outras colaborações como que para dividir o trabalho, e dar novo alento à caricatura portuguesa, dar continuidade ao seu trabalho. Recuperarão a colaboração de Celso Hermínio, assim como darão espaço para Jorge Cid, Vale e Sousa, Alonso, Manuel Monterroso…
Este jornal não queria ser apenas uma continuação dos projectos anteriores, tanto mais que a sociedade era outra como ele próprio comenta no editorial: “Os portuguezes são essencialmente conservadores. /…/ não é menos certo que se nós mudamos com frequência de fato, nós recusamos obstinadamente a mudar de ideias. /…/ Se somos inquestionavelmente um paiz de janotas, estamos longe de ser um paíz de reformadores. /…/ O António Maria, meus senhores, foi a “Regeneração”. /…/ Ficarmos dentro do “António Maria” seria ficar dentro de um museu, na situação de um velho guarda mostrando à curiosidade do seu tempo os despojos de uma épocha passada. A Paródia é outra coisa, como o tempo é outro. O António Maria foi um homem. Quando muito, foi uma família. A Paródia – dizemo-lo sem receio de ser immodestos – somos nós todos. A Paródia é a caricatura ao serviço da tristeza pública. É a Dança da Bica no cemitério dos Prazeres”.
Lançado a 17 de Janeiro, o sucesso foi imediato, e no final do ano há já em cena uma revista escrita por Baptista Dinis com o nome de “A Paródia” para a qual Raphael desenhou os figurinos.
Fará as decorações para o carro funerário de Eça de Queiroz, escritor que muita admirava e que, desta forma, quis homenagear.
Se “A Paródia” poderia ser apresentada como o principal acontecimento deste ano, não podemos deixar de destacar a sua presença, de novo na Exposição Universal de Paris. Aqui não só enchia o seu ego com os elogios ás suas obras, como bebiam, ele e seu filho, as novas estéticas gráficas, logo sentidas nas páginas de “A Paródia”.
1901 – “Rafael Bordalo e Chagas – recordará mais tarde Cunha Dias - aventavam ideias para a primeira página do primeiro número, que no parecer de João Chagas deveria ser de comentário político.”
“Desabafei: Política!... a grande porca.”
“Rafael Bordalo exclamou radiante: - Ai está a primeira página: Política, a grande porca…”
Raphael estava cansado, doente e quando inicia este projecto, apesar da aparente exaltação dos primeiros números, começa logo a desleixar-se com as colaborações e a entregar de novo a principal responsabilidade do jornal ao seu filho.
Sabia que ainda tinha muito para dizer á sociedade, mas também tinha consciência que o seu legado era enorme e que não podia abandonar a cena sem primeiro deixar o seu testamento satírico. Foram trinta anos a comentar o quotidiano, a satirizar “o Fontes e a sua Água Circassiana, o Àvila e o seu cache-nez, o Sampaio e os seus pamphletos, o arrobas e os seus editaes, o Passeio Público e o lyrismo do sr. Florencio Fereira, a srª Emilia das Neves, a «Judia» e os Recreios Whitoyne…” e de tanto observar a vida chegou à conclusão que mudam as figuras, mantém-se a mesma porca da politica, a mesma galinha choca de economia, o mesmo cão faminto das finanças, o mesmo papagaio retórico parlamentar, a mesma toupeira da reacção… Raphael, em parceria mais uma vez com o seu filho, sintetizará a vida em nove zoomorfismos satíricos. Este o seu testamento humorístico, uma meditação de profunda filosofia irónica que se não foi tão aproveitada como a sua genial criação do Zé Povinho, não deixa de ser tão importante no âmbito geral da sua obra.
A paixão teatral manteve-se ao longo de toda a vida, primeiro como actor, depois como frequentador cronista, para acabar seus dias de novo integrado no espectáculo ao assinar uma série de colaborações como figurinista. Neste ano foi para a peça “Talvez te Escreva” de Sousa Bastos, um dos amigos que por diversas vezes lhe pediu ilustrações para os seus livros sobre Teatro.
1902 - Nas páginas de “A Paródia” todas as vitórias republicanas continuam a ser louvadas. O capital será satirizado, e louvadas as lutas dos trabalhadores pelas oito horas, pela dignificação do seu trabalho com condições dignas de qualquer homem livre em comemorações do 1º de Maio. A exuberância da nobreza e dos burgueses bem instalados será denunciada em contraste da miséria, perante a indiferença do Zé… Os Bordallo, apesar de usarem uma linguagem suave de denuncia, continuam incomodativos, pela profundidade filosófica dos seus comentários. O Juiz Veiga e os seus esbirros a mando dos governos cerca cada vez mais a imprensa ao ponto de ter havido a apreensão do número 152 da Paródia, apenas porque um desenho assinado por Manuel Gustavo mostrava Hintze Ribeiro a dar graxa ás botas do Rei. Numa atitude inédita, o Juiz do Tribunal desautoriza a atitude do Juiz Veiga e exige que o jornal seja indemnizado em 8$000 reis pela execução abusiva de opressão.
Como caricaturara Bordallo em página irónica sobre a Apprehensão, para o poder tudo era suspeito, ao ponto de subverter uma simples página em branco: “ Esta falta de alusão não será uma alusão?”.
Claro que foi uma vitória para a imprensa e pessoal de Raphael, só que estas pequenas coisas incomodam, moem um artista que tinha dificuldades de sobrevivência, um artista que sabia que tinha dado muito ao país e recebido pouco. Ele viveu o período em que o artista deixou de viver do mecenato, para viver a liberdade de criar o que bem desejava, de criar em total livre pensamento. Seu pai sentiu-se muitas vezes constrangido com as sátiras do filho, porque atacavam os seus benfeitores, os mecenas que o apoiavam como artista. Raphael, como os artistas da sua geração e futuras gerações não queriam viver dessa dependência, por isso não se incomodava de satirizar á esquerda e á direita, contudo acabou por ter de viver também de certos mecenatos, de certos apoios. Sem a ajuda da casa real e de uma certa nobreza, a Fábrica das Caldas teria morrido logo à nascença; depois havia o mecenato mais anónimo, a dos admiradores como a do senhorio que ao longo de vinte e nove anos de ocupação da casa no Largo da Abegoaria, nunca lhe cobrou a renda, sentindo-se orgulhoso por dar guarida a tão insigne mestre; como o caso de muitas casas de tertúlia e boémia gastronómica como o Tavares, o Braganza… que recusavam qualquer pagamento por parte do artista, orgulhosos por ele frequentar a sua casa… Raphael, apesar de se sentir desmotivado, de por vezes se queixar de não sentir o apoio á sua arte, tinha uma série de amigos que sempre o apoiaram, sempre estiveram na retaguarda a vigiar que nunca lhe faltasse o essencial. Certamente que o maior mecenas, o maior apoio de admirador, de amizade, de carinho foi sem duvida do seu filho Manuel Gustavo.
1903 - “No banquete de sábado, o velho Portugal deu as mãos ao Portugal novo. O Portugal conservador tocou no copo do Portugal revolucionário. Velhos inimigos pactuaram. A Sociedade fez tréguas. E foi este um espectáculo que deve ter profundamente comovido o velho lutador que, tendo lançado entre os homens tantas sementes de discórdia, acabou afinal por os pôr de acordo” (in “A Paródia” de 11/6/1903)
Afinal, apesar das queixas, dos amuos pela falta de visitas ou cartas dos amigos, alguém se lembrava dele. Foi o caso da Associação de Jornalistas de Lisboa que lhe quis prestar uma homenagem nacional, com um banquete no Teatro D. Maria II (6/6/1903), aberto a todos os que lhe quisessem prestar o preito de sua admiração. Só em brindes foram programados 11, e compareceram 200 personalidades desde o campo político ao artístico, como que numa retrospectiva das figuras que ao longo dos anos ele caricaturou no seu álbum de glórias jornalísticas. Desse jantar ficaram como homenagem desenhos de Joaquim Santos Silva (Alonso), Celso Herménio, Manuel Monterroro (que veio de propósito do Porto), Jorge Cid, Jorge Colaço, Arnaldo Ressano Garcia e Francisco Teixeira. Muito se queixou contra esta iniciativa. Muito resmungou pelo cansaço que lhe deu este preito, contudo o seu ego de artista pôde-se encher de orgulho, porque conheceu na pele a admiração da sociedade que a sua genialidade tão bem retratou, que tão bem defendeu e educou para ideias novas, para a luta contra a passividade, para a luta pela irreverência do pensamento.
1904 - Mas ele está doente, e nem as várias visitas dos médicos seus amigos, como os caricaturistas Jorge Cid e Manuel Monterroso o tranquilizam. Viaja sempre que pode para as termas em tratamentos de águas que afinal não são milagrosas. Reaturam-no momentaneamente, como refere em caricaturas suas, mas depois voltam os problemas da Fábrica que está cada vez mais próxima do abismo económico. Nem os prémios, como uma nova Medalha de Ouro na Exposição Universal de St. Louis (EUA) o salvam. Faz trabalhos para o Visconde de S. João da Pesqueira, uma baixela manuelina; faz decorações para o Palacete de Ventura Terra, para a moradia do cunhado Henrique de Mendonça.
Gráficamente para além dos desenhos de “A Paródia”, para onde lhe custa cada vez mais fazer sátiras, depois de ver suas vitimas a aplaudirem-no em homenagem, faz apenas a capa da brochura de “Homenagem ao Dr. S. Magalhães Lima, ilustre director da Vanguarda…” e o número especial do “Diário de Notícias Ilustrado”, o qual era também publicado no Porto com o titulo de “Comércio do Porto Ilustrado”.
Também no Porto, fará as decorações Carnavalescas para o Teatro de São João que fizeram grande sucesso, o que motivaria novas encomendas para o ano seguinte.
1905 – Durante esta ano saem publicados trabalhos que foi fazendo ao longo de 1904, ou seja ilustrações para o livro “Impressões de Teatro” de Madureira, e uma capa para “O Festival de João de Deus” de Teófilo Braga.
Morreria a 23 de Janeiro, quando tinha em mãos os esboços para as decorações do 1º Cortejo Carnavalesco do Clube Fenianos do Porto. Morreu sonhando com o humor popular, com o sorriso do divertimento, da loucura que anualmente torna o mundo do avesso e nos faz acreditar que o mundo poderia ter salvação se os senhores do poder não se levassem tanto a sério e não nos infernizassem a vida.
O jornal “A Paródia” subsistira até 1907, quando seu filho, cansado e desiludido abandona definitivamente a sátira politica. A Fábrica das Caldas após a sua morte é….. para os credores, mas o seu filho conseguirá recuperar os moldes e as principais peças, por via judicial e voltará a criar uma nova Fábrica onde continuou a honrar o génio de seu pai e onde também ele executou com primor obras de grande qualidade estética e técnica, não fosse ele o herdeiro em quem o mestre depositou todo o seu orgulho e confiança.
O seu enterro foi assistido por uma grande multidão que não quis deixar de lhe prestar a última homenagem no caminho para o Cemitério dos Prazeres onde seria enterrado no mausoléu que ele próprio tinha desenhado para o Visconde de Faro e Oliveira.
Muitos foram os textos laudatórios, homenagens que foram publicados após a sua morte, contudo as palavras do litografo e velho amigo Caetano Alberto, em “O Occidente” serão porventura as mais significativas: “Alma bem portugueza, illuminada pela grande luz da inteligencia affirmada na sua obra, bem sua, genial que para a produzir não se aprende nas academias, para que não há compêndios, nem regras, livre, elevada como a águia que rossa as azas nas nuvens, assim foi Raphael Bordallo Pinheiro assistindo à passagem da sociedade do seu tempo.”
“Viu e criticou com superior espírito. A sua sátira foi sempre fina e nem por isso menos pungente. Os males da pátria doeram-lhe apesar de rir e muitas vezes choraria no íntimo, rindo por fora para fazer rir os mais.”
“E a rir, foi castigando com o seu mágico lápis, onde havia sempre a originalidade, onde encontrava sempre novos pontos de vista para apreciar as questões e os homens, sem rancor, sem insolência, sem grosseria, antes sempre com finura e graça, superiores, em que os próprios attingidos pela crítica tinham de lhe reconhecer o talento e muitas vezes ficariam satisfeitos por cahirem do lápis do grande caricaturista para o meio da publicidade, que dá nome, que distingue, que populariza.”
“Não se criticam nem se caricaturizam os obscuros, os inúteis. O merecer uma caricatura é estar em sorte; o ser caricaturado por um grande artista é uma honra. Assim Bordallo Pinheiro rindo, ia castigando e nem por isso os alvejados pelo seu lápis se tornariam seus inimigos. O Juiz que castiga não pode ser odiado por que cumpre a lei. A missão do crítico é árdua, mas a pena e o lápis tem conquistado mais direitos para a humanidade do que as espadas e canhões.”
