Sunday, April 27, 2008

Historia da Caricatura de Imprensa em Portugal (Parte 26)

Por: Osvaldo Macedo de Sousa
1882

Os jornais humorísticos que se mantêm em 1882 são o António Maria e o Sorvete, aparecendo e desaparecendo O Alfacinha (trabalhos de Joaquim Costa), Cavaqueira Política, 0 Tigre (desenhos de Augusto Maria), O Barbeiro, O Rabecão, O Pim-pam-pum, Rua, e O Binóculo.
Este último que dura até 1884, é o primeiro jornal de sátira política das ilhas açorianas, que foi publicado pelos irmãos Cabral, Augusto e João. Ambos num estilo de croquis infantil, é difícil diferenciar os trabalhos de cada um. Segundo António Dias de Deus, João Cabral virá posteriormente para o Continente. Foi aluno de Silva Porto, criando alguma obra conceituada a óleo e aguarela. Publicou ainda desenhos na revista "Lua Nova" (1890/1), e virá a morrer em Lisboa em 1916. Quanto ao irmão, perde-se o rasto.
Nenhum destes cria alguma novidade. O Sorvete mantém-se como a crónica portuense, e o "António Maria" acumulando a crónica de Lisboa com a crónica da política nacional. Para testemunhar os 'fait divers' à volta desta vida corriqueira do jornal, vamo-nos mais uma vez socorrer das palavras de Manuel Sousa Pinto: «Em seis annos de existência, a primeira série do António Maria, graças à instabilidade ministerial que sempre, mais ou menos, tem caracterizado a política portugueza, atravessou várias situações regeneradoras e progressistas, gozando hoje da mais ampla liberdade de crítica, para amanhã se vêr crivado de querellas.»
«De todas essas alternativas políticas, há o perfeito reflexo no jornal de Bordallo, que, apezar do seu brilho e do seu êxito, nunca logrou ter vida perfeitamente desafogada. « …com o António Maria ­escreveu Mariano Pina na Illustração Vol. 11 nº 4 - 20/2/1885 - dava-se um caso curioso. Hoje os progressistas aplaudiam-no às mãos ambas porque era o sr. Fontes que estava no poder. No dia imediato ia para lá o sr. Braamcamp, e os progressistas pediam a forca para Raphael Bordallo! Quasi se pode dizer que havia na administração do jornal dois grandes turnos d'assignantes - regeneradores quando os progressistas estavam em cima; e progressistas quando em cima estavam os regeneradores».
Como ele refere, e apesar do seu sucesso, a vida do jornal não era fácil. Primeiro porque as tiragens não eram gandes. A população do país na altura rondava as 4.700.000 pessoas. E, por diversas razões: era elevado o número de analfabetos (74,9%). Era limitado o número de pessoas letradas e interessadas na vida política e social: e nem todos tinham arcaboiço humorístico para se rirem das ideias dos outros e das suas da mesma forma. Por outro lado era tradição os barbeiros, as boticas, os cafés, terem um jornal que cobria toda uma freguesia. que dessa forma não necessitava de comprar o seu próprio jornal. Por outro lado, Raphael Bordallo sempre foi um mau homem de negócios, sendo facilmente aldrabado pelas gráficas, pelos quiosques que vendiam os jornais, e acabou por andar sempre aflito economicamente, mesmo em plenos sucessos editoriais. Por fim, quase não publicavam publicidade, que é o que mantêm hoje os jornais. Só nos finais do século vemos aparecerem anúncios, e curiosamente a maior parte deles são desenhados pelos humoristas de serviço.
Sucesso, ele teve, apesar de muitas das vezes não o quererem reconhecer abertamente em Lisboa, ou no país. Ele marcava o dia-a-dia em Portugal. Inclusive esse sucesso real, incomodava o artista, já que sendo uma celebridade e uma voz ouvida, os seus passeios pelo Chiado eram constantemente entrecortados pelos "fans", e às vezes pelas suas vítimas.
