Friday, December 28, 2007
Is'raelidades - Humor Gráfico Israelita 1938-1993
Perante a noticia da criação do Museu do Humor Politico em israel, lembrei-me que talvez eu tenha ajudado em algo. Em 1993, em parceria com a Embaixada de israel em Lisboa desafiamos os cartoonistas israelitas a exporem trabalhos seus em Portugal. Acabamos por fazer uma exposição retrospectiva. Segundo disseram na altura era a primeira vez que se fazia esta historia do Humor Gráfico israelita em Exposição.
A Câmara Municipal de Lisboa apoiou logo a iniciativa e ela concretizou-se no Museu Raphael Bordallo Pinheiro em Lisboa.
Aqui mostro a capa do Catálogo, a imagem de apresentação feita pelo Presidente da associação dos Cartoonistas de israel e o meu texto de apresentação:
Humores e sacralidades
Por: Osvaldo Macedo de Sousa
Quando surgiu a ideia da realização de uma exposição sobre o humor israelita contemporâneo, das conversas com Daniel Zohar (Adido Cultural da Embaixada de Israel em Lisboa), de imediato se me colocaram dois pontos para o desenvolvimento do projecto.
O primeiro seria a hipótese de complementar a mostra, com uma introdução histórica, um caminho para melhor compreensão do desenvolvimento do humor neste jovem país. Conseguiu-se, graças ao empenho de Dan Pattir.
O segundo está ligado a uma divagação filosófico-humorístico, e portanto mais difícil. O curto prazo de tempo disponível, não permitiu encontrar um estudioso conceituado, que desenvolvesse apropriadamente o assunto. Por essa razão, e por ser algo que só a mim se colocou, aventurei-me a deambular sobre a questão: sendo Israel a terra prometida, a terra escolhida por Deus, cujos mandamentos fizeram surgir as três grandes religiões monoteístas do mundo ocidental - Judaica, Cristã e Islâmica; sendo terra santa para três vertentes de religiosidade, num país fundado num âmbito religioso, creio ser pertinente colocar a questão sobre o relaciona¬mento entre o humor (que existe e está patente nesta exposição) e o espírito religioso que rege este povo.
A dúvida, perante a minha formação cristã, é se o riso/humor é divino, ou satânico. Se é uma fórmula para triunfo do mal, ou se é uma parcela importante da inteligência dada por Deus ao Homem, criado à sua imagem e semelhança. Será o humor essa consciência, o poder sobre a terra pela razão e espírito superior que só Ele possui?
Um mundo sem humor, é um mundo negro de terror, de ditadura castradora da inteligência criativa, humana e portanto divina. Negro era o universo, quando Deus resolveu criar o Mundo. Será, que ao fazê-lo, lhe terá dado tal satisfação, que do seu coração brotou um trovão de gargalhada, rasgando os céus, e se fez luz? O humor é desde então uma luz nas trevas, uma luz no meio da vida quotidiana
A primeira ironia no Mundo, surgiu quando Deus, depois de criar o Céu e a Terra, todos os animais e plantas, plantou no meio do Éden uma árvore «virótica», infectada pela inveja, intriga, vergonha ... com todas as maldades do mundo, «Viu tudo o que fizera, e eis que estava muito bom» (Génesis).
Caim depressa aprendeu as artes da ironia, dando um precedente ao velho hábito judeu de responder a uma pergunta com outra pergunta: - «Onde está teu irmão Abel? - Acaso sou eu o guarda de meu irmão?»
Naturalmente estas improvisações não têm fundamen¬to científico, e são feitas com todo o respeito pelas sagradas escrituras, onde na realidade encontrei a definição real do Humor/ riso, que imperará durante séculos. Encontra-se na história de Abraão, Sara e Isaac.
Deus, após ter escolhido Abraão como Patriarca do seu povo, e pela impossibilidade de sua esposa dar filhos, quando estes tinham respectivamente cem e noventa anos, anuncia-lhe que terão um filho. Sara cai por terra a rir-se, incrédula, pois estava numa idade muito avançada para poder ter filhos. A rir-se retorquiu que se contasse aos outros que iria ter um filho, rir-se-iam dela. Então Deus ordenou a Abraão que este filho chamar-se-ia Isaac.
Noutra língua, esta história perde grande parte do seu conteúdo, já que a sua riqueza está num jogo de palavras que nunca é traduzido. Isaac em hebraico pertence ao verbo «Lyitzhak», rir, e como Sara se riu da ideia da velhice poder gerar um novo ser, Deus ordenou que este filho teria como nome de aquele que «Rir-se-á» (Yitzhak), da incredulidade, da velhice, da morte.