“/…/ Para o futuro a sua obra se encarregará de dizer às gerações, que na segunda metade do século XIX e princípio d’este em que estamos, viveu um dos maiores artistas que tem nascido em Portugal”.
BIBLIOGRAFIA
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Sousa, Osvaldo Macedo de - 150 Anos da Caricatura em Portugal, Ed. AMI / Humorgrafe 1997
1805 – “Enquanto historiadores graves, pintores famosos, poetas celebres, escultores distintos e inspirados músicos celebravam os dotes do senhor D. João VI, as bondades e virtudes do príncipe fugido para o Brasil n’um êxodo realengo e cortesanesco, diante dos franceses invasores, aparecia nos muros do paço da Bemposta uma caricatura – uma das mais antigas de Portugal – onde o marido de Carlota Joaquina aparece de pernas tortas, barriga saliente, a cabeça com os apêndices do demónio n’uma caraça de ruminante de cuja boca saía uma frase caracterizadora e uma alusão aos 200 milhões de cruzados que se dizia terem ido na armada com a côrte acobardada e foragida. À esquerda surgia a nação com uma perna de pau e na sua frente o exército, os empregados, os operários, os ricos exclamavam: «O meu soldo, o meu ordenado, o meu salário, as minhas tenças!» A Nação, segundo uma bandeirola que lhe saía da boca, dirigia-se ao príncipe n’ estes termos bem pouco respeitosos: Ouvi, cruel, a voz dos vossos filhos. O que levas não é teu. És um ladrão. Ficamos pobres e infamados! Aparecia ainda uma fileira de frades e de lobinhos, n’uma alusão aos Lobatos, favoritos de D. João; o seu conselho privado e a Inglaterra de gorro d’algodão, bradando: Vamos! Vamos! Por detrás do conselho estava escrito: Se vêem os 200 milhões, de Londres não voltam. Bela ocasião para zombar dos credores. Nada de satisfações e que se regalem com os franceses! No alto do papel havia o seguinte dístico: A nação mais valorosa, mais fiel e menos resoluta!”
“Tal é a primeira caricatura portuguesa onde se castiga um soberano n’uma explosão de cólera e com uma risada galhofeira…” (Por Rocha Martins in “Os Serões” de Setembro de 1909)
1815 – El Cid o Campeador, Rodrigo Ruy de Vivar, ficaria conhecido pela sua irreverência guerreira, nunca desconfiando que legaria essas virtudes a longínquos descendentes. Seriam outras irreverências, outras guerras que nasceriam de uma nova dinastia provocada pelo casamento de Jacinta Adelaide Herculana Bordallo Alvarez y Asturias com Manuel Felix de Oliveira Pinheiro, os quais veriam nascer em 1815 o seu primogénito Manuel Maria Bordallo Pinheiro.
1830 / 1847 - Com o Liberalismo a imprensa ganha finalmente um impulso que a transformará num elemento normal do quotidiano português, contudo o caminho não foi simples, não só por questões tecnológicas como de luta entre a Liberdade de expressão e a vontade do poder em controlar as mentes dos seus concidadãos.
Um dos elementos que teve alguma dificuldade de inserção será a ilustração, a gravura, em cujo papel Manuel Maria Bordallo Pinheiro terá um papel de destaque nas décadas de 50/60. Nas décadas de 30/40 terá um difícil percurso, em que o caciquismo, as ditaduras de Costa Cabral tentarão bloquear a liberdade de imprensa, dando ao mesmo tempo incentivo aos irreverentes para lutarem pela nova expressão de comunicação de criatividade.
1846 – A 21 de Março, na Rua da Fé nº33, Manuel Maria Bordallo Pinheiro e Augusta Maria do Ó Carvalho Prostes viram nascer o seu terceiro filho, a quem baptizarão de Raphael Augusto Bordallo Prostes Pinheiro. Seria uma prole de doze nascimentos, dos quais sobreviveriam nove: Maria Augusta (1841 / 1915); Maria José (1842); Maria (1844); Raphael Augusto (1846 / 1905); Feliciano Augusto (1849 - 1905); Manuel Maria (1850); Augusto Cesar (1851); Filomena Augusta (1849 - 1905); Maria Amélia (1855 - 1907); Columbano (1857 - 1929); Henrique (1859) e Tomáz Maria (1861 - 1921). Destes, para além de Raphael, destacar-se-ão nas artes Maria Augusta pela sua obra de pintora de flores e renovadora da indústria das rendas de Peniche; Maria Amélia casar-se-ia com o conceituado dramaturgo e escritor Henrique Lopes de Mendonça; Columbano um dos expoentes da pintura nacional; Thomaz Maria um impulsionador das industrias da cerâmica e instigador de Raphael. Este teve quatro filhos dos quais dois se destacaram no mundo da imprensa: Fernando que dirigiu oficinas de gravura nomeadamente para o Diário de Notícias, O Século… assim como trabalhará na Fabrica de cerâmica das Caldas; Pedro destacar-se-ia como jornalista e como fundador do Diário de Lisboa, do Sempre Fixe… O seio desta família seria uma constante tertúlia artística, com os residentes a serem constantemente visitados por insignes figuras da cultura de então.
1857 – Raphael entra no Liceu, frequentando o Liceu das Merceeiras. Terá sido mau aluno, faltando muitas vezes para se dedicar à sua paixão pelo teatro. Há notícias de um quadro pintado neste ano por Raphael e oferecido a uma tia.
1860 – Temos notícias da estreia de Raphael como actor no Teatro Garrett (sito na Travessa do Forno – Anjos), uma das várias Sociedade Recreativas que animavam a cultura da capital. Tinha apenas 14 anos, e aqui terá trabalhado como decorador da sala, como cenógrafo, e finalmente como actor. Em consequência desta experiência resolve inscrever-se na Escola Dramática do Conservatório de Lisboa, dirigida por Duarte de Sá.
1861 – A eterna insatisfação artística de Raphael leva-o a tentar ultrapassar as dificuldades técnicas na pesquisa plástica que as tertúlias da casa de seus pais e das tertúlias artísticas de café o fizeram explorar, por isso inscreve-se na Academia de Belas-Artes de Lisboa em Desenho de Arquitectura Civil.
1862 – Apesar de constar que poucas aulas frequentou na Academia de Belas-Artes, volta a matricular-se em Desenho de Arquitectura Civil e Desenho Histórico.
1863 – Contrariado, aceita o emprego que seu pai lhe arranjou como Amanuense da Secretaria da Câmara dos Pares, onde seu progenitor também trabalhava. Aos 17 anos passava a ter o seu próprio ordenado com 25$000 por mês, o que lhe dava toda a liberdade de manter sua irreverência boémia, sem ser incomodado por seus pais.
1865 – A sua eterna insatisfação cultural leva-o a continuar matriculado em Desenho Antigo até 1867 e procurar novos conhecimentos no Curso Superior de Letras
1866 – Com uma vida mais estável economicamente, devido ao seu trabalho na Câmara dos Pares, resolve de repente cortar com a boémia louca por razões de amor. A 15 de Setembro casa-se repentinamente com a sua paixão Elvira Ferreira de Almeida. O seu lado boémio, a conhecida irreverência não são bons elementos de apresentação e não convencem os pais da desejada que este seja o melhor partido para ela. Por essa razão, para poderem vencer os obstáculos levantados, o noivo rapta a noiva com apoio judicial, leva-a para Almada onde se casa (tendo como padrinho Júlio César Machado), fazem a lua-de-mel na Golegã e passam a viver na casa de Pedrouços. Manuel Maria Bordallo Pinheiro aceita esta decisão intempestuosa, mas tranquilizadora, porque mostra que Raphael quer assentar e criar família. Na sua estadia na Quinta da Broa da Golegã, aproveitou o tempo para fazer uma série de desenhos e aguarelas sobre personagens rurais e paisagens campestres.
1867 – Já a viver na Travessa das Parreiras, (em Santa Marta), a 20 de Junho sua esposa dá à luz o seu primogénito o qual será baptizado como Manuel Gustavo de Almeida Bordallo Pinheiro.
1868 – Apresenta pela primeira vez desenhos seus em público, ao participar no Salão da Sociedade Promotora de Belas Artes. Este Salão surge como resposta ao Salão da Academia de Belas Artes, o qual não aceitava as ousadias dos mais jovens de espírito. Apresentou aqui os desenhos “Vendedor de phosphoros”, “Vendedor de Palitos e rocas”, o “Saloio” e “Cabeça”. Em consequência do êxito público dos seus trabalhos resolve candidatar-se a uma Bolsa de Estudo para Roma, a qual lhe será recusada. Apesar de ter sido uma afronta às suas pretensões, não o desanimou, antes o impulsionou na irreverência e na luta contra os academismos vigentes.
1869 – Havendo noticias de “caricaturas” suas nas paredes da Academia de Belas Artes a satirizarem os professores, as suas obras até ao momento verificavam-se essencialmente na busca do naturalismo pitoresco, onde o grotesco e a ironia eram mais uma qualidade estética que uma opção de género. Por essa razão, até ao momento não o vemos envolvido na imprensa. Contudo o mundo da gravura não lhe é estranho, já que seu pai e Manuel Macedo, outro mestre da gravura e do realismo eram visita costumeira nas tertúlias familiares dos Bordallo Pinheiro.
Neste ano, incentivado pelos seus amigos que admiram as suas primeiras tropelias caricaturais com os professores, resolve avançar para o seu primeiro projecto satírico, ou seja a criação de uma série de caricaturas de personalidades da cultura, eventualmente para editar em álbum. Entretanto cria o cabeçalho do Jornal “O Japonêz” um dos muitos jornais satíricos (maioritariamente sem gravuras) que nasciam e morriam todos os anos. Cria uma capa para a “Crónica dos Teatros.
Os seus estudos na Academia prosseguem, agora com a matrícula em Modelo Vivo.
1870 – Este ano dar-se-á finalmente a revolução satírica na carreira de Raphael, iniciando-se assim, sem ele saber, o seu destino de reformador do desenho satírico de imprensa em Portugal, projectando-a para o âmbito das artes maiores do jornalismo e da estética.
Logo em Fevereiro, o seu envolvimento com o mundo do teatro, leva-o a intervir com litografia alegórica à comédia “O Dente da Baroneza” de Teixeira de Vasconcelos. Teve sucesso, deu que falar, e consequentemente impulsionou-o para novos projectos. Em Maio, devido ao pronunciamento e consequente Ministério liderado pelo Duque de Saldanha, lança a litografia “Mercado dos Melões”, onde se vê o Duque a escolher os seua ministeriáveis. Novo sucesso, e novo incentivo, agora já não apenas no mundo do espectáculo, mas também na intervenção politica, o que o leva a editar a partir de Julho o periódico “A Berlinda”. È difícil considerar isto um jornal, e mesmo chamar-lhe periódico, já que eram folhas litográficas soltas, sem regularidade de saída. Ele próprio apresenta-se como “Reproduções de um álbum humorístico ao correr do Lápis”. Foram editadas 3 folhas, prosseguindo só mais tarde a sua edição. Nessa questão de conceitos, a edição que ele lançou a partir de Outubro, com a designação “O Binóculo” será mais correctamente um periódico. Neste, o próprio artista sub titula-o como hebdomadário de caricaturas. Tinha a particularidade de ser especializado no mundo do espectáculo, e vender-se dentro dos próprios teatros. Saíram 4 números. Como a maioria dos jornais deste género nesta época, teve vida curta, é um passo significativo na evolução artística de Raphael, e também porque aqui encontramos a sua primeira definição da sua arte: “O Binóculo apresenta, não comenta. Analisa, não sintetiza. Mostra os tipos. /…/ É o “binóculo” o instrumento de que o leitor, espectador ou amador se serve para ver mais de perto cenas que facilmente lhe passariam desapercebidas a olho nu. Mostra o bom e o mau: e está nisso a justificação do seu título. Quem tiver olhos, que veja; quem não quiser ver, que durma.”
No meio deste fervilhar editorial, saiu finalmente a tal série de caricaturas de personalidades, o primeiro álbum das glórias nacionais, ao qual ele deu como titulo genérico “Calcanhar d’Aquiles”. Foi o primeiro álbum de caricaturas editado em Portugal, e ao mesmo tempo o primeiro grande teste do sentido de humor da nossa sociedade. Apesar de todos os visados terem aceite serem caricaturados (já que o artista teve o cuidado de ter um consentimento prévio, em tempos de grandes susceptibilidades), fizeram-no contra vontade, para não caírem no ridículo de não terem sentido de humor, mas resmungando entre dentes que seria melhor ao artista descarregar seu talento em obras mais interessantes que o humor. E o humor crítico de Raphael ainda era incipiente, pequenas farpas que nem sequer faziam doer; mesmo assim a pele nacional parecia não querer aceitar que um artista de génio estético se dedicasse a esta baixezas mais adequadas à língua de sarcasmo e mal dizer popular. Foram seis estampas numa primeira série, e seria mais outras tantas numa segunda série, que acabou por nem ser publicado a pedido do pai do artista, sob pressão de seus confrades de tertúlia assim “ridicularizados” pelo filho deste.
