Friday, June 23, 2006

Esse Ser Palhaço

ESSE SER PALHAÇO!

Por: Osvaldo Macedo de Sousa

O Homem é o animal político por excelência. Se muitas das características ditas dos políticos, como ser astuto, matreiro, sorrateiro, traiçoeiro... se encontram em animais, não passam de artifícios naturais de sobrevivência no equilíbrio do eco-sistema.
O Homem tem essas características, não por equilíbrio natural, mas por natural desequilíbrio. A humanidade atingiu um desenvolvimento de esperteza superior aos outros animais, e esse seu instinto batoteiro deu-lhe a primazia sobre a animalidade.
O mundo mais desequilibrado da mente doentia do Homem é o mundo dos conceitos, das palavras, das definições. Se ele cria uma definição, de imediato reorganizasse numa contra-definição; se ele concebe uma lei, de imediato a contra-argumentação engendra uma contra-lei... No Homo-Sapiens nada é definitivo, tudo transitário, segundo as conveniências do lado maligno do ser humano.
Palhaço é um desses conceitos de estereótipo e contra-estereótipo. Símbolo de poesia, de humor, de felicidade infantil... é usado no dia a dia como um insulto – Oh Palhaço ! – Deixa-te de ser Palhaço! - Acaba com essas palhaçadas e trabalha ! – Não passas de um Palhaço! .... “Com muito gosto”, deveríamos nós dizer!!!
É que Palhaço é uma nobre arte de entreter, de exorcizar a vida, e contudo insultam-no diariamente quando o confundem com os políticos, a política, o Parlamento, as "bestas" da sociedade. E o mais grave é que não é apenas o homem comum que bestializa o Palhaço. Os profissionais do humor, como os caricaturistas políticos, caem muitas vezes nesse erro. Dizer que Le Pen, Berlusconi, Bush... são palhaços, isso é crime de grave difamação a tão nobre gente do circo.
Esta má imagem do palhaço existe apenas por causa do lado perverso do ser humano. Ele ri do que tem medo e do mesmo modo procura exterminar aquilo que o desmascara perante o mundo dos seus pavores. Se o humor é essa poderosa arma que o Homem tem para enfrentar cara a cara qualquer medo, também é algo que o poder tem de destruir como única forma da sua sobrevivência.
Mas quem é esse ser, o Palhaço? As referências mais antigas não falam do homem das cavernas que divertia os colegas com suas momices caricaturais de um dia de caça... Mas não se esquecem os historiadores de dizer que existiam homens especializados em fazer rir na corte do faraó Dadkeri-Assi do Egipto no sec. XXV a.c.. Na realidade, em todas as épocas, em todas as culturas vamos encontrar indivíduos com essas funções, porque desde que o homem tomou consciência da sua inteligência, do seu entorno, que a comicidade se impôs como um dos seus privilégios. Esses ser foram sacralizados por uns, consagrados por outros, sempre ligados a um jogo lúdico de saúde mental da sociedade.
Também a sua designação tem variado, segundo as línguas, as culturas, os tempos. Por exemplo pode referir-se a França onde tanto surge como Badin (na Idade Média), como depois como Claune, Cascaduer, Pierrot... As tribos ameringias tinham os Contrary, Hano, Koyemsi... em Bali o Penasar, na China o Chou... em Itália tanto podem ser Buffon, Cabotin, Harlequim, Zani, Pagliacci...
Paglacci é o termo que as línguas da Península Ibérica adoptaram para a sua língua. A origem deste termo tem vários enredos; e um deles é que havia comediantes funâmbulos que escolheram para a feitura das suas vestimentas um tecido (riscado) que servia normalmente para fazer os colchões (Paglia), normalmente feitos de palha, e que para amortecer as quedas e outras tropelias mais violentas, eram acolchoados com palha. Daí surgiu a definição dos homens que se vestiam com Paglia, os Pagliacci, os Palhaços.
Outro investigador que li, diz que esse termo provem de uma palavra celta, que significava campónio, o que para o homem da cidade também significava desajeitado, rude, parolo, caricatural. Essa imagem do saloio leva-nos ao nosso Zé Povinho, também ele atreito a tropelias, a malabarismos de sobrevivência....