O pensamento humorístico, compreende em si a vida (de uma nova ideia), perante a velhice, a morte de um conceito, de um pensamento. A caducidade, a velhice de um facto, de uma ideia criticável é salva pelo riso regenerador, criativo, libertador. Durante toda a Antiguidade, e Idade Média, o realismo grotesco era considerado como o elemento regularizador, porque uma sociedade sem transgressão (calculada), é uma panela pronta a explodir. Assim o humor desde logo surge como essa força libertadora que da velhice refaz uma linha de sobrevivência de um povo; regenera a esperança de sobrevivência dos oprimidos; repõe a falibilidade dos poderosos ...
Através desta passagem nas sagradas escrituras, Deus dá ao seu povo um conceito fundamental da inteligência humana, rir-se da incredulidade perante o poder de Deus; rir-se de si mesmo para vencer a caducidade, a velhice, o passado, para renascer, vencer o futuro. Deu -lhe como que uma segunda oportunidade de sobrevivência, após o Homem a ter deixado no Éden.
Todas as Sagradas Escrituras Judaicas estão repletas de humor, através de jogos de palavras, de provérbios, parábolas, como ridicularização do vício e insensatez, como pedagogia, como lógica filosófica para compreensão entre o sagrado e o mundano.
Como diz um provérbio judaico - «ri dos teus próprios problemas, e nunca te faltará do que rir». Mas, também há aqueles que preferem glorificar Deus: «Quão sábios são os teus mandamentos. Senhor! Cada um deles se aplica a alguma pessoa que conheço.» Ou aqueles que se auto-glorificam: «- Como? Deus fez o Mundo inteiro em seis dias, e você demorou quatro semanas para fazer uma calça? - Tem razão, mas dê uma vista de olhos no Mundo, e depois dê uma olhadela nesta calça ... »
O Talmud (uma colecção de preceitos, comentários e narrativas) usa como «arma» o humor, porque como diz o estudioso Renato Mezan «O raciocínio talmúdico, frequentemen¬te sagaz e intrincado, contribui decisivamente para converter a mente do judeu num instrumento aguçado, capaz de sair airoso das situações mais difíceis. A analogia e a inferência, processos característicos da subtil dialéctica talmúdica guardam certa semelhança com uma condensação e ou deslocamento que, segundo Freud, constituem os mecanismos básicos da construção inconsciente. Recordemos que Freud sustenta que o humor, à semelhança dos sonhos e das neuroses, tem origem nestes mecanismos, considerando-os defesas do psiquismo contra tudo que lhes causa temor. A forma tradicional de pensar recebe, assim, novo conteúdo, demonstrando ser adequado para concretizar os objectivos da crítica humorística. Talvez boa parte da profundi¬dade, agudeza e ironia pertinentes ao humor judaico, provenham da capacidade adquirida pelos judeus através dos séculos no estudo do Talmud, no sentido de encontrar relações entre os factos e situações mais dispares. Tal procedimento oferece o efeito de surpresa essencial ao desenlace humorístico.»
O raciocínio Talmúdico é analítico-dedutivo (o Pilpud), usando a lógica como arte de oratória, como arte de demonstrar a razão, mesmo que esta pareça inverosímil.
Os Rabis, nos seus sermões utilizam também textos do Midrash (parábolas, por vezes com raciocínio humorístico), com o objectivo de tornar mais claro o sentido de uma passagem das escrituras, ou de algum preceito.
Como exemplo, leram-me esta história (escrita por volta do século IV), e que eu transcrevo por palavras minhas: estava um grupo de judeus reunidos com um Rabi, conversando sobre a questão da pureza nas coisas (elemento importante na religião judaica). Partiam do princípio de que a matéria-prima era pura, mas o utensílio, esse sim poderia receber impurezas no seu fabrico, como por exemplo a palha é pura, mas ao fazer-se um cesto com ela pode-se introduzir-lhe impurezas, e este seria então impuro. Um dos presentes pôs então a questão: «o que acontece se um elefante comer palha, e quando fizer as fezes sair um cesto. Este cesto é impuro?», O «impertinente» foi posto na rua. A questão da história narrada hoje, não continua a dialéctica da impureza, mas saber até que ponto está correcta a expulsão do indivíduo, ou até que ponto a irreverência do indivíduo pode ser encarada como uma intervenção jocosa, só para fazer piada, e então tem razão a expulsão; ou se ele queria saber mesmo o que o Rabi pensava do assunto, usando uma fórmula humorística, para ser mais directo ao raciocínio
O judaísmo defende o humor como disciplina pedagógica, onde a irreverência joga como balanço entre o respeito devido e intransigente às coisas, e a liberdade de inteligência, de criatividade, para cada um saber resolver a vida dentro das normas. A alegria deve sobreviver a tudo, apesar do pensamento nunca se distanciar totalmente da lembrança que o Templo foi destruído, e ainda não reconstruído («Na maior das minhas alegrias, lembrarei Jerusalém»). O humor deve conter em si o contraponto da mágoa. Só a alegria nos dá conhecimento da dor, e a dor o conhecimento da alegria. Deve-se desenvolver a arte do humor e da irreverência, sem nunca se esquecer o respeito que se deve ter a essa alegria, a essa dor.
