Tuesday, October 28, 2008

Não lhe pagavam as caricaturas, mas abriram-lhe as portas de alguns jornais de índole cultural ou humorístico («periódicos que pagam mal… quando pagam»). Assim foi equilibrando a sua sobrevivência com colaborações para “La Vida Literária, “Almanach de La Vida Literária”, “Almanach de la Revista Vinícula”, “Madrid Cómico”, “Álbum Hispano Americano, “El Mundo Cómico” (Barcelona), “Illustraccion Americana y Española”, “Revista Moderna”, “La Revista Cómica e Taurina”, “El Imparcial”, “El Álbum”….. normalmente com caricaturas de personalidades da cultura ou charges costumbristas e de sátira internacional: «Não fazem senão insistir para que faça caricatura da política internacional». Claro que como estrangeiro a critica ao governo espanhol estava-lhe interdita. De todas as formas o facto de ter conseguido entrar em todos estes periódicos é notável, como ele próprio confessa à sua mãe: «É preciso notar que Espanha não é Portugal onde só há quatro caricaturistas. Aqui há dezenas em Madrid e todos eles buscam comprometer os outros porque não chega trabalho para tantos. O nome que eu tenho criado em Espanha é o que os franceses chamam um «tour de force» (sabe o que é?) e esse nome, sem modéstia devo dize-lo, já o consegui.»
São dois anos o tempo que se mantém em Madrid e, para sintetizar a sua evolução caricatural poderíamos dizer que em 1898 chegou um desenhador caricatural e em finais de 1900 partiu um pintor caricatural. O domínio do pastel, do óleo dera uma nova consistência ao seu trabalho, ao seu estilo que se situava entre o goyesco e o expressionismo ibérico.
Leal da Câmara, como já referi, não viveu em Madrid, mas sim viveu Madrid com toda a sua irreverência juvenil e múltiplas são as anedotas dessa vivência, mas não queria deixar de me referir a um acontecimento especial, pelas consequências que deixou no meio cultural espanhol, ou seja, o mito da perda do braço de um génio da cultura espanhola. Quem nos conta este episódio, é mais uma vez Aquilino Ribeiro: « ele foi dar a Madrid, ao tempo Abbaye Theleme de curiosas e simpáticas figuras nas letras e na política, Valle Inclan, Luís Bonafoux, Benavente, Pereda, Rubén Dario, Gomes Carrilho, Galanis, Sancha, etc., etc., pessoas que foram retratadas pela sua mão, e se podem ver na casa-museu da Rinchoa.

«Foi na sarrafusca duma tertúlia de arte e literatura que, por causa de Leal da Câmara, Valle Inclan, catedrática de estética, como se titulava nos bilhetes de visita, perdeu um braço. Ramon Gomez de la Serna conta num livro as sete maneiras, segundo as quais se deu «tão deplorando quanta heróico lance». O autor das “Sonatas” atribuía-lhe alta e epopaica origem, se bem que não pudesse comparar-se à da excelsa manchot de Lepanto, autor da D.Quixote. Afinal, a fonte do calamitoso sucesso estava num peguilho de que fora objecto Leal da Câmara, Valle Inclan havendo terçado por ele. Ferido, descurara o go1pe que, infectando-se, acabara por gangrenar-se. A estada de Leal da Câmara em Madrid teve largas e demoradas projecções.»
O caminho da pesquisa, do experimentalismo é sempre mais fácil quando há uma alma gémea com quem partilhar as duvidas, as incertezas e as ousadias. Em Portugal, Tomás Júlio teve em Celso Hermínio esse companheiro da descoberta da sátira panfletária, do republicanismo desenhado com revolta e alma. Em Madrid, o cúmplice no amadurecimento do traço pictórico, foi Francisco Sancha, um humorista da sociedade, um critico dos costumes, um observador do quotidiano: «Dou-me muito com um caricaturista espanhol chamado Sancha que tem um enorme talento e que é o único caricaturista espanhol. Não há outro hoje e não tem havido outro maior depois do grande Goya».

Francisco Sancha Lengo (Málaga 1874- Oviedo 1936) estudava com Moreno Carbonero onde Leal da Câmara o conheceu, e viveu depois algum tempo em Paris e em Londres. No humor dedicou-se à caricatura ou a desenhos de humor costumbrista, dedicando-se também à pintura, ilustração, desenho de móveis… Foi director da revista “Alegria”, colaborou em El Cardo, Madrid Cómico, La Vida Literaria, La Revista Moderna, Gedeón, Alegría!, El Sol, La Voz, Blanco y Negro, La Esfera, Abc, Le Cri de Paris, Frou-Frou, Le Rire…
Ambos trabalhavam numa constante pesquisa de apanhar a realidade grotesca do dia a dia, para poderem conquistar o seu espaço na imprensa madrilena: «Eu sou obrigado a ir a toda a parte, a teatros, a cafés, às verbenas (festas populares) enfim, a toda a parte. Ando sempre com um belo álbum na mão e sempre trabalho, copiando do natural muitíssimo, e só assim eu tenho conseguido um adiantamento tão sensível. Resultado é que para tudo isto é preciso dinheiro, e muito mais em Madrid, onde é tudo caríssimo. Cada álbum custam duas pesetas ou seja um cruzado e hás vezes em que um álbum fica cheio em dois dias.» Tomás Júlio seguia a melhor escola das artes, fazer a mão trabalhando, trabalhando.