A evolução desta personagem viria a ser uma das peças fundamentais do Circo Moderno. E donde nasce o Circo ? Como tudo, tem antecedentes desde os primeiros passos da evolução da humanidade. E neste caso, este espectáculo, esta arte está interligada à necessidade de exibicionismo deste género animal. Mostrar as capacidades físicas, de habilidade, de ilusionismo fora do comum aos elementos da sociedade, sem razões sexuais de acasalamento ou de poder. É apenas pelo prazer de se exceder, e se alguns desenvolveram essas capacidades apenas para circuito interno, outros transformaram-nas em espectáculo, como fórmula de prestígio.
Os chineses, que se dizem inventores desse espectáculo de malabarismos, têm registos que nos levam ao século III a.c., ás "Batalhas contra Chi-chu", um confronto de acrobacias que o Imperador impôs como Festival anual a partir de 108 a.c.
Na Europa as raízes dessa diversão estão ligadas essencialmente à agilidade nas artes equestres. Os hipódromos gregos são as primeiras estruturas circenses, construídas para espectáculo. Os Jogos Olímpicos serão outra demonstração circense da antiga Grécia.
Claro que os Romanos não só adoptaram estes jogos circenses como o desenvolveram, associando-lhes um lado lúdico mais violento, pelo sangue e excentricidade. Aí eram apresentados não só animais exóticos, como homens de outras raças, outras culturas...
Aliando-se a curiosidade humana à necessidade de diversão, as Festas populares desenvolveram outro género de espectáculo. Menos grandioso, mas ambulante, grupos de "saltimbancos" andam de terra em terra, feira em feira, a exibirem fenómenos da natureza, habilidades incomuns, truques de ilusão, malabarismos... tendo muitas das vezes personagens cómicos como elo de ligação.
O louco, o Bobo... são personagens irreverentes que com momices ou a exploração de "deformações" físicas (anões, corcundas) sempre tiveram uma liberdade especial de expressão. O escárnio, o maldizer eram armas exploradas então na literatura; mas quando exercido em confronto directo com o público, provoca reacções negativas se for feito como crítica directa, podendo mesmo ser violento. Se essa crítica dor transmitida com comicidade, a violência explode em gargalhada, matizando esse lado negativo.
O Homem sempre necessitou de exorcizar as dificuldades da vida com essas irreverências, razão pela qual se desenvolveram uma série de ritos, sendo o Carnaval o mais duradoiro e conhecido. Nessas festas do "mundo invertido", não se poupava nem o sacro nem o profano, o poder ou o mero quotidiano, indo mesmo até ao além-túmulo, com as Danças Macabras.
Regressando à história breve do Circo. As primeiras notícias de espectáculos oficiais de funâmbulismo em Portugal são de 1596. E, no sec. XVIII, com a construção do Teatro do Salitre, encontramos a primeira estrutura fixa ligada às artes circenses.
A estrutura do Circo Moderno, apesar de ir recuperar todo o lado exótico das barracas de fenómenos das Feiras, vai renascer de um novo enquadramento nas exibições equestres.
É imputada ao inglês Philip Astley, nos anos 70 do sec. XVIII, essa reconversão de habilidades a cavalo num espectáculo, enriquecido com outros artistas acrobatas.
Entretanto havia um moço de estrebaria que era muito desajeitado e provocava frequentemente problemas no apoio aos espectáculos, para grande gáudio do público. Chamava-se Augusto, e o Director do espectáculo, ao ver que o moço poderia ser uma mais valia para o sucesso do show, explorou esse lado de comicidade. Assim nasceu o Palhaço do Circo Moderno.
O Circo conquistou o mundo pela sua magia de realização de coisas fenomenais, pelo seu lado de ilusão de liberdade, boémio e vagabundo, pela sua vertente lúdica de espectáculo, pela fantasia e sonho mistificados. Se o Circo parece ser uma porta de saída da rotina, é também a versão mais pequena da aventura. A ele está associado o medo de ir mais além, como as alturas, ou o confronto com animais.