A alegria chega a ser uma norma judaica, prescrita em festejos religiosos, onde esta é mesmo imposta. Houve em tempos idos uma celebração que tinha inclusive o nome de «Festa da Alegria», e da qual nasceu um ditado: «quem não viu a alegria na Festa, não sabe o que é a alegria».
Outra comemoração ligada ao humor e alegria, e que ainda hoje é celebrada, é o Purim. Realiza-se para comemorar o Decreto de Amã, o qual libertou o povo judaico do jugo Persa. Isto aconteceu graças a Esther e Mardoqueu, ficando Mardoqueu a simbolizar o bem, e Amã o mal. Pois deve-se comemorar esta festa na alegria total, ajudado com as bebidas alcoólicas, até ao ponto de já não se conseguir destrinçar entre o bendito Mardoqueu, e o maldito Amã. Nesta festa utilizam-se também as máscaras, e demais jogos humorísticos de convívio social, e de reinversão dos valores do Mundo.
A Festa, é um dos elementos fundamentais de todas as religiões ditas primitivas, e o judaísmo pode-se incorporar em parte neste âmbito. A sua base não surge como ruptura intelectual ou de revelação, mas como desenvolvimento evolutivo e natural do monoteísmo. Este Deus criado à sua imagem e semelhança, tanto sabe rir como castigar. A religião judaica desenvolveu-se numa estrutura aberta de diálogo com a evolução histórica, encerrada contudo numa estrutura de regras divinas, ou seja, irreverente mas respeitosa às regras impostas.
Não foi uma religião que se impôs, mas que germinou, e por isso sempre se pode rir de si própria. Esta talvez a grande diferença com as outras duas religiões monoteístas que nasceram neste médio oriente, tendo por base a história judaica, mas querendo se impor como uma nova revelação divina.
Assim, continuamos a encontrar o sistema humorístico na raiz do Cristianismo, porque Jesus, como judeu que era, usa as velhas fórmulas dos profetas e rabis - a metáfora e a parábola com componentes humorísticas: «É mais fácil passar um camelo pelo buraco de uma agulha, do que entrar um rico no reino de Deus» (um exemplo entre outros).
Os evangelistas, quando descrevem a vida de Jesus, fundamentam-se em preposições metafóricas, como a reversão do Mundo, um dos elementos característicos do realismo grotesco, que imperou como humor até à Idade Média. Como exemplo, ver um menino a ensinar os adultos (Jesus no templo a ensinar os Doutores), fazer metáforas de reinversão («os primeiros serão os últimos, e os últimos serão os primeiros»), ou deformar os valores de glória e humilhação, em que Jesus como Cristo, Salvador e Rei alcança a glória o triunfo para todos nós através da humilhação, escárnio, flagelação, crucificação como um bandido.
O Cristianismo usa então os contrários, não como um contra poder político, mas numa fórmula de fazer-valer a mensagem, de se sobrepor aos poderes de então. Mais tarde usará também este jogo de contrários, como metáfora de contra poder espiritual, e face a Deus estará o diabo, assim como para o poder face ao rei estará o bobo, e face aos políticos estarão os cartoonistas (7). Esta fórmula de irreverência e humor é uma regra regularizadora da sociedade para que esta tenha consciência de até onde vai a ordem e o interdito. Em judaísmo, até onde pode ir a irreverência e o respeito.
Como já referi, a Festa é uma estrutura comum a todas as religiões de índole natural, com estruturas simplistas e de raiz primitiva. O Cristianismo, surgindo como reformulação de um pensamento religioso, e desenvolvendo-se na base da pregação, da conquista de um espaço espiritual e geográfico, é de índole colonizadora. Onde se instalava procurava fazer desaparecer as estruturas religiosas aí existentes, cristianizando-as ou perseguin¬do-as. Dessa forma, desde muito cedo procura combater a Festa, a alegria, o humor. Assim, encontramos em Tertuliano, Cipriano, São João Crisóstomo ... pregadores de um cristianismo distante do riso, já que este é um elemento satânico. O cristão fundamenta a sua religiosidade no arrependimento, na dor para expiar os pecados.
Combate com muitos séculos de existência, o Cristianismo quer castrar a ideia humana de festa, de humor, de irreverência, sem nunca o conseguir, pois desde sempre a festa popular se soube sobrepor ao poder ditatorial e dogmático dos Senhores da Igreja.
Com a explosão do espírito reformista, esta questão extrema-se, levando os católicos a uma inquisição destruidora do espírito humano, e os reformistas a explorarem o humor como uma arma. O nascimento da caricatura gráfica moderna dá-se na guerra informativa e panfletária que os Reformistas desenvolveram contra Roma.
