Tuesday, December 12, 2006

Caricaturas Crónicas 25

O ZÉ P(R)0-VINHO
Por: Osvaldo Macedo de Sousa

Há imagens que se agarram à pele como sanguessugas, ou como impostos, e dificilmente se consegue ludibriá-las. Uma dessas imagens é a caricatura, ou a caricatura - símbolo.
A caricatura é na essência a síntese ligada à exageração, é a imagem do pensamento simplificado, é um código em arte. A caricatura, como expressão de um pensamento artístico, é uma filosofia, o símbolo supremo de crítica e economia de pensamento. É uma verdade embuçada no riso, riso aberto, ingénuo, e por vezes alarve de um Zé-ninguém.
O ser ninguém é ser tudo, é ser em potência todas as virtudes e defeitos de uma sociedade, é ser a incógnita, é ser o povo - o soberano de tudo e de nada.
O Zé-ninguém, ou Zé-povo num país de vinho, como Portugal, transformou-se em Zé-povo + vinho, ou seja. Zé-povinho nascido na colheita de 1875, da cepa bordaliana. Pelo menos é o que aparece nos anais da história: a 12 de Junho de 1875, Raphael Bordallo Pinheiro introduz no seu jornal «Lanterna Mágica» uma personagem representando o povo, ao qual pedem uma esmola para o Santo António - Fontes. A essa personagem deram o nome de Zé-Povinho, extorquido desde seu nascimento.
O Zé que, antes devia ser Manuel, por maioria democrática da toponímia portuguesa, é o símbolo deste povo marinheiro, que prefere terra firme, para a sua sesta; deste povo de esperteza saloia, que se deixa levar ingenuamente. E o símbolo do homem desconfiado, mas ingénuo, o revoltado, mas indiferente, o alegre mas saudoso, a síntese do povo português como simbologia caricatural gráfica.
A história dá o seu nascimento em 1875, mas, como todos os seres, tem os seus antepassados, pré-históricos. Os antepassados, desta figura, não falando no homem que muge, são vários, destacando-se, contudo dois exemplares: em 1856, Nogueira da Silva apresenta no seu «Jornal para Rir» o primeiro soberano popular - um pobre miserável de cajado na mão que afirma, no seu mutismo: «O Estado sou eu»: Esta é, pois, a nossa primeira representação num «boneco» caricatural como povo; como país, e como soberano da miséria do nosso reino. Nessa gravura a ambiguidade dilui os três significantes num só, ambiguidade que ainda hoje se mantêm até aos nossos dias, na figura do Zé-Povinho. Em 1875, no «Asmodeu», surge uma caricatura anónima («Receios ephemeros dos accionistas d' um caminho de ferro»), onde um «pré-zé-povinho» dorme na linha, no qual aparecem já vários elemento fisionómicos que o caracterizarão.
O Zé é criação de uma tipologia-povo, como invólucro que apesar de se falar, no seu esvaziamento interior (1), na sua pachorrice (2), tem repentes de expansão incontrolada (3) qual tufão na política. O seu espírito recalcado não é como o vinho espirituoso, é antes um processo «montanhês», que na sua rudeza gasosa se expande em breve espuma.
O vinho quando sobe à cabeça dá para ser grosseiro ou melancólico, e se por acaso não há vinho na cabeça dó Zé, há brejeirice e saudosismo nesta caricatura em símbolo.
(1) - «A propósito das cabeças do Zé-Povinho na exposição das Caldas: - O sôr Bordallo sempre é um homem habilidoso!... Realmente este mel retrato, está muito parecido mas, assim, de barro, oco e sem testa... - Exactamente meu Zé. É oco como tu, de barro frágil como a tua consciência, e não tem testa, ou se a tem encobri-a, por compaixão...» (Almeida e Silva in Charivari de 1l/2/1888)
(2) - «É mister trazer bem pago / Quem nos cai sobre o espinhaço: / o povo esportela o bago, / a tropa fá-lo em bagaço» Raphael B. Pinheiro, in «António Maria» de 28/8/1884)
(3) - «O povo tem uma expansibilidade revolucionária mil vezes superior à de certos gazes. Os tiranos tentam comprimi-lo. - Julgam-no bem preso n' um cofre, pesam-lhe em cima com toda a força do seu despotismo, cercam-no de tropas... - E vai ele um belo dia rebenta, e faz estilhaços de tudo quanto apanha» (Manuel Gustavo B.P., in «Pontos nos ii", de 6/3/1890).

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