Raphael prosseguiu com seus estudos de Modelo Vivo (um contraponto do belo à sua obra de grotesco na litografia), assim como continua a participar no Salão da Sociedade Promotora com seus trabalhos de realismo pitoresco.
1871 – Essa sua pesquisa no realismo, no pitoresco romântico levá-lo-à este ano a Madrid, onde participa na Exposição Internacional que ali se realizou. Teve sucesso da crítica a sua obra “As Bodas da Aldeia”.
A aventura jornalística prosseguirá com a recuperação das folhas de “A Berlinda, editando entre Janeiro e Julho mais quatro folhas, sendo a ultima referente ás Conferencias do casino, o que se transformará num excepcional registo daquela manifestação revolucionária da cultura portuguesa.
Entretanto a sua actividade de ilustrador desenvolve-se com a criação das capas dos livros “Paizagens” de Bulhão Pato, e do “Brinde Annual do Diário de Notícias”. Colaborou também no “Almanach de Gargalhadas”.
Com tanta actividade artística, mais o trabalho na Câmara dos Pares, para além da vida familiar, Raphael frequenta pelo último ano a Academia, na disciplina de Desenho do Antigo. Dizer aqui que frequenta talvez possa ser um exagero nosso, já que sabemos que se matriculou, mas não temos a certeza que ia mesmo ás aulas, já que os ecos que nos chegam é que raramente cruzava a porta daquela Academia, preferindo discutir as evoluções estéticas nas tertúlias artísticas dos cafés, antros de irreverência muito mais profícuas que as salas poeirentas da Academia. Do realismo, com inspirações românticas, vai evoluindo aos pouco para o naturalismo vanguardista.
1872 – Estes seus trabalhos de irreverência jornalística foram-se desenvolvendo essencialmente através do género da narrativa gráfica, ou seja sequência de imagens com textos que nos vão explicando de forma humorística, os grotescos do lápis. Por essa razão, não é de estranhar a nova obra que Raphael lança neste ano, o álbum “Apontamentos sobre a Picaresca Viagem do Imperador do Rasib pela Europa”. Um álbum caricatural de narrativa gráfica sobre a viagem de D.Pedro II do Brasil pela Europa. Apesar de “A Berlinda” se ter apresentado como álbum, e também ter usado este género gráfico, é tradição apresentar esta obra como o primeiro álbum de BD em Portugal. O sucesso foi enorme, o que obrigou à realização de três edições.
Para além deste trabalhos encontramos desenhos seus no álbum “A Gravura de Madeira em Portugal” de João Pedroso (um desenho sobre o fado); na revista “Artes e Letras”, no “Novo Almocreve das Petas” e em “O Japonez” (o jornal para o qual tinha feito o cabeçalho).
A sua participação nos Salões da Sociedade Promotora mantém-se, apresentando agora em Portugal a obra exposta em Madrid, complementada por um “Enterro na Aldeia”.
1873 – A 14 de Janeiro a família de Raphael cresce, com o nascimento da sua filha Helena (já tinha havido o nascimento de Augusta que não sobreviveu).
Com a família a crescer, havia necessidade de mais dinheiro, desdobrando-se Raphael numa série de colaborações, nomeadamente no “Diário Ilustrado”, no “Almanach de artes e Letras”, no “Almanach de Caricaturas para 1874”… assim como ilustrações para livros como “O Demónio do Ouro” de Camilo Castelo Branco, “A Mulher Adúltera” e “As Obras de Misericórdia” de D. Enrique Perez Escrich, “Contos e lendas” de Rebello da Silva, “A Thesourinha ou a História dos Couces” de António José Figueiredo.
Por moto próprio prossegue a intervenção com álbuns de narrativa gráfica, desta vez dedicada ao mundo do espectáculo: “M.J. ou a História Tétrica duma Empresa Lírica”, uma paródia ás vicissitudes dos empresários que tentavam explorar o Teatro de ópera de São Carlos, que apesar de ser o maior centro sócio cultural de Lisboa, passava por muitas dificuldades de sobrevivência. Dentro deste mesmo mundo do espectáculo, que Raphael adorava, inicia a edição de uma série de litografias com retratos-charge dos principais actores da cena de então. Neste ano sairão as caricaturas de João Anastácio Rosa, João Rosa, Augusto Rosa, Francisco Taborda, Theodorico Baptista da Cruz e Delfina.
A exposição em Madrid, ligada ao conhecimento do que ia publicando em Portugal, com algum contacto directo, levaria a que o caricaturista José Luis Pellicer convidasse Raphael a colaborar na sua revista “El Mundo Cómico”. Aí teria direito a capas, editando 4 desenhos de “Tipos de Lisboa”. Esta colaboração seria cobiçada por outras publicações, acabando também por colaborar na “Illustracion Española y Americana”, “El Bazar” (em 1874).
Esta sua internacionalização não se resumiria ás terras de Espanha, apesar de esta ter sido o epicentro da sua carreira extra-fronteiras. Neste ano, o seu trabalho seria também publicado em terras britânicas, já que no início do ano o redactor William Ingram do “The Illustrated London News” veio a Lisboa à procura de um ilustrador que o acompanhasse a Espanha para cobrir a guerra civil que se desenrolava naquele país entre Carlistas e Liberais. O artista escolhido foi Raphael que executou 29 magníficos “Sketchs in Spain”, divididos por números editados entre 19 de Abril e 8 de Novembro. Foi um grande sucesso em terras inglesas, que levariam a editar mais um desenho em 1875 no “The Illustrated London Almanac”. Esta foi uma aventura que certamente deu muito prazer estético a Raphael, desenvolvendo uma nova vertente gráfica da sua obra. Foi um projecto que lhe deu alento, já que devido ao sucesso do seu trabalho seria convidado a mudar-se para Londres e ser ilustrador residente da revista. Não sabemos as razões pessoais. Sabemos apenas que não aceitou, apesar da insistência, e mesmo quando mais tarde lhe pedem mais colaborações como correspondente, acaba por nunca mais enviar trabalhos.
1874 – A série de litografias com caricaturas de actores prosseguirá com a execução de retratos-charge de António Pedro, José Carlos dos Santos, Rosa Damasceno e uma nova versão de João Anastácio Rosa. Lançará também duas gravuras volantes sobre “Bom e Barato” e “Código Penal”.
O Teatro estará sempre presente em seus jornais, acompanhando as estreias, os sucessos dos actores destacando-os em magníficos retratos-charge. Muitas vezes aparecerá Raphael como assistência, como compére do espectáculo. Só tão forte como o teatro declamado, o espectáculo operático. Assim como foi um cronista da sociedade lisboeta, foi também um repórter da vida do Teatro de São Carlos, destacando as estreias, comentando as vicissitudes empresariais, caricaturando os grandes ídolos que por aqui passaram ou usando as grandes óperas para parodiar a politica nacional.
Na ilustração colaborará nos livros “O Bussaco” de Silva Matos e Lopes Mendes; “Scenas de Lisboa” de D. Tomás de Melo; “Flores Românticas – Casamentos do Diabo” e “Flores Românticas – As Obras de Misericordia” de D. Enrique Perez Escrich; “Almanach de Artes e Letras” e “Almanach de Caricaturas para 1875”.
Exporá pela última vez no Salão da Sociedade Promotora, com especial elogio do crítico António Enes.
1875 – Neste ano prosseguira suas colaborações no “Almanach de Artes e Letras” e “Almanach de Caricaturas”, assim como ilustrará o livro “Os Teatros de Lisboa” de Júlio César Machado. O teatro, a ópera, o espectáculo será presença constante na obra de Raphael, já que é uma das suas grandes paixões, como ficará expresso nesta colaboração.
Raphael está cada vez mais apaixonado pelo seu poder de intervenção jornalística e estética. Não está sozinho neste percurso, porque a sua vida artística vive essencialmente de cumplicidades, seja com os seus companheiros de tertúlia que o instigam nas suas aventuras, seja com editores, litógrafos, e essencialmente com escritores / jornalistas que de vez em quando embarcam nos seus projectos, ou que são eles os motores e o levam a integrar uma nova aventura gráfica. É o que vai acontecer este ano como o jornal “Lanterna Mágica”. É um jornal de intervenção política e comentário sócio-cultural que Guerra Junqueiro e Guilherme Azevedo sonham, e que desejam que seja ilustrado. Os melhores ilustradores da época são sem duvida Raphael e Manuel Macedo, e assim está formada a redacção base do jornal sob o pseudónimo de Gil Vaz. O mestre Manuel Macedo pouco colaborará, e aos poucos Raphael vai-se assumindo como o verdadeiro motor do jornal. Este periódico teve sucesso, razão pela qual a partir do número 8 de semanário passa a diário, o que se torna um pesado fardo para Raphael, que tem de se dividir entre o jornal, o trabalho na Câmara dos pares e a família. Apesar de tudo, o seu trabalho mantém uma qualidade crescente, com um poder interventivo que revolucionaria o jornalismo satírico em Portugal. Um dos momentos altos será a criação de uma figura (a 12 de Junho), um ícone do povo português – o Zé Povinho, o qual se transformará não apenas num boneco de Raphael, muleta de suas alegorias, mas num símbolo adoptado imediatamente por toda a nação, por todos os artistas satíricos. As outras nações criaram ícones do seu orgulho nacionalista, enquanto que Portugal preferiu um símbolo degradante de seu povo de brandos costumes, um povo sempre receptivo ás albardas que lhe adoçam no lombo, sempre submisso à miséria de políticos que ele deixa governar este país.
Raphael finalmente tinha um jornal que triunfava. Tinha um veículo de qualidade para suas charges, acompanhado de excelentes colaboradores literários… contudo a insatisfação era maior, e perante tal sentimento só há uma saída, a mudança radical, e assim, se não aceitou os convites de Londres, aceitaria de braços abertos um convite vindo do Brasil. Esse convite chegou a 23 de Julho e a 19 de Agosto estava já a embarcar para as terras de Vera Cruz, abandonando um projecto vitorioso de jornalismo, abandonando um emprego de ordenado seguro.
Fala-se que a par deste desafio vindo do Brasil também terá havido um aliciamento de uma bolsa de estudo para Roma (a tal que lhe tinha sido recusada anteriormente), para o afastar de Lisboa, e calar sua verbe satírica, mas não há elementos seguros que confirmem este boato.
Com a sua partida a “Lanterna Mágica” não tinha meios de subsistir e assim termina ao fim de 33 números, ou seja a 31 de Julho, sem qualquer justificação apresentada aos leitores. Antes de partir ainda deixou trabalhos para o “Almanach de Artes e letras”, “Almanach de Caricaturas” e ilustra “Pepita Jiménez” de D. Juan Valera.
Júlio César Machado descreve-o como “ora exaltado, ora abatido, muitas vezes sem razão; susceptível de grandes rasgos, heróico por vezes na lida, na ânsia do trabalho e da glória, mas dado a enfados, mudando de ânimo facilmente, tendo os entusiasmos e os desvios, a generosidade, o desinteresse, e também os despeitos súbitos, a inconstância febril, de artista!”.
Procurava um novo alento para a sua carreira, e já em Setembro está a trabalhar para o jornal que o contratou, “O Mosquito”, e por ironia como recepção a estas terras ainda selvagens contrai a febre amarela, por picadela de um outro mosquito.
1876 – Ainda durante o ano de 1875, enquanto fazia a “Lanterna Mágica”, foi trabalhando em mais um álbum de caricaturas, que será baptizado como “Frases e Anexins da Língua Portuguesa”, mais uma vez editado pelo seu amigo Mattos Moreira, o editor que lhe tem dado trabalho como ilustrador de livros. É mais um trabalho de observação costumbrista, onde, ao lado da filosofia popular, nos dá um retrato dos tipos que habitam este país oitocentista.
Este primeiro ano de Rio de Janeiro, vivendo numa republica de artistas (11 numa casa) foi de boémia, de aventura cultural, de descoberta de novos mundos, novas técnicas. O sucesso em breve o coloca como director do jornal. Estava feliz, razão pela qual mandou vir mulher e filha, ficando o primogénito aos cuidados dos avós paternos, tios e tias. Isto porque a 15 de Setembro morrerá sua mãe.