O cristianismo, apesar de ter podido desenvolver o humor como uma das suas armas de inteligência evangelizadora, preferiu as armas das espadas, das ameaças infernais, da tortura para calar os discordantes, em nome de Deus. O poder cristão viveu sob suspeição.
O humor subsistiu socialmente como uma necessidade humana, que ninguém pode calar, talvez por ser divina.
O Islão, apesar de ter utilizado o passado histórico judaico, de imediato se demarca das fórmulas humorísticas de explanação da mensagem. Por um lado, porque a língua árabe de então era ainda muito pobre de léxico, estava na fase de transformação para a escrita, não dando grandes possibilidades ao desenvolvimento de metáforas, alegorias ... Por outro, desde muito cedo o Islão tornou¬-se numa sequência de regras de vida e de guerra santa, de conquista de um espaço, tendo como dinamizador o poder temporal de Califas. O Islão triunfa na exegese da revelação realizada pelo próprio Profeta, e pelo Dogma, o uso ancestral que impede a irreverência, o humor. Por exemplo, na surata LXXX está escrito: « ... ai ver-se-á faces brilhantes, rindo e alegres, I .. '; são os infiéis.»
Por outro lado, é curioso também que o Islão ao ir procurar a sua raiz em Abraão, não o faz através de Isaac (aquele que Rir-se-á), o filho natural, mas em Ismael filho de uma escrava. Pode-se ler aqui uma metáfora da sua posição face ao Humor?
Naturalmente isto não quer dizer que o árabe não tenha humor, pois o que aqui escrevi limita-se apenas a uma leitura dos textos sagrados. Como em todas as filosofias políticas e religiosas há sempre aqueles fundamentalistas que levam as regras à bestialização dos comportamentos, e aqueles que liberalmente adaptam as ideias à vida.
Voltando ao povo judeu, este na sua diáspora desenvolveu o humor como uma arma de sobrevivência, rindo-se dos seus problemas. Indefeso perante a violência, respalda-se na sua superioridade de espírito, auto-consolando ao seu ego na afirmação de um direito à vida. O humor é uma auto-psicanálise contínua, razão pela qual a sua história de humor se pode descrever como do «Éden até ao Divã».
Interdita a figuração na religião judaica, este humor sempre foi oral, ou escrito. Desenvolvendo-se mais ou menos livremente, consoante as condições de violência, a Europa de leste, através da língua Idiche (misto de hebraico e alemão) será o maior centro de desenvolvimento do humor judaico até ao nosso século. Hoje, esse centro situa-se nos EUA onde 80% dos comediantes são judeus.
Tanto o judaísmo, como o Islão não permitem representações de animais e outros seres, como defesa contra as tendências da idolatria. Por seu lado, o cristianismo desde muito cedo desenvolveu a iconografia como utensílio religioso, seja na adoração de homens ditos «bons», como os santos, ligados a uma estética do belo; seja na exemplificação dos seres ditos «malditos», ligados estes a uma ideia de grotesco, de caricatural. Desenvolvem mesmo a caricatura histórica ao deformarem Jesus, transformando-o em ariano de cabelos louros e olhos azuis, e exagerando os traços judeus de Judas e outros «ímpios».
O triunfo do ocidentalismo de índole cristão no mundo, com a sua estrutura política, ligada à força de comunicação social, fez com que o humor gráfico se desenvolvesse em todo o planeta, e triunfasse como a arte da contemporaneidade.
Por essa razão, ao longo deste século encontramos a evolução de humor gráfico judaico (não muito diferente do humor universal), inclusive na Palestina e posteriormente Israel. Naturalmente também aqui se desenvolveu algum humor árabe. Esta exposição é a mostra dessa evolução, e ponto de situação da actualidade em Israel, onde se inclui o único humorista árabe a trabalhar na imprensa Judaica.
O desenvolvimento deste género humorístico deu-se no âmbito judaico, e contra ele. O estudioso Elon lamenta-se: «O tradicional humor judaico - com sua incisiva auto-ironia ¬desapareceu entre os Israelitas. Seu âmbito restringe-se agora a: governo e política.» Só que este é um mal generalizado, num mundo em crise ideológica, em crise cultural, onde a política se sobrepõe a tudo.
Desculpem-me esta ousadia, de ter divagado superfluamente por assunto tão sério. Queria entretanto agradecer ao Dr. Paulo Pereira / Câmara Municipal de Lisboa ter aceite esta nossa proposta de exposição. Agradecer a colaboração do Rabi Cohen, de Ana Araújo e demais pessoas que tornaram possível este evento.