A sua verve, a sua ironia moldou uma sociedade, educou uma elite social e política, e deu uma melhor imagem do país além fronteiras. Estas conseguiram por vezes, anular a imagem pitoresca e retrógrada propagada pelos gravadores, aguarelistas e escritores estrangeiros que por aqui passaram. Ramalho Ortigão (in As Farpas - Tomo IX) vai mais além, e garante-nos: «Onde ninguém sabe o nome do sr. Fontes, nem do sr. Braamcamp, nem do sr. José Dias Ferreira, no foyer da Opera em Paris, no foyer da Comedie Française. no fayer do Palais Royal, em Covent Garden, em Londres, no Scala de Milão, em Florença e em Roma. Em S. Petersburgo, em Stockolmo, em Vienna, em Amsterdam, em Bruxellas, em New-York na Havana, o António Maria tem sido visto e folheado entre sorrisos e applausos pelos primeiros artistas de theatro de todo o mundo.»
«Não há côrte onde alguma vez, ou fosse levado por um príncipe, ou fosse levado por um embaixador, elle não entrasse, o não vissem, e não procurassem solettrar o seu nome.»
«Em todas as academias e em todas as bibliothecas da Europa há, mais ou menos completa noticia de que elle existe. Em pequenas e obscuras tabernas ingIezas, onde nunca penetrou outra qualquer palavra da nossa língua, encontra-se affixado na parede o título do António Maria ou o do Álbum das Glórias. sobreposto à caricatura do príncipe de Galles ou da rainha de Inglaterra.»
«Ao passo que o sr. Bowles, do Vanity Fair me escrevia de Londres, pedindo-me as caricaturas da família real portugueza, feitas por Bordallo, para o famoso jornal inglez, o sr. Virchow, na primeira página de uma memória apresentada à Sociedade de Anthropologia de Berlim, exprimia-se nos seguintes termos, litteralmente traduzidos do original allemão : Às pessoas que não conhecem os membros do congresso, recommendo os n.ºs... do António Maria, espirituosa folha litterária. a quall em caricaturas de um êxito fora do commum, relata as circunstancias e os pormenores do congresso com uma liberdade de exame de que nós outros, apesar do successivo desenvolvimento da nossa imprensa, não temos por emquanto exemplo algum.»
Agora um parêntesis nacionalista. Observando a caricatura dos outros países europeus, neste período de oitocentos (e não só), com excepção da França e Inglaterra, reparamos que o nosso humor gráfico conseguiu valores estéticos muito superiores ao normal. Na sua maioria, os caricaturistas espanhões, italianos, alemães... são comparáveis à imprensa que, nesta história apenas afloramos como referência existencial, nos múltiplos jornais que apareciam e desapareciam regularmente. Podemos não ter o 'sense of humour' doutros povos, mas sempre houve uma preocupação estética na evolução das artes humorísticas. Verifica-se num crescente número dos nossos artistas levar mais além a crítica-jornalística, e enriquecê-la com uma estética forte, seja conservadora ou vanguardista, conforme os gostos e educação de cada um.
Neste ano de 1882 destaca-se o Centenário do Marquês de Pombal, com os Republicanos mais uma vez a tomar conta de uma figura nacional, despoletando neste caso, a luta contra o clericalismo dominante na educação nacional.
Nada escapará à sátira, sejam os governos, a sociedade, a igreja. Para melhor compreensão, o caricaturista utilizará alegorias, ou imagens compreensíveis pelo público, do letrado ao analfabeto. Se o Presépio só mais tarde será um elemento utilizado regularmente, a Semana Santa será uma fonte inesgotável de inspiração satírica.
A Semana Santa dá ao caricaturista uma quantidade enorme de simbologias para explorar. Usa-o, tanto no âmbito cenográfico, como no de contexto, como por exemplo: o beijo da traição de Judas pode ser lido como a traição dos políticos, que atraiçoam o povo eleitor, que lhes viram as costas por um bom posto governativo, por um suborno... (curiosamente nunca se utiliza a simbologia do suicídio de Judas e seu arrependimento... ); a flagelação de Cristo é a flagelação do Zé Povo com os impostos, e cada imposto novo é um espinho na sua coroa: o transporte da cruz é o símbolo de que, apesar de flagelado pela miséria, despido de tudo e quase sem direitos tem que transportar o país para a frente; a crucificação do Cristo-Zé é o dia a dia... Um dos caricaturistas que mais utilizou a simbologia da paixão foi Raphael, como por exemplo em "A Procissão dos Passos-Políticos". "O lava-pés politico", "O Calvário do Paiz", 'A Paixão Popular"...