No Brasil não se estava a dar mal, apesar de ter sido uma viragem muito abrupta na sua vida. Em Lisboa estava habituado ao seu pequeno mundo, vivendo nesta pequena redoma que era o universo do Chiado. O seu humor era o de um observador de olhos atentos para o qual necessitava apenas de um binóculo de teatro para abarcar todos os podres, todos os vícios da governação e da sociedade. No Brasil vai descobrir que o mundo é muito maior, e não tão poeticamente romântico. Primeiro porque foi substituir no jornal o italo-brasileiro Angelo Agostini, vedeta de terras brasileiras que mais tarde não conseguirá ultrapassar a inveja que o sucesso de Raphael lhe trará; segundo porque o ambiente politico brasileiro era bem mais selvagem que o luso, ainda sob a violência do caciquismo, dos jagunços…
Se, por um lado, o público não se contentava com as singelas ironias dos desenhos da primeira fase de Raphael, exigindo maior contundência de grotescos, essa opção obrigava a maiores conflitos com os políticos e com os capangas. Raphael conseguiu cumprir os desejos dos leitores, razão pela qual se tornou rapidamente em figura admirada, respeitada, mas também temida.
Do Brasil manda colaborações para o “Almanach de Artes e letras”, “Almanach de caricaturas para 1876” e colabora no “Almanach das Senhoras para 1876”.
1877 – A sobrevivência dos jornais satíricos no Brasil, afinal tinham a mesma solidez que em Portugal. E se Raphael foi com um bom salário, em breve teve que assumir a posse de “O Mosquito” para poder sobreviver já que este ia fechar. Entrou no número 313, realizou 104 números, e mais uma vez sem aviso nem justificação, terminará sua vida a 26 de Maio de 1877. Não sabemos como sobreviverá entretanto, já que só passados quatro meses o encontramos de novo a trabalhar. Para o conseguir teve que ser ele o editor do seu novo projecto “Psit!!!” (15 de Setembro – 17 de Novembro). Psit e o Arola serão as duas personagens criados para dar vida a esta aventura, uma dupla inspirada em D. Quixote e Sancho Pança que, para grande tristeza de Raphael, não vingarão. Este jornal evitará a politica, na tentativa de não entrar em guerras que lhe trouxessem dissabores. Mesmo assim, não teve sucesso, e teve de encerrar de um dia para o outro mais esta aventura de nove números.
1878 - De novo esteve seis meses sem trabalhos, até que consegue a protecção de um capitalista português, o Visconde de S. Salvador de Matozinhos. Com esta base económica pode-se lançar a um projecto mais sólido, o qual baptizou por “O Besouro” com o objectivo de incomodar pela sátira a sociedade politica e cultural. No seu editorial faz uma breve resenha da vida de Bordallo no Brasil desde o mosquito, passando pelo Psitt: “Temos arrastado por entre vós uma existência de bicho-da-seda. Ora por cima ora por baixo da folha. Furado o primeiro casulo por falta de égua quente para matar o bicho, saiu a borboleta que nasceu e morreu efémera como o nome Psit. Dai a semente que produziu o besouro. Metamorfoseados hoje no corpulento besouro, com os pulmões bem fornecidos de ar, cravaremos de novo e com segurança a nossa velha bandeira. Viveremos muito e viveremos bem se tivermos a fortuna de lhes agradar e de os alegrar. Começamos a zumbir”.
O zumbido incomodou certas personalidades, razão pela qual Raphael passa a receber algumas ameaças, e no final do ano a redacção é assaltada, como aviso para não incomodar tanto. Contudo o único objectivo de Bordallo é o de sempre: “Não somos mais do que os fotógrafos reproduzindo as máculas dos vossos narizes, das vossas literaturas e das vossas políticas”.
Como porta-voz da mediocridade politica brasileira, Raphael criou o personagem Fagundes, uma espécie de barriga travestida de deputado, de governante, de fura vidas na politiquice.
1879 – Para além das quezílias de politiquices, Bordallo acabará também por sofrer com as quezílias do seio dos humoristas. Artistas que em vez de serem humildes perante o êxito dos colegas preferem rebaixarem-se na mediocridade das intrigas, das divisões. Se pensamos que os humoristas/caricaturistas são seres imunes à inveja, estamos muito enganados. São seres que por vezes ainda são mais aviltantes, com menor poder de encaixe, com menor sentido de humor. Foi o que aconteceu com Angelo Agostini que instigará a sociedade brasileira contra Raphael. Em breve se desenvolverá uma troca de desenhos pouco abonatórios para os dois. Este ambiente instigou os adversários de Raphael a incomodarem-no com novas perseguições, novos atentados. Abatido, incomodado, desiludido resolve regressar a Portugal, acabando a 8 de Março com “O Besouro”.
No final do mês está já embarcado, mas os primeiros dias de Abril passá-los-à em quarentena no Lazareto de Lisboa, já que esse era o procedimento com navios provindos de terras “suspeitas”. Esta sua estadia nesta hospedaria imprevista dar-lhe-á tempo para resumir a sua estadia no Brasil, e seus sonhos de regresso ao país, num álbum que será editado em 1881 com o título de “No Lazareto de Lisboa”.
De regresso, o eterno protector, ou seja, seu pai consegue que ele seja readmitido no lugar da Câmara dos Pares que ele tinha abandonado com a sua saída do país. Mas mais uma vez Raphael contrariará a vontade de seu pai, e voltará a desiludi-lo ao não aceitar tal favor. Quer ser apenas jornalista, quer viver apenas da sua arte, e de imediato arranja cúmplices para lançar um projecto jornalístico – “O António Maria” (12 de Junho).
È outro Raphael que regressa do Brasil, mais maduro, não só jornalisticamente como esteticamente. Vem com um novo olhar, sendo mais contundente nas criticas políticas, mas mantendo-se o mesmo diletante, o mesmo apaixonado pela cultura, pelo espectáculo. O novo jornal vai reflectir todo esse olhar descarnado da sociedade.
Começa por baptizar o seu jornal com os nomes próprios do principal político da época – António Maria Fontes Pereira de Melo. Apesar de ironicamente sempre afirmar que este título nada tem a ver com o tal político, nesta escolha está eminente o sarcasmo com que olha os políticos, os senhores que pensam ser os reis do mundo. A sua filosofia de irreverência esta patente no editorial que diz: “O António Maria intenta ser a synthese do bom senso nacional tocado por um raio alegre d’ esse bom sol peninsular que n’ este momento nos illumina a todos. Fará todas as diligencias para ter razão, empregando ao mesmo tempo esforços titânicos para de quando em quando, ter graça. Possuído d’estas duas ambições, claro está que António Maria não tem outro remédio, na maioria dos casos senão ser opposição declarada e franca aos governos, e opposição aberta e systematica a opposições, o que não o impossibilita de ser amável uns dias por outros, e cheio de cortezia em todos os números.”
No final do ano lançará, como marketing satírico uma série de charutos com a cinta de “António Maria”.
Para além dos trabalhos no “António Maria” também colaborará na revista “Ocidente”.
1880 – A 31 de Janeiro teve um novo golpe pessoal, com a morte de seu pai. Apesar de nem sempre ter sido um filho obediente, havia uma relação muito próxima entre todos os irmãos e entre pais e filhos. No fundo, foi Manuel Maria, com a sua paixão pelas artes, com os seus serões de exercícios plásticos, com as suas tertúlias de discussão sobre as técnicas da gravura, da pintura, das correntes estéticas que incutiu em todos os filhos esse gosto pelas artes. Por isso, se Raphael não foi um funcionário exemplar na Câmara dos Pares, se incomodou alguns dos amigos protectores do pai, este no íntimo sempre teve orgulho na obra, na carreira do filho.
O jornal “António Maria” necessitou naturalmente de um sócio com dinheiro para poder ser lançado, contudo parece que esse capitalista queria como contrapartida alguma retenção nas críticas ao partido da sua simpatia, o que obrigou a um esforço económico da parte de Raphael para recuperar a sua liberdade, comprando a cota desse capitalista partidário.
Raphael, apesar da sua anarquia de artista, em relação a questões económicas, foi conquistando alguns conhecimentos de sobrevivência jornalística, e em meados do ano reforça a sua intervenção, integrando de quando em vez uma colecção de litografias, que terão como nome global, o “Álbum das Glórias: Homens d’Estado. Poetas, Jornalistas, Dramaturgos, Actores, Políticos, Pintores, Médicos, Industriais, Typos das salas, typos das ruas, instituições, etc.”. Se o “António Maria” retrata a vida numa crónica quotidiana, o “Album” imortalizou em pose caricatural as grandes figuras de oitocentos, dando-lhes a glória da imortalidade.
1881 – Sai finalmente o álbum “No Lazareto de Lisboa”, feito em 1879 aquando do seu regresso do Brasil.
O “António Maria” não terá tido a mesma aceitação pública que a “Lanterna Mágica”, contudo dava para sobreviver, e com altos e baixos conseguirá vencer todas as vicissitudes. De todas as formas tornou-se num periódico de referência, essencial na vida dos políticos, na vida da sociedade intelectual do Chiado, ao ponto de António Meneses (Argus) ter aproveitado o seu título, para escrever uma Revista à Portuguesa. Já no ano anterior Sousa Bastos tinha usado a figura de Raphael para um quadro da sua “Revista do Ano de 1879”. Se o Teatro falava dele é porque era já uma personagem popular, e não apenas do meio restrito da política ou da alta sociedade.
Como complemento deste élan, são lançadas uma Bolachas com a marca “António Maria” e Raphael começa a publicar o seu Almanach annual, o “Almanach d’António Maria para 1882”.
Neste ano colaborará também no jornal “O Voto Livre” dos republicanos Manuel Arriaga e Magalhães Lima.
1882 – O “António Maria” apesar de ser essencialmente obra de Raphael, teve importantes colaboradores literários. O primeiro foi Guilherme de Azevedo, que assina como Ribaixo, mas com a sua partida para Paris, é substituído por Ramalho Ortigão, o Rialto, o qual a partir de Abril “voa” para outros projectos, sendo substituído por Alfredo de Morais Pinto, o Pan-tarantula.
Foram importantes estas colaborações directas, contudo Raphael usou sempre outros colaboradores indirectos para ter um humor mais directo e objectivo. Grande conversador, apaixonado pela cavaqueira de café, de botequim, de corredores dos teatros, Raphael aproveitava esses diálogos para sentir as reacções da sociedade, não só ao seu trabalho, mas essencialmente ás politicas, ás posições dos ministérios, da casa real… Como sempre defendeu, o caricaturista é essencialmente um fotógrafo, numa visão ampliada, deformada para melhor compreensão, da realidade.
Terminará neste ano a primeira série do Álbum das Glórias, com indicações para encadernação das folhas soltas entretanto vendidas encartadas no “António Maria”.
Neste ano voltará a editar o “Almanach d’António Maria para 1883”.
1883 – Apesar de o regime dizer que defende a Liberdade de Expressão, ao longo dos anos uma Lei das Rolhas foi estreitando os conceitos de liberdade de pensamento e expressão. Os políticos até então, sentiam-se incomodados com as criticas dos caricaturistas, principalmente com as de Bordallo, por serem mais inteligentes, com maior sentido humorístico, ou seja mais profundas. E como a paciência tem limites, chegou a um ponto em que o regime resolveu assustar Raphael levantando-lhe um processo. Aconteceu este ano contra o “António Maria”, o primeiro entre muitos. Contudo não tiveram coragem de apreender o jornal, ou de o suspender. Foi apenas um aviso, nada que assustasse Raphael, já vacinado em terras do Brasil. É que não havia figura politica, do poder, da oposição que não fosse vitima do lápis observador de Bordallo, sempre pronto a parodiar as situações, e as contradições entre as palavras ditas enquanto opositores e depois como governantes. Se os políticos foram as vitimas preferidas dos seus jornais, a igreja também teve seus heróis caricaturais, desde o Núncio Apostólico, passando pelos jesuítas até ao Prior da Lapa. A própria casa real, foi alvo de algumas paródias, por vezes com simpatia pelo protector das artes D. Fernando, e com mais agressividade a D. Luíz ou D. Carlos como governantes que deixavam o reino entregue a tais políticos. Os Republicanos seriam na maioria das vezes louvados, já que o republicanismo era uma solução que agradava cada vez mais a Raphael, mas como verdadeiro caricaturista de imprensa, sempre que foi necessário, também sofreram com o látego da ironia e da sátira.