Para terminar deixo a palavra ao pai de Israel, David Ben-Gurion com um exemplo de humor Israelita, e outro exemplo de humor judaico que prossegue a sua existência no resto do Mundo:
«Em Israel, para se ser realista, é preciso acreditar em milagres.» Um pai de família judeu, vira-se para a família, e promete - «Se tudo correr bem, vamos visitar Israel. Mas, se as coisas correrem mal, vamos viver para Israel.»
A Câmara Municipal de Lisboa apoiou logo a iniciativa e ela concretizou-se no Museu Raphael Bordallo Pinheiro em Lisboa.
Aqui mostro a capa do Catálogo, a imagem de apresentação feita pelo Presidente da associação dos Cartoonistas de israel e o meu texto de apresentação:
Humores e sacralidades
Por: Osvaldo Macedo de Sousa
Quando surgiu a ideia da realização de uma exposição sobre o humor israelita contemporâneo, das conversas com Daniel Zohar (Adido Cultural da Embaixada de Israel em Lisboa), de imediato se me colocaram dois pontos para o desenvolvimento do projecto.
O primeiro seria a hipótese de complementar a mostra, com uma introdução histórica, um caminho para melhor compreensão do desenvolvimento do humor neste jovem país. Conseguiu-se, graças ao empenho de Dan Pattir.
O segundo está ligado a uma divagação filosófico-humorístico, e portanto mais difícil. O curto prazo de tempo disponível, não permitiu encontrar um estudioso conceituado, que desenvolvesse apropriadamente o assunto. Por essa razão, e por ser algo que só a mim se colocou, aventurei-me a deambular sobre a questão: sendo Israel a terra prometida, a terra escolhida por Deus, cujos mandamentos fizeram surgir as três grandes religiões monoteístas do mundo ocidental - Judaica, Cristã e Islâmica; sendo terra santa para três vertentes de religiosidade, num país fundado num âmbito religioso, creio ser pertinente colocar a questão sobre o relaciona¬mento entre o humor (que existe e está patente nesta exposição) e o espírito religioso que rege este povo.
A dúvida, perante a minha formação cristã, é se o riso/humor é divino, ou satânico. Se é uma fórmula para triunfo do mal, ou se é uma parcela importante da inteligência dada por Deus ao Homem, criado à sua imagem e semelhança. Será o humor essa consciência, o poder sobre a terra pela razão e espírito superior que só Ele possui?
Um mundo sem humor, é um mundo negro de terror, de ditadura castradora da inteligência criativa, humana e portanto divina. Negro era o universo, quando Deus resolveu criar o Mundo. Será, que ao fazê-lo, lhe terá dado tal satisfação, que do seu coração brotou um trovão de gargalhada, rasgando os céus, e se fez luz? O humor é desde então uma luz nas trevas, uma luz no meio da vida quotidiana
A primeira ironia no Mundo, surgiu quando Deus, depois de criar o Céu e a Terra, todos os animais e plantas, plantou no meio do Éden uma árvore «virótica», infectada pela inveja, intriga, vergonha ... com todas as maldades do mundo, «Viu tudo o que fizera, e eis que estava muito bom» (Génesis).
Caim depressa aprendeu as artes da ironia, dando um precedente ao velho hábito judeu de responder a uma pergunta com outra pergunta: - «Onde está teu irmão Abel? - Acaso sou eu o guarda de meu irmão?»
Naturalmente estas improvisações não têm fundamen¬to científico, e são feitas com todo o respeito pelas sagradas escrituras, onde na realidade encontrei a definição real do Humor/ riso, que imperará durante séculos. Encontra-se na história de Abraão, Sara e Isaac.
Deus, após ter escolhido Abraão como Patriarca do seu povo, e pela impossibilidade de sua esposa dar filhos, quando estes tinham respectivamente cem e noventa anos, anuncia-lhe que terão um filho. Sara cai por terra a rir-se, incrédula, pois estava numa idade muito avançada para poder ter filhos. A rir-se retorquiu que se contasse aos outros que iria ter um filho, rir-se-iam dela. Então Deus ordenou a Abraão que este filho chamar-se-ia Isaac.
Noutra língua, esta história perde grande parte do seu conteúdo, já que a sua riqueza está num jogo de palavras que nunca é traduzido. Isaac em hebraico pertence ao verbo «Lyitzhak», rir, e como Sara se riu da ideia da velhice poder gerar um novo ser, Deus ordenou que este filho teria como nome de aquele que «Rir-se-á» (Yitzhak), da incredulidade, da velhice, da morte.
O pensamento humorístico, compreende em si a vida (de uma nova ideia), perante a velhice, a morte de um conceito, de um pensamento. A caducidade, a velhice de um facto, de uma ideia criticável é salva pelo riso regenerador, criativo, libertador. Durante toda a Antiguidade, e Idade Média, o realismo grotesco era considerado como o elemento regularizador, porque uma sociedade sem transgressão (calculada), é uma panela pronta a explodir. Assim o humor desde logo surge como essa força libertadora que da velhice refaz uma linha de sobrevivência de um povo; regenera a esperança de sobrevivência dos oprimidos; repõe a falibilidade dos poderosos ...