Há um lado lúdico de perigo, e o público quando visita a tenda do Circo vive uma ansiedade, um medo que os artistas equilibristas, malabaristas caiam, se magoem, que o domador seja atacado... É o lado macabro do ser humano que deseja pôr o Homem à prova. Se ele vence é um triunfador, se perde, ganha-se pelo espectáculo do horror, regressando-se aos sentimentos dos Coliseus romanos.
Há também um lado erótico, sonhando muito jovem com as pernas das trapezistas, das partenaires, das domadoras... que vão o mais despido que os bons costumes permitam.
E finalmente há os palhaços que desconstroem a realidade, que abrem a janela do fantástico, levando o público adulto ou juvenil a fazerem um regresso à irreverência gaiata do riso salutar e livre de preconceitos. Com as gargalhadas, o público droga-se nas endorfinas necessárias para a regeneração da vida.
O Palhaço ao longo das épocas, foi ganhando com o passar dos anos algumas características e perdendo outras, ao mesmo tempo que se vão desenvolvendo outros "primos" em actividade paralela. Creio que nessa estrutura paralela se encaixam bem as figuras da Comédia del Arte, com especial destaque o triste Pierrot. No mesmo contexto estão as criações da comédia teatral e cinematográfica, com personagens de especial relevo como o Charlot, Totó, Bucha e Estica, Mr. Hulot ... para falar só em "criações" e não em nomes de comediantes.
Um dos momentos importantes na mistificação do Pierrot, e consequentemente do Palhaço, foi o Romantismo. O Homem não pode acreditar que possam existir indivíduos que encontrem no humor a resolução de todos os problemas, ninguém pode ser apenas feliz, só os idiotas, tontos ou loucos.
No dia em que a sociedade aceitar que o homem pode encontrar dentro de si a força, através do humor, para vencer todos os medos, para ultrapassar as contrariedades do quotidiano, desmoronam-se todas as muralhas, derrubam-se todos os ditadores, esvanecem-se todos os exércitos... Tem de existir infelicidade por detrás de qualquer máscara do riso. O Poder necessita da tristeza, do medo...
O Romantismo deu-lhe essa energia mística da tristeza para além da felicidade, inventando o Palhaço que ri por fora, que faz os outros felizes, quando no seu interior a alma chora na sua miséria humana. Essa imagem ficou magistralmente escrita na pauta da ópera "Paglacci" de Leoncavallo. Se essa tragicomédia lírica é um ícone do Palhaço romântico, a área do Tenor, "Vesti la giubba" é a conceptualização desse amor/dor, desse humor/desespero, dessa alegria/tristeza... dessa tragédia que é o dia a dia. A vida tem de existir sempre numa dualidade de confrontos.
O celebre palhaço russo Oleg Popov descreve deste modo a sua incarnação como Palhaço: "o meu objectivo é entrar na pele da personagem de um homem vulgar, que combine organicamente excentricidade e realismo".
Descobrimos então que existem dois mundos no Palhaço, o Ser e a Máscara.
O homem pode ter uma vida infeliz e ter a profissão de palhaço, ou pode ser um indivíduo naturalmente comediante que explora essa característica na arte de Palhaço. Contudo, para separar de forma visível o Ser Quotidiano do Ser Cómico, desenvolveu-se, para além da indumentária específica, a máscara em pintura.
Se a máscara é um dos elementos identificadores, não é único. Existem várias componentes que o especificam, podendo co-habitarem, ou individualizarem-se. São eles: os gestos, a linguagem, a indumentária e a máscara.
O Cómico do gesto pode viver em dois segmentos. Por um lado os gestos burlescos, exagerados, como formas de andar, gestualização muito aberta, quedas, bastonadas e outros golpes pouco usuais. Não só a incongruência deles, assim como a repetição sequencial são artifícios deste tipo de comicidade. O grotesco destes movimentos está associado a um certo mundo cómico-carinhoso da infância, como o desequilíbrio dos primeiros passos, as quedas, o gozo da aprendizagem. O Palhaço, normalmente, após vários fracassos acaba por conseguir os seus intuitos, consegue ultrapassar as dificuldades através de alguma fantasia mágica.