Mesmo sem dinheiro, mas sempre com muitos sonhos e projectos ainda idealizou com Sancha a criação de um periódico que, naturalmente, ficou por um simples projecto. Em 1916 o critico de arte espanhol José Frances escreveria - no “El Año Artístico de 1916” - que Sancha e Leal da Câmara «juntos realizaram essa admirável missão de renovar por completo a caricatura espanhola. Porque Leal e Sancha foram os mais decididos inimigos daquele Madrid cómico, absurdo, que durante anos e anos se considerou como empório do génio e da arte /…/ Mais que a Sancha foi a Leal que os caricaturistas espanhóis, que então surgiram, imitaram. /…/ Leal da Câmara, apesar dos seus triunfos madrilenos, breve se cansou de viver em Madrid. Sobretudo de viver mal, porque nunca foram, e então menos de que nunca, um lápis e um espírito rebelde meios muito seguros para medrar em Espanha.»»
Entretanto Sancha parte para Paris com uma bolsa de estudo, e aí consegue trabalho no “Rire” e onde publica trabalhos do amigo Câmara. Entretanto, além deste jornal francês, Leal da Câmara consegue publicar um ou outro desenho em Itália, no Brasil e em Portugal ainda enviou desenhos para “O Diabo”.
Esta partida de Sancha motiva o nosso artista a ir também até essa cidade das artes, como escreve à mãe: «…E olhe, andava há muito, a acariciar a ideia duma passeata a Paris. A estada ali de uns meses só podia fazer-me bem e seria o coroamento feliz dos meus esforços. Escrevi esforços, e a Mamã não suspeita sequer a soma de energia que envolve esta expressão. Não foi um dia só nem dois que fiquei sem comer para poder pagar aos modelos e comprar material. Estas coisas tão molestas digo-lhas, querida Mamã, para que não pense mal de mim e não me suponha enterrado até o pescoço na vida airada. No entanto, creia que ninguém me vê senão de cara alegre, porque estas batalhas não se ganham chorando ou implorando a comiseração do nosso próximo. Tudo isto vem de intróito a eu querer-lhe dizer que o Imparcial, a maior gazeta de Espanha, me propôs ir a Paris fazer umas crónicas semanais para o suplemento das segundas-feiras, consagrado às letras. Olho para o Paris de monóculo, para o Paris o mais possível íntimo, o Paris por detrás das persianas e das fórmulas consabidas de Ville Lumiere, Bal Tabarin, metrópole das artes e letras, numa devassa galante, e cobro uns cem francos por cada artigo. Cem francos, parece muito dinheiro, e nada mais enganoso dada a vida que serei obrigado de levar em Paris, bem encasacado, batendo de tipóia, para poder entrevistar artistas, políticos, gente de clube e de botequim, colher em suma impressões vividas. Antes de partir - pois a Mamã está a adivinhar que aceitei - penso expor os meus últimos trabalhos…»


A sua primeira vontade não era ficar por lá, já que a sua situação profissional em Madrid se ia consolidando, enquanto que Paris era o voltar à estaca zero na luta pela sobrevivência económica, era o regresso à luta por um espaço num território já dominado e explorado por dezenas de grandes artistas. Mas, parece que foi essa luta que o motivou mais, como se pode depreender por estas suas palavras: «… a razão de estarem ali muitos burros facilita-me a entrada nesses jornais e a razão de estarem pessoas de talento, estimula-me para que faça alguma coisa melhor do que as que tenho feito até agora. Enfim, eu quero ir a Paris.»
Partiu para ver os ares e por lá ficou uma década. Rapidamente se impôs na cidade luz como um caricaturista de sucesso, mas o seu espírito curioso e investigador não o deixou adormecer no regaço do sucesso. Para além das questões técnicas ou estéticas (ele experimentou todas as correntes vanguardistas de então, inclusivamente o cubismo), o lado filosófico e social da arte vão-se impondo na sua pesquisa, O papel do artista na sociedade foi uma preocupação sua, levando-o para novos campos como o design de interiores, a decoração, a publicidade, a pedagogia artística. Contudo, o humor gráfico manteve-se como a âncora da sobrevivência.



Com a queda da monarquia, em Portugal em 1910, Leal da Câmara regressaria ao seu país para rever a família e amigos. Ficou quase quatro anos, apesar do regresso ter sido uma desilusão, já que não foi recebido com o carinho e a vontade de publicar desenhos que esperava. Eram novos tempos, e as revoluções nem sempre acarinhavam quem estragou a vida na luta por ela. Ninguém é profeta na sua terra.

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