Através desta passagem nas sagradas escrituras, Deus dá ao seu povo um conceito fundamental da inteligência humana, rir-se da incredulidade perante o poder de Deus; rir-se de si mesmo para vencer a caducidade, a velhice, o passado, para renascer, vencer o futuro. Deu -lhe como que uma segunda oportunidade de sobrevivência, após o Homem a ter deixado no Éden.
Todas as Sagradas Escrituras Judaicas estão repletas de humor, através de jogos de palavras, de provérbios, parábolas, como ridicularização do vício e insensatez, como pedagogia, como lógica filosófica para compreensão entre o sagrado e o mundano.
Como diz um provérbio judaico - «ri dos teus próprios problemas, e nunca te faltará do que rir». Mas, também há aqueles que preferem glorificar Deus: «Quão sábios são os teus mandamentos. Senhor! Cada um deles se aplica a alguma pessoa que conheço.» Ou aqueles que se auto-glorificam: «- Como? Deus fez o Mundo inteiro em seis dias, e você demorou quatro semanas para fazer uma calça? - Tem razão, mas dê uma vista de olhos no Mundo, e depois dê uma olhadela nesta calça ... »
O Talmud (uma colecção de preceitos, comentários e narrativas) usa como «arma» o humor, porque como diz o estudioso Renato Mezan «O raciocínio talmúdico, frequentemen¬te sagaz e intrincado, contribui decisivamente para converter a mente do judeu num instrumento aguçado, capaz de sair airoso das situações mais difíceis. A analogia e a inferência, processos característicos da subtil dialéctica talmúdica guardam certa semelhança com uma condensação e ou deslocamento que, segundo Freud, constituem os mecanismos básicos da construção inconsciente. Recordemos que Freud sustenta que o humor, à semelhança dos sonhos e das neuroses, tem origem nestes mecanismos, considerando-os defesas do psiquismo contra tudo que lhes causa temor. A forma tradicional de pensar recebe, assim, novo conteúdo, demonstrando ser adequado para concretizar os objectivos da crítica humorística. Talvez boa parte da profundi¬dade, agudeza e ironia pertinentes ao humor judaico, provenham da capacidade adquirida pelos judeus através dos séculos no estudo do Talmud, no sentido de encontrar relações entre os factos e situações mais dispares. Tal procedimento oferece o efeito de surpresa essencial ao desenlace humorístico.»
O raciocínio Talmúdico é analítico-dedutivo (o Pilpud), usando a lógica como arte de oratória, como arte de demonstrar a razão, mesmo que esta pareça inverosímil.
Os Rabis, nos seus sermões utilizam também textos do Midrash (parábolas, por vezes com raciocínio humorístico), com o objectivo de tornar mais claro o sentido de uma passagem das escrituras, ou de algum preceito.
Como exemplo, leram-me esta história (escrita por volta do século IV), e que eu transcrevo por palavras minhas: estava um grupo de judeus reunidos com um Rabi, conversando sobre a questão da pureza nas coisas (elemento importante na religião judaica). Partiam do princípio de que a matéria-prima era pura, mas o utensílio, esse sim poderia receber impurezas no seu fabrico, como por exemplo a palha é pura, mas ao fazer-se um cesto com ela pode-se introduzir-lhe impurezas, e este seria então impuro. Um dos presentes pôs então a questão: «o que acontece se um elefante comer palha, e quando fizer as fezes sair um cesto. Este cesto é impuro?», O «impertinente» foi posto na rua. A questão da história narrada hoje, não continua a dialéctica da impureza, mas saber até que ponto está correcta a expulsão do indivíduo, ou até que ponto a irreverência do indivíduo pode ser encarada como uma intervenção jocosa, só para fazer piada, e então tem razão a expulsão; ou se ele queria saber mesmo o que o Rabi pensava do assunto, usando uma fórmula humorística, para ser mais directo ao raciocínio
O judaísmo defende o humor como disciplina pedagógica, onde a irreverência joga como balanço entre o respeito devido e intransigente às coisas, e a liberdade de inteligência, de criatividade, para cada um saber resolver a vida dentro das normas. A alegria deve sobreviver a tudo, apesar do pensamento nunca se distanciar totalmente da lembrança que o Templo foi destruído, e ainda não reconstruído («Na maior das minhas alegrias, lembrarei Jerusalém»). O humor deve conter em si o contraponto da mágoa. Só a alegria nos dá conhecimento da dor, e a dor o conhecimento da alegria. Deve-se desenvolver a arte do humor e da irreverência, sem nunca se esquecer o respeito que se deve ter a essa alegria, a essa dor.