Por isso prosseguia o seu percurso satírico com o mesmo empenho, lançando mais um “Almanach d’António Maria, colaborando no “Jornal da Infância”… Fará também capas ou ilustrações para livros como “O Real Teatro de S. Carlos” de Fonseca Benevides, “Delenda Albion” de Lusus (Henrique Lopes de Mendonça”; “Os fantoches de Madame Diabo” de Xavier Montepin, “Uma Viagem ao Amazonas” de D.C. Sanches de Frias…
Lançará este ano umas bolachas com a etiqueta de Bordallo Pinheiro, em vez de António Maria
Nesse ano o seu irmão Feliciano (em parceria com Felisberto José da Costa) publica um estudo sobre o mundo da cerâmica intitulado “O Projecto de uma Fábrica Nacional de Faianças das Caldas da Rainha”. Seria um acontecimento sem qualquer relevo, não se desse o caso de isto ter acontecido paralelamente a um cerco a Raphael para o interessar sobre esse projecto.
Raphael já se interessava pela maleabilidade dos barros, tendo explorado alguns barros na fábrica de cerâmica de Sacavém. Eram apenas explorações de um artista curioso, contudo a força do seio familiar no reforço da sobrevivência de todos terá alguma força nas resoluções futuras.
1884 – Raphael desenvolve mais experiências de cerâmica na Fábrica de Sacavém e na Fábrica de Francisco Gomes de Avelar, nas Caldas da Rainha durante os meses de Março e Abril, cujos trabalhos expõe em Junho no salão da Promotora. Teve boa aceitação, o que o anima para, nesse mesmo mês, entrar na aventura de seu irmão e criam a Sociedade Fabril das Caldas da Rainha. Em Setembro têm já o sector de materiais de construção em funcionamento, enquanto viajam por França, Bélgica e Inglaterra para se inteirarem das inovações tecnológicas da indústria da cerâmica. No regresso de uma destas viagens será de novo posto em quarentena no Lazareto de Lisboa, aceitando desta vez melhor essa resolução de saúde pública.
A família, como já vimos, é o núcleo fundamental da estabilidade dos Bordallo Pinheiro. A cumplicidade com o seu cunhado Henrique Lopes de Mendonça está bem patente nas páginas dos seus jornais, com constante elogios ás suas peças de Teatro, com colaboração de ilustrações… Seu irmão Columbano, ainda em pesquisa por um caminho na pintura portuguesa colaborará (medianamente) nos “António Maria” em 1883 e 1884, e a partir deste ano (desde Maio) o seu filho Manuel Gustavo passará a partilhar consigo o estirador satírico de seus jornais: “Herdeiro presuntivo da nossa glória e dos nossos bonecos, a carne da nossa carne, o lápis do nosso lápis”. Manuel Gustavo não será apenas um colaborador, mas o braço direito, o faz tudo, o cúmplice, o amparo e alento do Mestre.
O “António Maria” prosseguia seu caminho de farpas, de bengaladas nas instituições, motivo suficiente para alegoricamente ter lançado, em nova campanha de marketing, uma colecção de Bengalas sob o nome de “António Maria”.
A sociedade era não só o alvo, como o oxigénio de Raphael, já que amava este pequeno mundo que era o Chiado e seus arredores, por isso sempre que necessário ele partilha, colabora, dirige movimentos de solidariedade. Neste ano encontramo-lo à frente, como director e ilustrador, da edição de um pequeno jornal chamado “Lisboa-Creche”, jornal em benefício das Creches de D. Maria Pia. Este acto de solidariedade levará a uma pequena ruptura com o partido Republicano que o chama de vendido, ao associar-se a uma instituição que, de certo modo, estava ligada à casa real. Isso não o impede de glorificar a eleição de três deputados republicanos pela região de Lisboa, já que ele, apesar de magoado pela incompreensão do Partido, mantinha o seu ideário acima de quezílias pessoais,
Excepcionalmente enviará trabalhos seus para o estrangeiro, publicando desenhos para o “La Broma” de Madrid. Colaborará também na “Ilustração Universal”, assim como fará capas e ilustrações para o livro “Itália, recordações” e para partituras várias como o “Cancioneiro Musical Portuguez” de G. Salvini.
1885 – Em Janeiro, mais uma vez encartada no “António Maria”, inicia-se a publicação de uma segunda série de estampas do “Álbum das Glórias”. A primeira série tinha acabado em 1883, reunidas as 36 caricaturas num álbum, mas esta segunda série será apenas de 3, ficando dispersas, tal como acontecerá com as 3 saídas na terceira série de 1902.
Nesse mesmo mês de Janeiro a vida do “António Maria” teve uma morte súbita, num dos repentes do mestre. Se nas anteriores publicações não havia uma atitude drástica por razões exteriores, neste caso, deu-se como protesto pessoal de Raphael. O que aconteceu foi que se verificou um terramoto nas terras da Andaluzia, com muitas vítimas e estragos materiais. Raphael, o eterno solidário resolve apoiar a ideia de Ramalho Ortigão em realizar um peditório a favor das vítimas através dos jornais, sem qualquer ideário politico, mesmo só de solidariedade popular. Essa iniciativa foi então proibida pelo Governo Civil, com medo de aproveitamento dos republicanos. De imediato correu um abaixo-assinado entre os jornalistas contra a prepotência e falta de solidariedade governamental. Raphael tenta ir mais longe e propõe uma greve geral da imprensa por oito dias. Os jornalistas, os jornais, aqui retraíram-se, acobardaram-se… ou seja Raphael ficou sozinho, e revoltado contra a corja de jornalistas resolve acabar com o seu jornal como forma de luto, a 21 de Janeiro.
Esta quezília mais uma vez provocará uma ruptura entre ele e os partidos monárquicos, que o apelidavam de revolucionário, para além dos republicanos para quem Raphael era um “vendido”. São os custos da isenção satírica, da filosofia objectiva. Como escreverá Magalhães Lima: “De todos os jornais, de todas as publicações. De todas as manifestações feitas, promovidas e organizadas pelo Partido Republicano em Portugal, nenhuma conseguiu ainda exceder o efeito produzido por uma só página d’Antonio Maria”.
Entretanto a cerâmica serviu de via de escape a esta frustração, preparando projectos, criando condições para inicio da manufacturarão das suas peças pela sua Fábrica das Caldas. Uma das primeiras peças será um painel decorativo para a Cervejaria Leão de Ouro, um dos seus locais de tertúlia. Ele integrará, com seu irmão, o Grupo do Leão de Ouro, reunido à volta de Silva Porto, José Malhoa, do naturalismo. Este grupo será importante no amadurecimento das suas opções estéticas.
Mas bastará um simples mau humor para afastar Raphael do universo do Chiado, encerrando-se na pequena Caldas da Rainha? Esta contrariedade era suficiente para matar a sua necessidade de intervenção na sociedade, quando esta, segundo as suas páginas, estava cada vez mais necessitada de uma ruptura politica? Chegaram três meses de luto, de meditação, para perceber que a sátira, a sociedade portuguesa necessitava de si. Lança então, com seu filho o novo projecto jornalístico com a intenção de por os “Pontos nos ii”. Morreu o António, mas ficou a Maria, que já farta do luto rigoroso quer “rir, rir sem descanso, de boca escancarada até mostrar o cavername, de todos os mil grotescos que por ai fervilham como formigas n’um açucareiro”.
Como sempre, Raphael dará apoio a um ou outro jornal, assim como colaborou com várias edições de livros, como nos periódicos “Ilustração Universal”, e “Beja.créche”; ou no “Álbum do Actor Santos” de José Carlos dos Santos; “A Revolta” de Magalhães Lima, “Do Outro Lado: Cançoneta” de Alfredo Morais Pinto, “Memórias de um Sapatinho” de Thomaz de Mello; “Tam-tans” de Argus (António de Menezes), “A Velhice da Madre Eterna” de Marraschino & C.ª (Xavier de Carvalho); “A Lusa Bambochata” de J.C. Mila
1886 – Os “Pontos nos ii” prossegue o seu percurso, como continuador do “António Maria”, Mudou o título, não a filosofia, nem o interesse do publico por se manter informado, com bom humor. Como prova deste interesse, deste sucesso, encontramos no teatro de Revista, pela pena de Baptista Machado mais uma peça teatral com o título de “Pontos nos ii”.
A imprensa continuava a estar na frente dos interesses de Bordallo, contudo nova paixão ia crescendo. Na sua fábrica das Caldas, Raphael ia desenvolvendo os seus projectos; em Fevereiro já tem material suficiente para expor em Lisboa, nas salas do Comércio de Portugal”, seguida de abertura de uma loja na Avenida da Liberdade.
O sucesso foi grande, dedicando-lhe Ramalho Ortigão um estudo. Contudo para o ceramista não chegam as palmas, os elogios, necessita de encomendas para sobreviver. São peças bonitas, mas não acessíveis a qualquer bolsa. Os principais clientes serão as pessoas do regime, portanto monárquicos. Contudo Raphael não só mostra publicamente as suas simpatias pelo partido republicano, como acaba de recusar a Ordem de São Tiago concedida pelo R. D. Luís.
A Casa Real tem também uma postura de objectividade neste caso, e a rainha D. Maria Pia não tem problemas em ir visitar a exposição em Lisboa, assim como durante as suas férias em Agosto ir visitar a Fábrica das Caldas. Ela certamente não se esquece do apoio de solidariedade de Raphael a iniciativas humanitárias por ela lideradas. Em Setembro será a vez do Ministro Emílio Navarro ir visitar a Fábrica e prometer apoios, só que neste caso havia uma relação de amizade entre o cidadão e o artista. De toda esta movimentação, deste sucesso Bordallo teve duas grandes encomendas, ou seja esculturas destinadas à capela de Buçaco (uma “Via Sacra” que infelizmente acabaria por ficar suspensa já com algumas das esculturas realizadas), e painéis decorativos para o palacete Valenças.
Realiza capa e ilustrações para o livro “Aos Mutilados de Sacavém”, assim como realiza para a Fábrica de Tabacos Vasco da Gama uma série de desenhos para mortalhas.
1887 – Dia para dia a cerâmica vai tomando conta da paixão artística de Raphael, dando cada vez mais espaço nas páginas dos “Pontos nos ii” ao seu filho Manuel Gustavo. A política vai perdendo interesse, e quando morre o António Maria Fontes Pereira de Melo (3/2), o “homem dos sete instrumentos”, a “velha raposa matreira” ele suspende as ironias, os sarcasmos para afirmar a admiração pelo homem, pelo político. Escreveria então, no jornal onde muitas vezes o atacou: “… com a serenidade de quem nunca receou agredir o vivo, malquistando-se com ele, como se não peja agora de louvar o morto, que não pode agradecer-lh’o; é com essa isenção, com essa serenidade, com essa convicção e com esse desassombro, que lastimamos hoje aqui, sinceramente, com essa convicção e com esse desassombro, que lastimamos hoje aqui, sinceramente, devotamente, a perda enorme que o paíz acaba de soffrer na infausta morte de Fontes Pereira de Mello!”. Claro que houve muitas mentes tacanhas, da parte republicana e monárquica que não compreenderam este gesto, mas Raphael manteve sempre esta integridade de homem de imprensa, de comentador satírico.
Contudo Raphael manteve sempre um largo grupo de amigos, seja nas tertúlias artísticas, como nas tertúlias de boémia. Estas já não as frequentava como nos velhos tempos, mas pertencia a várias confrarias de convívio social, astronómico… Uma das mais famosas foi a criada por Francisco de Almeida Grandela, “Os Makavenkos”, os quais tinham a obrigação de ser “pantagruélicos, sentimentais, ecléticos, estóicos e polígamos”. Sobre a poligamia contam-se alguns boatos, nomeadamente de uma relação com a actriz Maria Visconti; de uma menina que seria sua filha natural, mas esses são elementos demasiado pessoais para fomentarmos boatos, sem certezas absolutas.
Apesar de ter cada vez mais o tempo ocupado nas Caldas da Rainha, ainda tem tempo para colaborar em “A Ilustração”, assim como para fazer as capas para a série de livros “Contos Modernos”, assim como para “No Tejo, publicação de caridade” e “Meios de Transporte” de Alfredo de Morais Pinto.
