Monday, February 16, 2009
Historia da Caricatura de Imprensa em Portugal - 1891 (Bordallo Pinheiro o António Maria e Pontos nos ii)
Por: Osvaldo Macedo de Sousa
Em 1891 vamos encontrar o renascimento do “António Maria" (a 5 de Março), já que Raphael Bordallo Pinheiro dá por finda a vida dos "Pontos nos ii" (a 5 de Fevereiro), com o mesmo número de jornais da primeira série do "António Maria" (294).
Mais uma vez acontece por diferendos com a sociedade, mas desta vez não é por opção de Raphael, mas por opção do Governo Civil. Devido ao incondicional apoio do jornal aos acontecimentos últimos no Porto (Revolta do 32 de Janeiro), dando "Glória aos vencidos", numa posição radical de republicanismo assumido, a polícia proíbe o jornal, e põe Raphael na barra do tribunal... No fundo, os desenhos e os artigos até são menos satíricos para a monarquia, que o costume. São críticos em relação aos republicanos, chamando-lhes a atenção que o país ainda não está maduro para o golpe final, contudo a censura e a monarquia sentiram-se mais ofendidas com as sugerências ao regime do que com as sátiras directas aos governantes
Os "Pontos nos ii" foram proibidos, numa fase delicada da vida política portuguesa. Neste momento, mais que em qualquer altura, Raphael necessitava de estar em cima do acontecimento. A continuação deste título era delicada. Criar um novo jornal, implicava alertar o público para a mudança, manifestando que era a continuação do mesmo projecto e luta, o que alertava também a censura. Ressuscitar o título anterior era continuar o projecto, e a filosofia existente, sem ter que explicar grande coisa. Era a via mais fácil, e foi o que aconteceu
Só que, politicamente, já não havia razões para invocar o nome do "António Maria" pois o António Maria Fontes Pereira de Melo estava morto. No meio de tanta agitação, não deve ter surgido nada melhor, e então preferiram ressuscitar o António, surgindo descaracterizado da sua identificação caricatural directa com um político, para tomar a pele de um segundo Zé, mas mais burguês, e acomodado.
O elo de ligação entre os jornais será a Maria, que no último "António" de 85 surge a colocar os pontos nos ii; depois no "Pontos nos ii" surge como viúva do António, para nesta nova série do '"António Maria" ser o contraponto do burguês ressuscitado. Maria foi uma iconografia caricatural utilizada por diversas vezes, como porta-voz feminina do povo, e aqui reaparece de novo como porta voz do jornal, como 'líder' da oposição satírica, como "personificação da fúria sertaneja", como "a pontinha de fel, o dinamite, o venenozinho de capote e lenço". Se o Zé/António é um submetido, um paz de alma que suporta tudo, a Maria (como na vida real) é que o espicaça, é que barafusta, insulta ... Curiosamente pouco se tem estudado a importância da Maria na caricatura de Raphael, e os outros caricaturistas não se aproveitaram desta Maria da Fonte que tem uma figura que ainda hoje se pode encontrar nas aldeias portuguesas.
Neste texto de re-apresentação, com desenho de Manuel Gustavo, vem escrito: «O António Maria esteve interrompido durante alguns annos por muitas e complicadíssimas razões de família, que as conveniências policiaes e a razão d' Estado não permitem que nós tornemos públicas.»
«A principal, foi o desacordo de princípios que se estabeleceu entre António, philosopho da escola de Sancho Pança, e Maria a personificação da fúria sertaneja alfacinha. António procurava ser o bom senso e a graça indígena, sem grandes admirações pelos homens, mas também sem grande ódios por esse medonhos animaizinhos de pés, sobrecasaca, luvas pretas e boquilha, que formigam e esfervilham das onze às três sob as arcadas do Terreiro do Paço. Maria era a pontinha de fel, era a dynamite, era o venenosinho do capote e lenço, introduzindo-se todos os dias na santa beatitude do atelier. / ... /»
A brincar se dizem as coisas sérias. Na realidade, esta disputa entre a "Maria" e o “António" é a luta que se disputa dentro do próprio jornal, encarnando Maria o empenhamento original do caricaturista Raphael, jovem e aguerrido artista/jornalista; e registando António a madureza do velho Raphael, sem querer entrar em demasiadas querelas, a querer entregar-se às suas cerâmicas, dando-se bem com alguns sectores políticos que o levavam como representante de Portugal a diversas exposições internacionais. O próprio Manuel Gustavo, que cada vez tomava maior controlo destes periódicos, tinha um carácter menos satírico, mais ironista, ou seja mais próximo de um António que da Maria regateira, e desbocada.
O fim dos "Pontos nos ii", coincide com um acontecimento político importante, e de extrema gravidade, o 31 de Janeiro no Porto. Um grupo de republicanos tenta sublevar o norte, mas será prontamente sufocada a rebelião, e todos presos. Era a primeira tentativa de derrube da monarquia de forma revolucionária. Foi uma precipitação, já que o país não estava preparado, e o golpe tinha que ser feito na capital, onde estava o rei e o governo.