A alegria chega a ser uma norma judaica, prescrita em festejos religiosos, onde esta é mesmo imposta. Houve em tempos idos uma celebração que tinha inclusive o nome de «Festa da Alegria», e da qual nasceu um ditado: «quem não viu a alegria na Festa, não sabe o que é a alegria».
Outra comemoração ligada ao humor e alegria, e que ainda hoje é celebrada, é o Purim. Realiza-se para comemorar o Decreto de Amã, o qual libertou o povo judaico do jugo Persa. Isto aconteceu graças a Esther e Mardoqueu, ficando Mardoqueu a simbolizar o bem, e Amã o mal. Pois deve-se comemorar esta festa na alegria total, ajudado com as bebidas alcoólicas, até ao ponto de já não se conseguir destrinçar entre o bendito Mardoqueu, e o maldito Amã. Nesta festa utilizam-se também as máscaras, e demais jogos humorísticos de convívio social, e de reinversão dos valores do Mundo.
A Festa, é um dos elementos fundamentais de todas as religiões ditas primitivas, e o judaísmo pode-se incorporar em parte neste âmbito. A sua base não surge como ruptura intelectual ou de revelação, mas como desenvolvimento evolutivo e natural do monoteísmo. Este Deus criado à sua imagem e semelhança, tanto sabe rir como castigar. A religião judaica desenvolveu-se numa estrutura aberta de diálogo com a evolução histórica, encerrada contudo numa estrutura de regras divinas, ou seja, irreverente mas respeitosa às regras impostas.
Não foi uma religião que se impôs, mas que germinou, e por isso sempre se pode rir de si própria. Esta talvez a grande diferença com as outras duas religiões monoteístas que nasceram neste médio oriente, tendo por base a história judaica, mas querendo se impor como uma nova revelação divina.
Assim, continuamos a encontrar o sistema humorístico na raiz do Cristianismo, porque Jesus, como judeu que era, usa as velhas fórmulas dos profetas e rabis - a metáfora e a parábola com componentes humorísticas: «É mais fácil passar um camelo pelo buraco de uma agulha, do que entrar um rico no reino de Deus» (um exemplo entre outros).
Os evangelistas, quando descrevem a vida de Jesus, fundamentam-se em preposições metafóricas, como a reversão do Mundo, um dos elementos característicos do realismo grotesco, que imperou como humor até à Idade Média. Como exemplo, ver um menino a ensinar os adultos (Jesus no templo a ensinar os Doutores), fazer metáforas de reinversão («os primeiros serão os últimos, e os últimos serão os primeiros»), ou deformar os valores de glória e humilhação, em que Jesus como Cristo, Salvador e Rei alcança a glória o triunfo para todos nós através da humilhação, escárnio, flagelação, crucificação como um bandido.
O Cristianismo usa então os contrários, não como um contra poder político, mas numa fórmula de fazer-valer a mensagem, de se sobrepor aos poderes de então. Mais tarde usará também este jogo de contrários, como metáfora de contra poder espiritual, e face a Deus estará o diabo, assim como para o poder face ao rei estará o bobo, e face aos políticos estarão os cartoonistas (7). Esta fórmula de irreverência e humor é uma regra regularizadora da sociedade para que esta tenha consciência de até onde vai a ordem e o interdito. Em judaísmo, até onde pode ir a irreverência e o respeito.
Como já referi, a Festa é uma estrutura comum a todas as religiões de índole natural, com estruturas simplistas e de raiz primitiva. O Cristianismo, surgindo como reformulação de um pensamento religioso, e desenvolvendo-se na base da pregação, da conquista de um espaço espiritual e geográfico, é de índole colonizadora. Onde se instalava procurava fazer desaparecer as estruturas religiosas aí existentes, cristianizando-as ou perseguin¬do-as. Dessa forma, desde muito cedo procura combater a Festa, a alegria, o humor. Assim, encontramos em Tertuliano, Cipriano, São João Crisóstomo ... pregadores de um cristianismo distante do riso, já que este é um elemento satânico. O cristão fundamenta a sua religiosidade no arrependimento, na dor para expiar os pecados.
Combate com muitos séculos de existência, o Cristianismo quer castrar a ideia humana de festa, de humor, de irreverência, sem nunca o conseguir, pois desde sempre a festa popular se soube sobrepor ao poder ditatorial e dogmático dos Senhores da Igreja.
Com a explosão do espírito reformista, esta questão extrema-se, levando os católicos a uma inquisição destruidora do espírito humano, e os reformistas a explorarem o humor como uma arma. O nascimento da caricatura gráfica moderna dá-se na guerra informativa e panfletária que os Reformistas desenvolveram contra Roma.
O cristianismo, apesar de ter podido desenvolver o humor como uma das suas armas de inteligência evangelizadora, preferiu as armas das espadas, das ameaças infernais, da tortura para calar os discordantes, em nome de Deus. O poder cristão viveu sob suspeição.