1888 – As invejas, a incompreensão sobre os actos dos homens não se restringe aos políticos, e os humoristas, como homens normais, e por vezes banais como muitos outros também caiem nas baixezas do insulto. Aconteceu com o caricaturista Almeida e Silva. Como já anteriormente referido, o Ministro da Industria Emílio Navarro simpatizava com o trabalho industrial de Raphael, e tal como apoiou outros industriais, também deu a Fábrica das Caldas da Rainha
Este ano verificou-se um escândalo, conhecido pela Questão Hersant, da qual Emílio Navarro acabou por ser o bode expiatório. Raphael, como seu amigo, e por achar que as culpas não eram dele, defendeu-o no jornal. Os opositores do regime, e seus inimigos que não gostavam da sua opção de criticar gregos e troianos, aproveitaram isto para o atacar. O “Charivari” do Porto não tinham muita simpatia por Bordallo, ou mais concretamente Almeida e Silva, por ser acusado de plagiar os desenhos de Raphael, o que era verdade, aproveitando então esta questão para o atacar vilmente, tendo havido uma troca de “insultos”… Tudo acabaria com o fair play de Raphael: “Pouco depois da refrega – relataria mais tarde Francisco Valença - veio Almeida e Silva a Lisboa e por qualquer motivo, precisou de ir à tipografia do Lallemant. Quem havia de lá estar também? O Rafael. Dão de cara um com o outro. Almeida e Silva estaca e pensa: Bonito! É agora! O Bordalo vai increpar-me, e daqui a pouco estamos ambos engalfinhados. Mas qual história: Rafael dirige-se-lhe, mas apenas disse: «-Ah! Silva! Você moeu-me! Você moeu-me bem!». E nada mais acrescentou. Um tanto confundido, Almeida e Silva – muito mais novo que o antagonista, respondeu-lhe com palavras cortezes e, regressado ao Porto, publicou a página de homenagem a Bordallo intitulada “Abaixo o ídolo! Viva o artista!”.
De novo o seu espírito solidário leva-o a colaborar no “Lisboa-Porto” a favor das vítimas do Teatro Baquet, que ardeu, assim como colaborará com ilustrações para os livros “Álbum de Costumes Portugueses”, e “Viagens” de Coelho de Carvalho.
No campo da cerâmica, volta a expor, agora no Ateneu Comercial do Porto, assim como na Exposição Industrial Portuguesa onde recebe uma Medalha de Ouro. Para enriquecimento técnico, partirá com seu irmão e sócio, Feliciano Bordallo Pinheiro, numa digressão por vários países.
1889 – Os “Pontos nos ii” estão cada vez mais entregues nas mãos de Manuel Gustavo. Mantendo contudo sempre a qualidade dos jornais de Bordallo Pinheiro, o qual a partir de Março é enriquecido com a colaboração literária de Fialho de Almeida, que assinará Irkan.
A cerâmica terá de novo um destaque especial este ano, ao ser convidado para decorar o Pavilhão de Portugal na Exposição Universal de Paris. Usou só elementos nacionais nos motivos cerâmicos que levou de Portugal. Este trabalho foi galardoado com uma medalha de ouro em nome da Fábrica das Caldas, uma medalha de prata e nível pessoal, para além de ter sido galardoado com o Grau de Cavaleiro da Legião de Honra.
Ainda em Paris os humoristas franceses não quiseram deixar passar despercebida a sua estadia, homenageando-o com uma soirée no “Chat Noir” (9 de Agosto), tendo como organizador o proprietário (Rodolphe Salis) do jornal humorístico, com o mesmo nome do cabaret.
Para registo deste evento, foi editada uma brochura sobre “Exposição de Paris. O pavilhão português do Quai d’Orsay”. Aqui Raphael descarrega o seu azedume em ironia por o seu trabalho ser tão elogiado no estrangeiro, e ter dificuldades de sobrevivência em Portugal. Eis suas palavras em ironia: “Nós queremos que as nossas industrias percam os seus restos do carácter nacional que ainda possuem, e passem a copiar cegamente os tipos das industrias franceses, inglesas e alemãs. Nós queremos tudo, nas nossas cidades, nas nossas casas, nas nossas mesas, nos nossos teatros, na nossa arte, na nossa literatura, e nas nossas industrias, tudo quanto não seja português, e quanto cheire a estrangeirismo… O que nós temos horror de ser é portugueses!”.
Neste âmbito de procura de decorações nacionalistas desenvolve alguns projectos de “carácter nacional” como faqueiro, baixela… de influência manuelina.
Bordallo Pinheiro será sempre um nacionalista, e se desenhou o Zé Povinho de uma forma grotesca, de uma forma aviltante foi com o sonho de ele um dia despertar para a realidade e levantar-se da modorra, revoltar-se contra a opressão de muitos séculos de inquisição religiosa e monárquica. Os seus jornais vão cada vez mais lutar por um sentimento nacionalista, tanto mais que, com os problemas nas colónias, os nossos governos iam cedendo cada vez mais aos interesses internacionais.
1890 – O ponto de ruptura verificou-se com a carta de Ultimatum que o governo inglês enviou ao governo Português para retirar as tropas portugueses da zona do Chire, zona que a Grã Bretanha resolveu assumir na sua posse. Destruindo o sonho português do Mapa cor-de-rosa, com o qual Portugal assumia como suas as terras entre Angola e Moçambique.
Raphael já há muito que usava a figura caricatural de John Bull como símbolo da prepotente Inglaterra, o qual usava o Zé como seu bombo da festa, o aviltava perante as outras nações. Seria o seu cunhado Henrique Lopes de Mendonça que faria o poema para a canção de revolta denominada “A Portuguesa”…
Os “Pontos nos ii” serão um verdadeiro baluarte de nacionalismo, de revolta, o que incomodará os senhores do poder, num momento de grande susceptibilidades, que não desejavam ver suas cobardias expostas, razão pela qual reactivam a opressão, limitam a Liberdade de expressão e querelarão Raphael.
Uma das características dos jornais dos Bordallos é que, excepção feita ás colaborações literárias, as suas páginas eram mesmo de exclusiva participação de pai e filho. Já tinha havido uma ou outra colaboração do mano Columbano, numa altura em que Raphael não estava no país e era necessário manter o jornal na rua. É verdade que houve a publicação de um ou outro desenho importado, reproduções de Caran d’Ache e William Busch (artistas que influenciaram o início de carreira de Manuel Gustavo, o qual os imitou por diversas vezes), de J. Blass e outros artistas do “Fliegenden Blatter”, mas neste ano de 1890 abrirão uma nova excepção e publicam dois desenhos de Julião Machado. Foram desenhos menores de um artista em quem Raphael depositou esperança, e com razões já que se transformará num grande artista, especialmente em terras brasileiras.
Para equilíbrio das contas, ou para responder a pedidos de amigos continua a colaborar em “A Ilustração”, ou “Anátema” (número único), e a fazer capas ou ilustrações para “A Marcha do Ódio” de Guerra Junqueiro, “ABC do Povo” de Trindade Coelho e capa a cartaz de “A Ruína da Inglaterra” de Camilo Debans.
Jean Grande-Carteret publica em Paris o livro “Bismarck en Caricatures” onde inclui desenho de Raphael Bordallo Pinheiro.
1891 – Por casualidade, quando os “Pontos nos ii” chegam ao número 294, ou seja o mesmo do “António Maria” quando este foi encerrado, termina também a sua publicação (5 de Fevereiro). Desta vez aconteceu, não por decisão pessoal, mas por imposição do Governo Civil incomodado com o apoio de Raphael à Revolta de 31 de Janeiro no Porto. Curiosamente os desenhos e artigos nem são muito corrosivos em relação à monarquia ou ao governo, antes críticos em relação ao partido Republicano por avançar com iniciativas destas, antecipando-se no tempo, quando o país ainda não está preparado. O governo não gostou destas sugestões e, de uma forma radical, proibiu a sua edição.
Apesar de Raphael estar cada vez mais interessado na sobrevivência da Fábrica das Caldas da Rainha, o momento político exigia-lhe manter-se no activo jornalístico. Foi uma fase difícil, com decisões difíceis. Por um lado a Fábrica estava com maiores problemas de tesouraria. Tiveram de encerrar a linha de produção de materiais de construção, a qual em principio seria a bóia de sustentação da parte de cerâmica criativa, e esta última não vendia tanto como seria conveniente. Por outro os jornais se não davam grandes lucros, também não davam prejuízos, ou seja equilibravam um pouco as contas.
Criar um novo jornal poderia afastar algum público menos informado, e podia incentivar a censura, por isso foi recuperar o velho título, e relançou, passado precisamente um mês, a segunda série de “O António Maria” (5 de Março). Procuram manter a mesmo filosofia satírica, ou seja serem a “synthese do bom senso nacional”, o equilíbrio entre a pacatez do António e a virulência da Maria, já que “António é o filósofo da escola de Sancho Pança, e Maria a personificação da fúria sertaneja alfacinha. António procurava ser o bom senso e a graça indígena, sem grandes admirações pelos homens, mas também sem grandes ódios por esses medonhos animaizinhos de pés, sobrecasaca, luvas pretas e boquilha, que formigam e fervilham das onze às três sob as arcadas do Terreiro do Paço. Maria era a pontinha de fel, era a dynamite, era o venenosinho do capote e lenço, introduzindo-se todos os dias na santa beatitude do atelier…”. Na realidade aqui também está sintetizado o interior de Raphael, onde a irreverência do artista deseja explodir como a Maria, enquanto que o velho mestre já só quer a pacatez do António. No meio encontramos Manuel Gustavo a dar continuidade ao projecto, a mantê-lo sempre à tona. Nesta nova série o colaborador literário será Eugénio de Castro sob o pseudónimo de Eu.
O retrato de Raphael realizado por seu irmão Columbano data deste ano (já o tinha retratado também no Grupo do Leão d’Ouro). A família será alvo de vários dos retratos do mestre da pintura, mas a figura de Raphael não ficará apenas registada por seu irmão já que ele teve sempre o gosto de se auto-retratar constantemente nos jornais, integrando-o na sociedade onde vivia, sendo um dos muitos diletantes de S. Carlos, e doutros teatros, sendo figura das tertúlias e boémias. Ele e seu filho crescerão e envelhecerão nas páginas dos seus jornais, assim como os gatos de sua casa, verdadeiros símbolos da terra alfacinha, ao ponto de um dia, por brincadeira ter sugerido criar uma hora de comida no Rossio, onde os turistas pudessem ver os milhares de gatos da capital, como vêem os pombos da praça de São Marcos em Veneza.
1892 – A crise na fábrica de Cerâmica afligia cada vez mais Raphael, o que o incentivava a fazer cada vez mais peças de extraordinária irreverência técnica, como a Talha Manuelina, a Jarra Beethoven…. Em Madrid mostra trabalhos seus na Exposição Colombiana onde mais uma fez foi galardoado com uma Medalha de Ouro. A peça Talha Manuelina acabaria por ser adquirida pelo Rei D. Carlos.
Os “Pontos nos ii” prossegue o seu caminho de comentar o quotidiano, sempre pressionado pelo poder, cada vez mais sensível ás criticas, já que, de eleição em eleição, o Partido Republicano ia conquistando cada vez mais simpatizantes.
Os amigos de Raphael conhecedores do desalento, do desânimo perante as dificuldades de sobreviver artisticamente neste país retrógrado, de tempos a tempos, procuram incentivá-lo em mudar de país. A nova aventura seria de novo em Londres. A ideia utópica partiu de Joaquim Nabuco o qual sonhava em criar um jornal ao serviço do Liberalismo internacional, radicado em Londres, onde a linguagem internacional da sátira servia de comunicação internacional. Claro que era um projecto que pecava por megalómano e sem pés para andar, e por muito louco que fosse Raphael, este nunca aceitaria entrar em tal loucura.
Para além do “António Maria”, Raphael criou um número especial para o “Comércio do Porto” denominado “Comércio do Porto Ilustrado”, onde desenvolveu a arte da BD com várias histórias humorísticas, uma colaboração anual que manteve até 1904. Realizou também uma capa para a “Charitas. Escola Politécnica” e capa e ilustrações para um “Programa do Torneio no Hippodromo de Belém”, recinto que serviu muitas vezes como cenário para alegorias politicas.
A versatilidade de assuntos comentados nos jornais dos Bordallo é imensa, desde os desportos de cavalos, passando pelas touradas, pela ginástica (Raphael tinha uma preocupação na colocação em curriculum escolar da educação física), destacando-se a esgrima onde Manuel Gustavo era um esgrimista de primeira. Os saraus, com seus bailes, festas, banquetes de homenagem estão sempre comentados nas suas páginas. Mesmo a sociedade das Caldas da Rainha, segunda casa de Raphael, passará a merecer destaque nas páginas de seus jornais, com as festas de veraneio da Foz do Arelho que frequentava.
1893 – Raphael sente-se cada vez mais apertado na sobrevivência do seu jornal, e da Fábrica de Cerâmica ao ponto de seu filho começar a pensar em criar outro trabalho paralelo para lhe dar um ordenado mais seguro ao final de cada mês. Manuel Gustavo, que era a sombra de seu pai, o seu ombro a sua bengala, nunca deixando de o venerar, nunca querendo ser destacado na sua arte não deixou de fazer seu percurso de irreverência, integrando as tertúlias de jovens artistas, procurando novos caminhos estéticos, novas experiências. Essas pesquisas, essas experiências acabaram por serem incentivo para o “velho” Bordallo também experimentar essas extravagâncias gráficas, fazendo evoluir o jornal, fazendo modernizar a paginação. Se Raphael tem sempre uma voz, tem uma autoridade na edição, não nos podemos esquecer que, na maioria dos números, ele é fechado, na quase totalidade, por Manuel Gustavo, já que Raphael passava a maior parte do tempo nas Caldas da Rainha. Havia sim uma grande cumplicidade, um constante diálogo entre ambos como se fossem um artista único.