Tudo isto vinha em consequência crescente do Ultimatum, da inoperância do sistema rotativista que formava governo atrás de governo quase anualmente, e por vezes mais de uma vez por ano, a grande crise económica de decisões políticas que tinha levado o país à bancarrota ... naturalmente o país estava em sincope.
«- Teve uma syncope !
- Já o despimos, até lhe tirámos a camisa, para facilitar a circulação ... e não recupera os sentidos. É capaz de nos ficar nas mãos !
- Entretanto vamos todos endireitá-lo, que está muito torto.
- Não puxem da direita!
- É da esquerda que empurram ...
- Afrouxem lá de cima!
- Aguentem de baixo ...
- Não tem senão ossos e está todo desengonçado. O melhor é esfolá-lo e encher de palha a pele. Bem empalhado se lhe dará vida nova.» (M. Pinto, in "Charivari" 25/4/1891)
Depauperado, roto, em síncope, é como Portugal surge nas imagens satíricas. Já em 1847 (27/9) o Patriota apresenta-o como um esqueleto despojado de vestes a carnes pelos agiotas. Nesse mesmo jornal em 1848, Cecília transforma-o em burro carregado de albardas, pois ainda não existia a figura do Zé para as transportar. Mas de todas as formas já surge aqui a figura do povo português pronto a obedecer a qualquer almocreve político, nacional ou estrangeiro, mas sempre teimoso em não querer tomar o caminho do progresso. Nesse mesmo ano, Portugal aparece também numa tourada, mostrando o nobre Portugal a ser farpeado pelos políticos, sob o aplauso dos demais políticos e passividade do povo. Em 1849 (2/1) "O Patriota" dá uma nova versão, ou seja uma nau à deriva em plena tempestade. E desta forma contundente, mas verídica, os artistas de "O Patriota" marcaram definitivamente o rumo caricatural deste Portugal, e os caricaturistas posteriores não fizeram mais que repetir estas imagens tristes e cruéis - O esqueleto, o farrapo vendido, farpeado, a nau em naufrágio. O Zé não simboliza o País, mas o seu povo, mas será também ele esfarrapado, comida a sua carne até ao osso, farpeado, albardado, amarrado à pedra como Prometeu, com os políticos a picarem-lhe o fígado ... apenas não naufragará, porque como bom marinheiro, recusa-se a entrar nas águas tormentosas, preferindo dormir a sesta.
Neste ano de 91 pode-se referir, para além dos jornais já mencionados, “A Seta" (com trabalhos de AS. Guimarães) e “ABaixa" (desenhos de Julião Machado).
Em 1891 vamos encontrar o renascimento do “António Maria" (a 5 de Março), já que Raphael Bordallo Pinheiro dá por finda a vida dos "Pontos nos ii" (a 5 de Fevereiro), com o mesmo número de jornais da primeira série do "António Maria" (294).
Mais uma vez acontece por diferendos com a sociedade, mas desta vez não é por opção de Raphael, mas por opção do Governo Civil. Devido ao incondicional apoio do jornal aos acontecimentos últimos no Porto (Revolta do 32 de Janeiro), dando "Glória aos vencidos", numa posição radical de republicanismo assumido, a polícia proíbe o jornal, e põe Raphael na barra do tribunal... No fundo, os desenhos e os artigos até são menos satíricos para a monarquia, que o costume. São críticos em relação aos republicanos, chamando-lhes a atenção que o país ainda não está maduro para o golpe final, contudo a censura e a monarquia sentiram-se mais ofendidas com as sugerências ao regime do que com as sátiras directas aos governantes
Os "Pontos nos ii" foram proibidos, numa fase delicada da vida política portuguesa. Neste momento, mais que em qualquer altura, Raphael necessitava de estar em cima do acontecimento. A continuação deste título era delicada. Criar um novo jornal, implicava alertar o público para a mudança, manifestando que era a continuação do mesmo projecto e luta, o que alertava também a censura. Ressuscitar o título anterior era continuar o projecto, e a filosofia existente, sem ter que explicar grande coisa. Era a via mais fácil, e foi o que aconteceu
Só que, politicamente, já não havia razões para invocar o nome do "António Maria" pois o António Maria Fontes Pereira de Melo estava morto. No meio de tanta agitação, não deve ter surgido nada melhor, e então preferiram ressuscitar o António, surgindo descaracterizado da sua identificação caricatural directa com um político, para tomar a pele de um segundo Zé, mas mais burguês, e acomodado.
O elo de ligação entre os jornais será a Maria, que no último "António" de 85 surge a colocar os pontos nos ii; depois no "Pontos nos ii" surge como viúva do António, para nesta nova série do '"António Maria" ser o contraponto do burguês ressuscitado. Maria foi uma iconografia caricatural utilizada por diversas vezes, como porta-voz feminina do povo, e aqui reaparece de novo como porta voz do jornal, como 'líder' da oposição satírica, como "personificação da fúria sertaneja", como "a pontinha de fel, o dinamite, o venenozinho de capote e lenço". Se o Zé/António é um submetido, um paz de alma que suporta tudo, a Maria (como na vida real) é que o espicaça, é que barafusta, insulta ... Curiosamente pouco se tem estudado a importância da Maria na caricatura de Raphael, e os outros caricaturistas não se aproveitaram desta Maria da Fonte que tem uma figura que ainda hoje se pode encontrar nas aldeias portuguesas.