Outro tema importante, já que seria uma constante nestes anos de rotativismo, é o "carneiro com batatas", ou mais concretamente as eleições: «- Isto não são lá eleições nem meias eleições! - Diz V. Ex" muito bem! A urna já não dá nada! Nem um reles carneiro com batatas!» (Joaquim Costa in O Alfacinha de 31/2/1882) O acto eleitoral, surge na simbologia caricatural aliada ao carneiro com batatas, já que era o prato que os políticos normalmente ofereciam aos seus correligionários após estes terem votado. Era o acto eleitoral como 2lrr:c·ç,: da carneirada. e era a carneirada como almoço do acta eleitoral. Tudo começava pela escolha do político, que não era uma pessoa qualquer mas um "«talento perspicaz, saber profundo, dai-lhe dinheiro, dar-vos-á o mundo» (Maria in O Patriota 6/9/1847), ou seja uma pessoa influente, um comprador de sonhos e projectos «-Votai em mim eleitores, que sou um homem de brio, pelos votos dou dinheiro, e quem dá é sempre tio» (in Demócrito a 9/7/1865), que no dia de eleições 'dá' tudo - «No dia dos votos Zé Povinho tem tudo o que lhe apetece - em expectativa: tem estrada para a sua aldeia, um novo sino para o seu campanário, tem vinte mil reis de feijão a mais para o rancho do seu regimento, tem três mil e quinhentos pelo seu voto. No outro dia Zé Povinho tem tudo aquilo o que não quer: tem um novo imposto, tem um deputado novo, e para substituir o pão sem peso, tem pau sem conta e sem medida.» (RBP in António Maria 18/1/1881)
O acto eleitoral sempre foi uma arte de demagogia, e a criação caricatural do eleitorado foi registada por Raphael: «- Os cinco sentidos eleitorais - primeiro vê-se uma caravela de doze (dinheiro); depois ouve-se uma promessa tentadora... ; mais tarde cheira-se o carneiro com batatas; em seguida gosta-se do torreano (vinho) de 80 reis o litro, e por fim apalpa-se o chão com as costelas. E aqui está como se vota» (RBP, in Ant. Maria 1/11/83). O eleitor vende-se, é enganado, «apalpa o chão com as costelas», e volta a vender-se. Porquê? É que «o eleitor é como os carneiros de Panurge: atira-se para a urna inconsciente, indo atrás do choro d'um emprego ou de uma promessa /.../» (RBP, in Pontos nos ii 18/11/86). O eleitor é como um rato, que, apesar de conhecer a armadilha, cai sempre na «ratoeira eleitoral» (Sebastião Sanhudo in O Sorvete 28/9/79).
Por outro lado o acto eleitoral surge como uma feira (RBP in António Maria 19/10/79), onde cada partido monta a sua tenda, chamando o eleitorado pelo cheiro, ou orientando-o como um bando de perus: «Para a ninhada regeneradora ser grande, o galo do partido não tem mais remédio senão arrastar a asa às galinhas que põem ovos de ouro. /.../ Ainda há circuitos em que os eleitores 'independentes' se levam à urna como um bando de perus» (RBP in Ant. Maria 16/10/79)
Se as tendas com carneiro com batatas são a atracção, o momento fundamental é a partida para o poder. A feira envolve assim o hipódromo onde cada partido aposta no seu jokey, mas, seja quem ganhe, o político fica sempre de pé, e o Zé... Já dizia Raphael que a política era uma senda escabrosa, por onde passam os políticos interrogando-se : «Ora porque será que ele cae (O Zé) e nós ficamos sempre em pé ?» (RBP, in Ant. Maria .23 10/79).
Entretanto, após tantas sátiras ao carneiro, que esta moda foi desaparecendo: «Então visinha, que há de novo? - Tudo de mal a peior ! O meu António até está arriscado ... a ir votar de graça! Uma coisa assim!» ( J,Costa in O Alfacinha 31/10/82)

Comments: Post a Comment



<< Home

This page is powered by Blogger. Isn't yours?