1894 – Eugénio de Castro deixa de colaborar no “António Maria”, passando essa colaboração a E. Fernandes, o qual assina como Esculápio. Outro colaborador que aparece este ano é Celso Hermínio, só que este era um colaborador gráfico, ou seja uma nova excepção nestas páginas dominadas no desenho pelos Bordallo. Mais uma vez foi uma colaboração breve, mas neste caso não foi por o artista ter avançado para outros projectos, mas por incompatibilidades de irreverência.
Companheiro de boémias de Manuel Gustavo, companheiro das tertúlias dos “Nefelibatos”, de “Os Novos” tinha acabado de desistir de uma carreira militar para se entregar à irreverência da sátira, para lutar contra a monarquia pelo lápis. Comungava os mesmos ideais dos Bordallo, só que tinha demasiado sangue na guelra e tornava-se demasiado incomodativo para a paz que o “António Maria” desejava. Raphael já estava demasiado cansado de lutas, por essa razão Celso foi desconvidado de colaborar. Seguiria então um caminho de ruptura contra a ironia vigente, e com Leal da Câmara assumiriam uma sátira panfletária e revolucionária, num traço de expressionismo vanguardista. Porém, era um artista que Raphael muito admirava, e mais tarde quando a sua irreverência amainou, seria convidado de novo a colaborar nos projectos dos Bordallo.
Na política o país vai de mal a pior, ao ponto de ter havido dissolução do Parlamento, com implantação de uma ditadura disfarçada em eleições manobradas. O “Solar dos Barrigas” está bem acomodado numa sesta sem autorização para sobressaltos, impondo um tal Juiz Veiga para vigiar a imprensa e outros pensamentos mais ousados, e apertar-lhes as liberdades de expressão. Raphael e Manuel Gustavo nunca calarão o seu desagrado pelo aperto destas Leis da Rolha, e manifestar-se-ão sempre contra estes abusos de poder. Só que o farão de uma forma subtil, com ironia, mas procurando evitar as apreensões, as querelas judiciais.
Raphael criará este ano, ilustrações para o álbum comemorativo do Centenário do Infante D. Henrique – “In Memoriam 1394-1894 Talent de Bien Faire”, assim como para o “Livro das Crianças” de Alfredo Morais Pinto (Pantarantula).
Na imprensa realiza mais um “O Comércio do Porto Ilustrado” assim como colabora em “A Mónaco” (número único). Este jornal está ligado ao lançamento de “A Mónaco” no Rossio, para a qual Raphael realiza painéis decorativos de azulejo.
Neste campo da cerâmica Raphael verá a sua obra ser mais uma vez galardoada extra-fronteiras, com uma Medalha de Ouro na Exposição Universal de Antuérpia, quando em Portugal tem dificuldades em escoar as suas criações.
1895 – Na Exposição Industrial Portuguesa no Porto, Raphael receberá mais uma Medalha de Ouro pelo seu trabalho cerâmico. Estes prémios que vai recebendo, essencialmente no estrangeiro, não se devem a questões de decorativismo pitoresco, por virem de um país exótico da Europa, mas sim pelas ousadias estéticas e técnicas do genial artista. Insatisfeito com a monotonia, Raphael procura a irreverência que, como sempre, é criticada não só pelos académicos, assim como por vezes pelos seus amigos que deveriam estar mais receptivos a ousadias do artista.
O cansaço é muito, desiludido, triste com o país, Raphael vai abandonando cada vez mais o desenho, fechando-se nas Caldas da Rainha procurando dar voz à sua irreverência em ousadias de cerâmica. O “António Maria” sofre com este desânimo, não só de Raphael, como do próprio Manuel Gustavo, e acaba por nem sempre respeitar a periodicidade que os jornais dos Bordallo sempre tiveram.
De todos os modos o panorama da imprensa em Portugal já não é o mesmo de quando Raphael se iniciou nestas lides. Na altura os jornais noticiosos generalistas eram poucos, e o que dominava eram jornais ou políticos, ou de entretenimento, ou humorísticos. Cada um tinha a sua especialidade. Com o aparecimento do “Comércio do Porto”, do “Diário de Notícias”, do “Século”… essa estrutura foi-se alterando no final do século, ou seja, por estes anos já vai incluindo nas suas páginas alguns desenhos de humor, até integrar regularmente caricaturas na sua paginação. Isto ditará aos poucos a morte de muitos jornais satíricos, já que num jornal o leitor acabaria por encontrar tudo o que desejava, desde as noticias mais sérias, ao humor e aos comentários sociais. Raphael colaborará no “Comércio do Porto”, no “Diário de Notícias”, no “Século”
Continuando a colaborar com o editor Mattos Moreira realiza este ano capa e ilustrações para o livro “A Perdição da Mulher” de D. Perez Esrich.
1896 – Raphael mantêm a edição de números especiais do “Comércio do Porto Ilustrado” assim como colabora no “Diário de Notícias”, ao mesmo tempo que descolabora cada vez mais no “António Maria”. O próprio Manuel Gustavo também já não aposta muito no jornal e inicia a sua carreira como professor, primeiro como professor de desenho na Escola Rodrigues Sampaio, e mais tarde na Escola Industrial Fonseca Denevides,
As Caldas da Rainha são cada vez mais o seu universo. Depois da passagem de seus principais bonecos caricaturais para a cerâmica, como o John Bull escarrador, o Zé Povinho do manguito, a Maria Paciência e outras figuras basculantes, o moringue Antonio Maria… dedicava-se cada vez mais a peças sérias como o Perfumador Árabe, a Jarra Beethoven…
1897 – Dará a sua colaboração ao “Século” de Magalhães Lima, um republicano a quem Raphael mostrou sempre uma grande admiração e o apoiou. Raphael, como já vimos era um republicano de coração, contudo manteve sempre a mente aberta para ver mais longe que os fundamentalistas da politica. Foi republicano, como foi um lutador pelo operariado, pelos pobres… A politica só lhe interessava como força para mudar o que estava mal na sociedade e não como poder, já que ele sempre desconfiou dos barrigas que só se querem governar. Por essa razão foi combatido pelos monárquicos e pelos republicanos que não compreenderam a profundidade de seu pensamento crítico.
Apesar de já não frequentar, como gostaria, com a mesma assiduidade os teatros declamados, as óperas em S. Carlos… mantinha em seu convívio as grandes figuras do Teatro, e sempre que a ele se dirigiam eram incapazes de não apoiar um projecto. É dessa forma que neste ano encontramos em cena figurinos desenhados pelo mestre na peça “O Reino da Bolha” do dramaturgo Eduardo Schwalbach.
1898 – De novo encontraremos colaboração de Raphael numa peça de Eduardo Schwalbach, figurinos para a peça “Formigas e Formigueiros”. Nas muitas visitas que o dramaturgo fez a Bordallo, ás Caldas para acertar pormenores teatrais, ele recorda em suas memórias (“Á Lareira do passado” Lisboa 1944), o estado de espírito do Mestre perante as criticas de incompreensão pelo seu trabalho. Desde 1895 que trabalhava num dos projectos mais irreverentes de cerâmica, a Jarra Beethoven, não só pelo seu tamanho, como pela complexidade de elementos. Deu muito de si nela, e não aceitava que amigos seus, como Fialho de Almeida, conhecedores da sua luta pela originalidade, fossem tão críticos perante a peça. Outros poderiam sê-lo, não os amigos, tanto mais que o publico aclamará de viva voz a beleza da peça. Eis como Schwalbach nos descreve seu estado de espírito: “Uma tarde entro no seu gabinete e vejo-o sentado à mesa de trabalho, acabrunhado, os olhos murchos, os braços caídos. Em manifesto abatimento de corpo e espírito. Porquê? Por uma crítica desfavorável do Fialho à “Jarra Beethoven” que o insigne artista concebera com tão grande e propositada rebeldia. Fialho apontara-lhe formas irregulares, exageradas, inestéticas e não me lembro que mais imperfeições em desabono da obra. Raphael, amolecido, cabeça pendida e já de braços frouxos sobre as coxas desabafou «parabéns a você… não lhe parece que quando se chega à minha idade, quando se tem dado provas de não ser um ignorante, quando se conquista um nome à custa de muito trabalho e de algum fósforo cá dentro, não pode haver duvida de que o artista conhece as formas clássicas, consagradas e que se lhes foge para criar qualquer coisa arrojada, muito sua, é porque o moveram razões de especial engenho. Não comete um erro, liberta-se de peias e voa à sua vontade. Na minha Jarra a fantasia abandonou as regras estabelecidas para fazer ressaltar alguns grupos, uma figura, motivos ornamentais. De propósito o fiz, nunca por ignorância., valha-nos Deus! Atacarem por êste motivo é triste e tira a vontade de trabalhar.».
A Jarra será exposta no jardim de Inverno do Teatro D. Amélia, louvada por todos os visitantes, e onde os amigos o entusiasmaram a ir mostrar ao Brasil, e lá vende-la se não havia por cá comprador.
A fábrica estava cada vez mais com problemas económicos, e a ideia de venda em terras do Brasil parecia cada vez mais cativante.
Após as querelas últimas, após o cansaço de uma divisão entre a cerâmica e o jornal da parte de Raphael, e entre o ensino e o jornal por parte de Manuel Gustavo, os Bordallo a 7 de Julho dão por finda a aventura do “António Maria”.
Apesar do desânimo, terá ainda força para colaborar no jornal “O Proletário” e no “Diário de Notícias Ilustrado”. Fará também uma capa para o livro “A Carteira do Artista” de Sousa bastos e ilustrações para “Luigi Rasi, la Elleanor Duse”.
1899 – Sem preocupações a nível de jornalismo, Raphael dedica-se inteiramente à cerâmica. Se por um lado está aliviado por não ter aquela obrigação semanal de desenhar, ou de esquartejar a vida do país em sátiras e ironias que lhe amargavam mais a vida, não deixava de ter grandes preocupações em como salvar a Fábrica das Caldas da falência. Por essa razão parte para o Brasil para expor as suas cerâmicas, tendo como figura principal da exposição-venda, a Jarra Beethoven, Se foi difícil a sua manufacturação, pelo seu tamanho e delicadeza, não menos difícil foi o seu transporte, mas lá chegou sã e salva. Foi recebido como um grande artista que era, e as exposições no Rio de Janeiro e em São Paulo foram um grande sucesso, contudo não conseguiu comprador para a Jarra Beethoven. Como era difícil o seu transporte de regresso, fez um sorteio de rifas, conseguindo mais alguns proventos, mas não conseguindo desembaraçar-se da Jarra, porque a rifa premiada estava ainda em seu poder, resolve por isso oferece-la ao Presidente da República Campos Sales. Assim, ficou em terras brasileiras esta obra que tanta polémica deu.
De regresso (desta vez sem ter de passar pelo Lazareto), volta a dedicar-se em força à criação de peças. A principal obra deste ano foi a decoração do Palácio do Marquês da Foz.
1900 – Quando tudo fazia crer que Raphael estava definitivamente reformado do jornalismo, a sua irreverência, a sua insatisfação pelo estado do país não o deixou recusar um novo desafio lançado pelo amigo João Chagas, que será o principal colaborador literário (Rimanso): “Pelo Natal de 99, no café Martinho, - recorda Cunha Dias - João Chagas, uma noite falou-me interessado num jonal de crítica, um semanário. Marcou-se encontro para o dia seguinte. Almoçamos juntos e, depois do almoço ficou assente convidar o Rafael Bordalo Pinheiro. E lá fomos os dois ao Largo da Albegoaria, a casa do Rafael Bordalo Pinheiro, que abraçou a ideia com entusiasmo. E assim nasceu “A Paródia”, que começou a sua publicação em meados de Janeiro de 1900.”
