Wednesday, November 21, 2007

André Daix O autor de BD que se escondeu em Portugal

Por: Carlos Pessoa (in Público de 16.11.2007)

Um antigo colaboracionista francês, condenado à revelia a 20 anos de prisão, viveu com identidade falsa em Portugal e deixou obra na imprensa. Há quem fale do Céline da BD

Durante anos, um pequeno mistério intrigou os estudiosos portugueses de banda desenhada: quem era o Al. Maniez que assinou histórias em jornais diários e publicações de BD entre os anos 1940 e 1970?
Até à Primavera do ano passado, ninguém sabia responder. Mas a 17 de Maio de 2006 Leonardo de Sá recebe um mail do seu amigo francês Antoine Sausverd que vai mudar tudo: "Procuro informações sobre um desenhador chamado Albert(o) Maniez que publicou em Portugal desenhos na imprensa e em publicações infantis nos anos 1950 a 1970 (...). Sob este pseudónimo esconde-se de facto André Delachanal, dito André Daix, o pai do célebre Professeur Nimbus, que fugira de França com receio de sofrer represálias [acabaria por ser condenado à revelia a 20 anos de prisão]. Tinha colaborado activamente com os serviços de propaganda alemães em Paris durante a ocupação. Refugiou-se primeiro em Portugal, depois na América do Sul, antes de regressar à Península Ibérica."
Na mensagem, este especialista diz ter encontrado um filho de Daix que lhe "mostrou documentos assinados "Maniez"" e pergunta a Leonardo de Sá "se existem bandas desenhadas assinadas com este nome em alguma publicação portuguesa".
A revelação deixa Leonardo de Sá estupefacto, que responde a Sausverd nestes termos: "Eu sabia que era suposto Daix ter "passado" por Portugal, mas se as tuas indicações estão certas, acabas de resolver um dos "grandes" pequenos problemas de identidade relativo a desenhadores portugueses ou que trabalharam em Portugal!!"
A obra de Maniez era sobejamente conhecida pelo pequeno núcleo de investigadores de que Leonardo de Sá faz parte. Em contrapartida, nada se sabia do seu autor - a irregularidade da sua colaboração, com longos períodos de inexplicável ausência, era muito intrigante - e isso explica a excitação do português ao receber o mail do amigo.
Nas semanas seguintes Sausverd envia imagens digitalizadas de recortes de imprensa disponibilizados pelo filho de Daix. "Fui atrás das publicações e passei muito tempo na Biblioteca Nacional, pois havia muitos recortes de jornais portugueses sem data nem qualquer referência de publicação", diz Leonardo de Sá ao P2. Tudo servia para identificar a origem dos desenhos e a data de publicação: o tipo de letra, as indicações das notícias ou um anúncio no verso dos recortes - "pequenas coisas malucas que faziam avançar a identificação", diz.
Colaboração anónima
Um dos desenhos, publicado pelo jornal católico conservador A Voz em 1949, foi particularmente difícil de identificar porque constituiu a única colaboração conhecida de Daix-Maniez naquele media - um cartoon sobre Norton de Matos, candidato da oposição democrática nas eleições presidenciais desse ano.
Também não foi tarefa fácil estabelecer a colaboração do artista francês (assinava Cesaro) nas duas séries do Norte Infantil (1949-53), "um suplemento raríssimo" do Diário do Norte. Outros trabalhos, como as tiras humorísticas mudas da série Uma Aventura de cada Vez, publicadas no jornal ultra-católico Novidades, não ofereceram tanta dificuldade - esta colaboração, também assinada Cesaro, decorreu entre 1950 e 1953.
Na imprensa infantil da época, o autor identificava-se como Al. Maniez - "era uma assinatura nervosa, por vezes reduzida às iniciais, outras quase incompreensível", sublinha o investigador português - e isso facilitou a reconstituição da sua bibliografia portuguesa. Colabora com bandas desenhadas no jornal Diabrete entre 1948 e 1951. Publica uma adaptação em BD de Sem Família (Hector Malot) na Joaninha, suplemento infantil da revista feminina Modas & Bordados (1949-50). Em 1949 trabalha para a Editorial Alpha e Ómega e estabelece uma relação de amizade com Ernesto Baptista, proprietário da empresa. Em 1952 assina no Cavaleiro Andante uma adaptação à BD de A Túlipa Negra, de Alexandre Dumas.