Neste texto de re-apresentação, com desenho de Manuel Gustavo, vem escrito: «O António Maria esteve interrompido durante alguns annos por muitas e complicadíssimas razões de família, que as conveniências policiaes e a razão d' Estado não permitem que nós tornemos públicas.»
«A principal, foi o desacordo de princípios que se estabeleceu entre António, philosopho da escola de Sancho Pança, e Maria a personificação da fúria sertaneja alfacinha. António procurava ser o bom senso e a graça indígena, sem grandes admirações pelos homens, mas também sem grande ódios por esse medonhos animaizinhos de pés, sobrecasaca, luvas pretas e boquilha, que formigam e esfervilham das onze às três sob as arcadas do Terreiro do Paço. Maria era a pontinha de fel, era a dynamite, era o venenosinho do capote e lenço, introduzindo-se todos os dias na santa beatitude do atelier. / ... /»
A brincar se dizem as coisas sérias. Na realidade, esta disputa entre a "Maria" e o “António" é a luta que se disputa dentro do próprio jornal, encarnando Maria o empenhamento original do caricaturista Raphael, jovem e aguerrido artista/jornalista; e registando António a madureza do velho Raphael, sem querer entrar em demasiadas querelas, a querer entregar-se às suas cerâmicas, dando-se bem com alguns sectores políticos que o levavam como representante de Portugal a diversas exposições internacionais. O próprio Manuel Gustavo, que cada vez tomava maior controlo destes periódicos, tinha um carácter menos satírico, mais ironista, ou seja mais próximo de um António que da Maria regateira, e desbocada.
O fim dos "Pontos nos ii", coincide com um acontecimento político importante, e de extrema gravidade, o 31 de Janeiro no Porto. Um grupo de republicanos tenta sublevar o norte, mas será prontamente sufocada a rebelião, e todos presos. Era a primeira tentativa de derrube da monarquia de forma revolucionária. Foi uma precipitação, já que o país não estava preparado, e o golpe tinha que ser feito na capital, onde estava o rei e o governo.
Tudo isto vinha em consequência crescente do Ultimatum, da inoperância do sistema rotativista que formava governo atrás de governo quase anualmente, e por vezes mais de uma vez por ano, a grande crise económica de decisões políticas que tinha levado o país à bancarrota ... naturalmente o país estava em sincope.
«- Teve uma syncope !
- Já o despimos, até lhe tirámos a camisa, para facilitar a circulação ... e não recupera os sentidos. É capaz de nos ficar nas mãos !
- Entretanto vamos todos endireitá-lo, que está muito torto.
- Não puxem da direita!
- É da esquerda que empurram ...
- Afrouxem lá de cima!
- Aguentem de baixo ...
- Não tem senão ossos e está todo desengonçado. O melhor é esfolá-lo e encher de palha a pele. Bem empalhado se lhe dará vida nova.» (M. Pinto, in "Charivari" 25/4/1891)
Depauperado, roto, em síncope, é como Portugal surge nas imagens satíricas. Já em 1847 (27/9) o Patriota apresenta-o como um esqueleto despojado de vestes a carnes pelos agiotas. Nesse mesmo jornal em 1848, Cecília transforma-o em burro carregado de albardas, pois ainda não existia a figura do Zé para as transportar. Mas de todas as formas já surge aqui a figura do povo português pronto a obedecer a qualquer almocreve político, nacional ou estrangeiro, mas sempre teimoso em não querer tomar o caminho do progresso. Nesse mesmo ano, Portugal aparece também numa tourada, mostrando o nobre Portugal a ser farpeado pelos políticos, sob o aplauso dos demais políticos e passividade do povo. Em 1849 (2/1) "O Patriota" dá uma nova versão, ou seja uma nau à deriva em plena tempestade. E desta forma contundente, mas verídica, os artistas de "O Patriota" marcaram definitivamente o rumo caricatural deste Portugal, e os caricaturistas posteriores não fizeram mais que repetir estas imagens tristes e cruéis - O esqueleto, o farrapo vendido, farpeado, a nau em naufrágio. O Zé não simboliza o País, mas o seu povo, mas será também ele esfarrapado, comida a sua carne até ao osso, farpeado, albardado, amarrado à pedra como Prometeu, com os políticos a picarem-lhe o fígado ... apenas não naufragará, porque como bom marinheiro, recusa-se a entrar nas águas tormentosas, preferindo dormir a sesta.
Neste ano de 91 pode-se referir, para além dos jornais já mencionados, “A Seta" (com trabalhos de AS. Guimarães) e “ABaixa" (desenhos de Julião Machado).