O humor subsistiu socialmente como uma necessidade humana, que ninguém pode calar, talvez por ser divina.
O Islão, apesar de ter utilizado o passado histórico judaico, de imediato se demarca das fórmulas humorísticas de explanação da mensagem. Por um lado, porque a língua árabe de então era ainda muito pobre de léxico, estava na fase de transformação para a escrita, não dando grandes possibilidades ao desenvolvimento de metáforas, alegorias ... Por outro, desde muito cedo o Islão tornou¬-se numa sequência de regras de vida e de guerra santa, de conquista de um espaço, tendo como dinamizador o poder temporal de Califas. O Islão triunfa na exegese da revelação realizada pelo próprio Profeta, e pelo Dogma, o uso ancestral que impede a irreverência, o humor. Por exemplo, na surata LXXX está escrito: « ... ai ver-se-á faces brilhantes, rindo e alegres, I .. '; são os infiéis.»
Por outro lado, é curioso também que o Islão ao ir procurar a sua raiz em Abraão, não o faz através de Isaac (aquele que Rir-se-á), o filho natural, mas em Ismael filho de uma escrava. Pode-se ler aqui uma metáfora da sua posição face ao Humor?
Naturalmente isto não quer dizer que o árabe não tenha humor, pois o que aqui escrevi limita-se apenas a uma leitura dos textos sagrados. Como em todas as filosofias políticas e religiosas há sempre aqueles fundamentalistas que levam as regras à bestialização dos comportamentos, e aqueles que liberalmente adaptam as ideias à vida.
Voltando ao povo judeu, este na sua diáspora desenvolveu o humor como uma arma de sobrevivência, rindo-se dos seus problemas. Indefeso perante a violência, respalda-se na sua superioridade de espírito, auto-consolando ao seu ego na afirmação de um direito à vida. O humor é uma auto-psicanálise contínua, razão pela qual a sua história de humor se pode descrever como do «Éden até ao Divã».
Interdita a figuração na religião judaica, este humor sempre foi oral, ou escrito. Desenvolvendo-se mais ou menos livremente, consoante as condições de violência, a Europa de leste, através da língua Idiche (misto de hebraico e alemão) será o maior centro de desenvolvimento do humor judaico até ao nosso século. Hoje, esse centro situa-se nos EUA onde 80% dos comediantes são judeus.
Tanto o judaísmo, como o Islão não permitem representações de animais e outros seres, como defesa contra as tendências da idolatria. Por seu lado, o cristianismo desde muito cedo desenvolveu a iconografia como utensílio religioso, seja na adoração de homens ditos «bons», como os santos, ligados a uma estética do belo; seja na exemplificação dos seres ditos «malditos», ligados estes a uma ideia de grotesco, de caricatural. Desenvolvem mesmo a caricatura histórica ao deformarem Jesus, transformando-o em ariano de cabelos louros e olhos azuis, e exagerando os traços judeus de Judas e outros «ímpios».
O triunfo do ocidentalismo de índole cristão no mundo, com a sua estrutura política, ligada à força de comunicação social, fez com que o humor gráfico se desenvolvesse em todo o planeta, e triunfasse como a arte da contemporaneidade.
Por essa razão, ao longo deste século encontramos a evolução de humor gráfico judaico (não muito diferente do humor universal), inclusive na Palestina e posteriormente Israel. Naturalmente também aqui se desenvolveu algum humor árabe. Esta exposição é a mostra dessa evolução, e ponto de situação da actualidade em Israel, onde se inclui o único humorista árabe a trabalhar na imprensa Judaica.
O desenvolvimento deste género humorístico deu-se no âmbito judaico, e contra ele. O estudioso Elon lamenta-se: «O tradicional humor judaico - com sua incisiva auto-ironia ¬desapareceu entre os Israelitas. Seu âmbito restringe-se agora a: governo e política.» Só que este é um mal generalizado, num mundo em crise ideológica, em crise cultural, onde a política se sobrepõe a tudo.
Desculpem-me esta ousadia, de ter divagado superfluamente por assunto tão sério. Queria entretanto agradecer ao Dr. Paulo Pereira / Câmara Municipal de Lisboa ter aceite esta nossa proposta de exposição. Agradecer a colaboração do Rabi Cohen, de Ana Araújo e demais pessoas que tornaram possível este evento.
Para terminar deixo a palavra ao pai de Israel, David Ben-Gurion com um exemplo de humor Israelita, e outro exemplo de humor judaico que prossegue a sua existência no resto do Mundo:
«Em Israel, para se ser realista, é preciso acreditar em milagres.» Um pai de família judeu, vira-se para a família, e promete - «Se tudo correr bem, vamos visitar Israel. Mas, se as coisas correrem mal, vamos viver para Israel.»