Depois disso, volta a não se saber nada de Daix-Maniez até ao final dos anos 50, quando reaparece no Cavaleiro Andante (1959-60), Jornal do Exército (1962) e Novidades (1962-63).
Figura sem segredos até ao final da II Guerra Mundial, André Daix, nome artístico de André Delachanal, desapareceu de cena em 1945 antes de ser condenado por colaboração com os nazis. Entre as suas actividades para os alemães contam-se a elaboração de cartazes, brochuras anti-semitas e outros documentos ilustrados, que assina com as iniciais A.D ou ADL. Nos 30 anos seguintes pouco ou nada se sabe dele e as informações disponíveis nas principais obras de referência estão cheias de inexactidões. Sabia-se que esteve em Espanha, Portugal e América Latina, antes de regressar, em 1974, a França, onde acaba por morrer a 27 de Dezembro de 1976, com 75 anos.
Graças à investigação de Antoine Sausverd e Leonardo de Sá - um extenso artigo foi publicado nos dois últimos números (110 e 111) da revista francesa Collectionneur de Bandes Déssinées -, foi possível preencher as lacunas da biografia de Daix, em particular a fase portuguesa.
Daix sai de França em 1947 com uma identidade falsa. Passa a chamar-se Albert André Maniez, supostamente nascido em Péré, na região da Charente-Maritime, a 12 de Janeiro de 1902. A sua profissão é "representante". Até 1948 vive na Bélgica e na Suíça, obtendo a 20 de Setembro desse ano um visto de entrada para Portugal. Passa algumas semanas em Espanha, mas instala-se de vez em Lisboa em Novembro de 1948.
Regresso a casa
Um velho passaporte encontrado nos papéis do filho ajuda a estabelecer o percurso de Daix até Setembro de 1974, quando os acontecimentos políticos em Portugal, após a queda da ditadura, o levam a regressar a França. Sem poder trabalhar oficialmente em Portugal nem permanecer mais do que alguns meses, utiliza a sua identidade falsa para se inscrever na embaixada de França em Lisboa a 13 de Junho de 1949. Renova o passaporte em 1951 e 1953, mas em 1952 parte para a Colômbia, passando temporadas na Venezuela e Costa Rica. Durante aqueles anos trabalha em publicidade e colabora com BD e cartoons na imprensa daqueles países - assina com os pseudónimos Gislo e Alberto Maniez.
O criador de Nimbus permanece na América do Sul até ao final dos anos 50, quando regressa de novo a Portugal. João Baptista, filho do proprietário da Editorial Alpha e Ómega, lembra-se dele nessa época: "Era uma pessoa muito sociável, sempre sorridente e com grande espírito de humor. De cabelo grisalho, tinha muito bom aspecto e era muito culto. Vivia sozinho num rés-do-chão da Estrada de Benfica, falava perfeitamente português e era visita assídua de casa. O meu pai sabia tudo do passado dele e ajudou-o quando ele veio para Portugal."
Leonardo de Sá considera "muito importante" o período francês da sua obra: "Nos anos 1930 e 1940, as histórias mudas de Nimbus podiam ser lidas por toda a gente e só isso justificava o seu lugar na história da BD mundial. Nimbus era conhecido em todo o mundo e foi a única BD francesa daquele tempo a ser publicada nos EUA. Mas foi também utilizada pela propaganda nazi num desenho animado contra os heróis americanos."
Todavia, o percurso português de Daix-Maniez permite revelar outra dimensão da obra. "Para quem só conhecia a parte cómica, a obra dele é surpreendente, pois em Portugal ele fez histórias sérias e adaptou romances clássicos", sublinha o investigador. "Mas Daix devia querer tudo menos ser reconhecido e o facto de mudar frequentemente de país não o ajudou a ter uma carreira continuada e coerente."
O historiador de BD Jean-Claude Faur, citado por Sausverd e Sá, coloca Daix numa linha de grandes desenhadores "muito comprometidos à direita", como Saint-Ogan, Sennep ou Hergé. A opinião dos dois autores é diferente: "O destino do nosso desenhador lembra-nos mais o de um outro contemporâneo seu. É um escritor com uma obra igualmente ambivalente, simultaneamente autor de romances célebres, mas também dos piores panfletos anti-semitas. Delachanal (também dito Daix, Duhamel, Maniez, Gislo) é o Céline da banda desenhada."

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