Este projecto, ao qual Raphael se entregou com entusiasmo, apesar da consciência de já não ser aquele jovem fogoso de 1879, antes um velho cansado e doente como ele se caricaturou magistralmente no desenho “Vinte Annos depois”, procurando ainda o lume da irreverência juvenil. Mais uma vez arrastará atrás de si Manuel Gustavo para lhe segurar as pontas, e aceitando à partida outras colaborações como que para dividir o trabalho, e dar novo alento à caricatura portuguesa, dar continuidade ao seu trabalho. Recuperarão a colaboração de Celso Hermínio, assim como darão espaço para Jorge Cid, Vale e Sousa, Alonso, Manuel Monterroso…
Este jornal não queria ser apenas uma continuação dos projectos anteriores, tanto mais que a sociedade era outra como ele próprio comenta no editorial: “Os portuguezes são essencialmente conservadores. /…/ não é menos certo que se nós mudamos com frequência de fato, nós recusamos obstinadamente a mudar de ideias. /…/ Se somos inquestionavelmente um paiz de janotas, estamos longe de ser um paíz de reformadores. /…/ O António Maria, meus senhores, foi a “Regeneração”. /…/ Ficarmos dentro do “António Maria” seria ficar dentro de um museu, na situação de um velho guarda mostrando à curiosidade do seu tempo os despojos de uma épocha passada. A Paródia é outra coisa, como o tempo é outro. O António Maria foi um homem. Quando muito, foi uma família. A Paródia – dizemo-lo sem receio de ser immodestos – somos nós todos. A Paródia é a caricatura ao serviço da tristeza pública. É a Dança da Bica no cemitério dos Prazeres”.
Lançado a 17 de Janeiro, o sucesso foi imediato, e no final do ano há já em cena uma revista escrita por Baptista Dinis com o nome de “A Paródia” para a qual Raphael desenhou os figurinos.
Fará as decorações para o carro funerário de Eça de Queiroz, escritor que muita admirava e que, desta forma, quis homenagear.
Se “A Paródia” poderia ser apresentada como o principal acontecimento deste ano, não podemos deixar de destacar a sua presença, de novo na Exposição Universal de Paris. Aqui não só enchia o seu ego com os elogios ás suas obras, como bebiam, ele e seu filho, as novas estéticas gráficas, logo sentidas nas páginas de “A Paródia”.
1901 – “Rafael Bordalo e Chagas – recordará mais tarde Cunha Dias - aventavam ideias para a primeira página do primeiro número, que no parecer de João Chagas deveria ser de comentário político.”
“Desabafei: Política!... a grande porca.”
“Rafael Bordalo exclamou radiante: - Ai está a primeira página: Política, a grande porca…”
Raphael estava cansado, doente e quando inicia este projecto, apesar da aparente exaltação dos primeiros números, começa logo a desleixar-se com as colaborações e a entregar de novo a principal responsabilidade do jornal ao seu filho.
Sabia que ainda tinha muito para dizer á sociedade, mas também tinha consciência que o seu legado era enorme e que não podia abandonar a cena sem primeiro deixar o seu testamento satírico. Foram trinta anos a comentar o quotidiano, a satirizar “o Fontes e a sua Água Circassiana, o Àvila e o seu cache-nez, o Sampaio e os seus pamphletos, o arrobas e os seus editaes, o Passeio Público e o lyrismo do sr. Florencio Fereira, a srª Emilia das Neves, a «Judia» e os Recreios Whitoyne…” e de tanto observar a vida chegou à conclusão que mudam as figuras, mantém-se a mesma porca da politica, a mesma galinha choca de economia, o mesmo cão faminto das finanças, o mesmo papagaio retórico parlamentar, a mesma toupeira da reacção… Raphael, em parceria mais uma vez com o seu filho, sintetizará a vida em nove zoomorfismos satíricos. Este o seu testamento humorístico, uma meditação de profunda filosofia irónica que se não foi tão aproveitada como a sua genial criação do Zé Povinho, não deixa de ser tão importante no âmbito geral da sua obra.
A paixão teatral manteve-se ao longo de toda a vida, primeiro como actor, depois como frequentador cronista, para acabar seus dias de novo integrado no espectáculo ao assinar uma série de colaborações como figurinista. Neste ano foi para a peça “Talvez te Escreva” de Sousa Bastos, um dos amigos que por diversas vezes lhe pediu ilustrações para os seus livros sobre Teatro.
1902 - Nas páginas de “A Paródia” todas as vitórias republicanas continuam a ser louvadas. O capital será satirizado, e louvadas as lutas dos trabalhadores pelas oito horas, pela dignificação do seu trabalho com condições dignas de qualquer homem livre em comemorações do 1º de Maio. A exuberância da nobreza e dos burgueses bem instalados será denunciada em contraste da miséria, perante a indiferença do Zé… Os Bordallo, apesar de usarem uma linguagem suave de denuncia, continuam incomodativos, pela profundidade filosófica dos seus comentários. O Juiz Veiga e os seus esbirros a mando dos governos cerca cada vez mais a imprensa ao ponto de ter havido a apreensão do número 152 da Paródia, apenas porque um desenho assinado por Manuel Gustavo mostrava Hintze Ribeiro a dar graxa ás botas do Rei. Numa atitude inédita, o Juiz do Tribunal desautoriza a atitude do Juiz Veiga e exige que o jornal seja indemnizado em 8$000 reis pela execução abusiva de opressão.
Como caricaturara Bordallo em página irónica sobre a Apprehensão, para o poder tudo era suspeito, ao ponto de subverter uma simples página em branco: “ Esta falta de alusão não será uma alusão?”.
Claro que foi uma vitória para a imprensa e pessoal de Raphael, só que estas pequenas coisas incomodam, moem um artista que tinha dificuldades de sobrevivência, um artista que sabia que tinha dado muito ao país e recebido pouco. Ele viveu o período em que o artista deixou de viver do mecenato, para viver a liberdade de criar o que bem desejava, de criar em total livre pensamento. Seu pai sentiu-se muitas vezes constrangido com as sátiras do filho, porque atacavam os seus benfeitores, os mecenas que o apoiavam como artista. Raphael, como os artistas da sua geração e futuras gerações não queriam viver dessa dependência, por isso não se incomodava de satirizar á esquerda e á direita, contudo acabou por ter de viver também de certos mecenatos, de certos apoios. Sem a ajuda da casa real e de uma certa nobreza, a Fábrica das Caldas teria morrido logo à nascença; depois havia o mecenato mais anónimo, a dos admiradores como a do senhorio que ao longo de vinte e nove anos de ocupação da casa no Largo da Abegoaria, nunca lhe cobrou a renda, sentindo-se orgulhoso por dar guarida a tão insigne mestre; como o caso de muitas casas de tertúlia e boémia gastronómica como o Tavares, o Braganza… que recusavam qualquer pagamento por parte do artista, orgulhosos por ele frequentar a sua casa… Raphael, apesar de se sentir desmotivado, de por vezes se queixar de não sentir o apoio á sua arte, tinha uma série de amigos que sempre o apoiaram, sempre estiveram na retaguarda a vigiar que nunca lhe faltasse o essencial. Certamente que o maior mecenas, o maior apoio de admirador, de amizade, de carinho foi sem duvida do seu filho Manuel Gustavo.
1903 - “No banquete de sábado, o velho Portugal deu as mãos ao Portugal novo. O Portugal conservador tocou no copo do Portugal revolucionário. Velhos inimigos pactuaram. A Sociedade fez tréguas. E foi este um espectáculo que deve ter profundamente comovido o velho lutador que, tendo lançado entre os homens tantas sementes de discórdia, acabou afinal por os pôr de acordo” (in “A Paródia” de 11/6/1903)
Afinal, apesar das queixas, dos amuos pela falta de visitas ou cartas dos amigos, alguém se lembrava dele. Foi o caso da Associação de Jornalistas de Lisboa que lhe quis prestar uma homenagem nacional, com um banquete no Teatro D. Maria II (6/6/1903), aberto a todos os que lhe quisessem prestar o preito de sua admiração. Só em brindes foram programados 11, e compareceram 200 personalidades desde o campo político ao artístico, como que numa retrospectiva das figuras que ao longo dos anos ele caricaturou no seu álbum de glórias jornalísticas. Desse jantar ficaram como homenagem desenhos de Joaquim Santos Silva (Alonso), Celso Herménio, Manuel Monterroro (que veio de propósito do Porto), Jorge Cid, Jorge Colaço, Arnaldo Ressano Garcia e Francisco Teixeira. Muito se queixou contra esta iniciativa. Muito resmungou pelo cansaço que lhe deu este preito, contudo o seu ego de artista pôde-se encher de orgulho, porque conheceu na pele a admiração da sociedade que a sua genialidade tão bem retratou, que tão bem defendeu e educou para ideias novas, para a luta contra a passividade, para a luta pela irreverência do pensamento.
1904 - Mas ele está doente, e nem as várias visitas dos médicos seus amigos, como os caricaturistas Jorge Cid e Manuel Monterroso o tranquilizam. Viaja sempre que pode para as termas em tratamentos de águas que afinal não são milagrosas. Reaturam-no momentaneamente, como refere em caricaturas suas, mas depois voltam os problemas da Fábrica que está cada vez mais próxima do abismo económico. Nem os prémios, como uma nova Medalha de Ouro na Exposição Universal de St. Louis (EUA) o salvam. Faz trabalhos para o Visconde de S. João da Pesqueira, uma baixela manuelina; faz decorações para o Palacete de Ventura Terra, para a moradia do cunhado Henrique de Mendonça.
Gráficamente para além dos desenhos de “A Paródia”, para onde lhe custa cada vez mais fazer sátiras, depois de ver suas vitimas a aplaudirem-no em homenagem, faz apenas a capa da brochura de “Homenagem ao Dr. S. Magalhães Lima, ilustre director da Vanguarda…” e o número especial do “Diário de Notícias Ilustrado”, o qual era também publicado no Porto com o titulo de “Comércio do Porto Ilustrado”.
Também no Porto, fará as decorações Carnavalescas para o Teatro de São João que fizeram grande sucesso, o que motivaria novas encomendas para o ano seguinte.
1905 – Durante esta ano saem publicados trabalhos que foi fazendo ao longo de 1904, ou seja ilustrações para o livro “Impressões de Teatro” de Madureira, e uma capa para “O Festival de João de Deus” de Teófilo Braga.
Morreria a 23 de Janeiro, quando tinha em mãos os esboços para as decorações do 1º Cortejo Carnavalesco do Clube Fenianos do Porto. Morreu sonhando com o humor popular, com o sorriso do divertimento, da loucura que anualmente torna o mundo do avesso e nos faz acreditar que o mundo poderia ter salvação se os senhores do poder não se levassem tanto a sério e não nos infernizassem a vida.
O jornal “A Paródia” subsistira até 1907, quando seu filho, cansado e desiludido abandona definitivamente a sátira politica. A Fábrica das Caldas após a sua morte é….. para os credores, mas o seu filho conseguirá recuperar os moldes e as principais peças, por via judicial e voltará a criar uma nova Fábrica onde continuou a honrar o génio de seu pai e onde também ele executou com primor obras de grande qualidade estética e técnica, não fosse ele o herdeiro em quem o mestre depositou todo o seu orgulho e confiança.
O seu enterro foi assistido por uma grande multidão que não quis deixar de lhe prestar a última homenagem no caminho para o Cemitério dos Prazeres onde seria enterrado no mausoléu que ele próprio tinha desenhado para o Visconde de Faro e Oliveira.
Muitos foram os textos laudatórios, homenagens que foram publicados após a sua morte, contudo as palavras do litografo e velho amigo Caetano Alberto, em “O Occidente” serão porventura as mais significativas: “Alma bem portugueza, illuminada pela grande luz da inteligencia affirmada na sua obra, bem sua, genial que para a produzir não se aprende nas academias, para que não há compêndios, nem regras, livre, elevada como a águia que rossa as azas nas nuvens, assim foi Raphael Bordallo Pinheiro assistindo à passagem da sociedade do seu tempo.”
“Viu e criticou com superior espírito. A sua sátira foi sempre fina e nem por isso menos pungente. Os males da pátria doeram-lhe apesar de rir e muitas vezes choraria no íntimo, rindo por fora para fazer rir os mais.”
“E a rir, foi castigando com o seu mágico lápis, onde havia sempre a originalidade, onde encontrava sempre novos pontos de vista para apreciar as questões e os homens, sem rancor, sem insolência, sem grosseria, antes sempre com finura e graça, superiores, em que os próprios attingidos pela crítica tinham de lhe reconhecer o talento e muitas vezes ficariam satisfeitos por cahirem do lápis do grande caricaturista para o meio da publicidade, que dá nome, que distingue, que populariza.”
“Não se criticam nem se caricaturizam os obscuros, os inúteis. O merecer uma caricatura é estar em sorte; o ser caricaturado por um grande artista é uma honra. Assim Bordallo Pinheiro rindo, ia castigando e nem por isso os alvejados pelo seu lápis se tornariam seus inimigos. O Juiz que castiga não pode ser odiado por que cumpre a lei. A missão do crítico é árdua, mas a pena e o lápis tem conquistado mais direitos para a humanidade do que as espadas e canhões.”
“/…/ Para o futuro a sua obra se encarregará de dizer às gerações, que na segunda metade do século XIX e princípio d’este em que estamos, viveu um dos maiores artistas que tem nascido em Portugal”.
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