O cómico do gesto também pode ser encarado por uma estrutura menos grotesca, mais mágica, a mímica. Esta é a arte do silêncio, é a comédia das irrealidades onde o público é obrigado a entrar no universo da fantasia, cruzando a realidade com o imaginário, criando novas relações entre os factos e as virtualidades. Vence então o cómico de situação, com predomínio da incongruência na lentidão dos gestos confrontados com o vazio do mundo.
Mas se existe um vazio momentâneo, o Mimo, o Palhaço preenche-o com a poesia do riso, com o silêncio do humor, ou com as palavras da irreverência.
A palavra nem sempre é usada, já que cria barreiras com o público de outras linguagens, de outras culturas. Mas quando se utiliza o cómico da palavra, usa-se o sistema de contraste, ou seja os disparates linguísticos: palavras mal pronunciadas ou mal utilizadas, exageros de pronúncia, emprego de termos com duplo sentido ou de oposição à acção...
Falámos já dos três principais processos básicos do cómico da representação. O cómico do gesto, da situação e da palavra. Associados a estes estão os adereços as indumentárias.
Os adereços e cenografias são exageradas no tamanho, incongruentes na função, o que nos leva aos artifícios de transformação do normal em humorístico. São eles a Deformação, a Incongruência, a Exageração, a Repetição e o Contraste.
Se já encontrámos e falámos dos primeiros quatro nos processos básicos do cómico, o Contraste, apesar de também estar presente nos gestos, na linguagem, surge com maior força no âmbito da imagem, na forma de apresentação, vestuário, máscara.
O Palhaço mais comum ou popular é o Augusto, o trapalhão que se evidencia pelos seus farrapos de múltiplas cores, os sapatos exagerados, o nariz vermelho. Ele contrasta irremediavelmente com a normalidade, mas mesmo dentro das incongruências circenses ele contrasta com outro Palhaço, o dito Cara Branca, o Palhaço Rico.
A diferença entre o pobre e o Rico não é só o contraste de aparências, mas também de comportamento. O Palhaço Branco veste roupa bem costurada, com aspecto distinto, apesar de não normal. Calças de balão, tecidos brilhantes, sapatilhas de ballet contrastam com o negligente Augusto. Tem bons modos, apela para a sua inteligência, em contraste com a esperteza do Augusto. É ele que normalmente conduz os diálogos e que põe a ridículo o comportamento do outro. Ele é o poder, é o representante das censuras castradoras da sociedade, da falsidade das aparências. Em contrapartida o Augusto, nas suas tentativas desajeitadas, na imperfeição da sua linguagem e dos seus gestos, é a rebelião, a liberdade que, depois de muitas quedas, muita pancada, consegue sempre triunfar. É o patinho feio a quem o público concede o prazer de amar e proteger com o seu riso.
Mas se há indumentárias diferentes, também há o caso da máscara, que é um jogo de reencarnações no outro eu, a passagem onírica para o mundo da liberdade da fantasia. Pela máscara se encarna a personagem, se veste a pele do novo ser.
A máscara do Palhaço Rico é essencialmente branca, sem nariz vermelho, cores moderadas. A do Augusto, por contraste, evidencia os olhos e a boca com grandes manchas brancas complementadas com outras cores que evidencia o grotesco da expressão. Neste caso o nariz vermelho é fundamental. (A importância desta máscara como caracterizadora do personagem, aliada a uma constante originalidade, fez com que cada palhaço procurasse uma identidade própria, e nunca repetindo a maquillage de outro artistas. Para isso existe um banco de dados com as diferentes máscaras usadas pelos caricaturistas de todo o mundo.)
Dessa forma, em Contraste enfrentam o mundo, o público. Simbolizam, então, a coragem de enfrentar o quotidiano, com todas as incertezas, com todas as hipóteses de errar, de ser ridículo, mas com perseverança grotesca. Com a simplicidade da ingenuidade, ele altera a verdade, fazendo-a poesia, transformando o desejo em realidade. O Palhaço não tem vergonha de ser humano, de se enganar, de falhar à primeira, à segunda... porque ele acredita que conseguirá e, pelo burlesco, pelo grotesco que todos nós somos, faz-nos acreditar que talvez nós também consigamos.
Esse ser Palhaço é o sonho de um dia, pelo humor, vencermos todos os medos, todas as agruras, vencer todas as convenções e mostrar que ser ridículo não é um pecado quando a humanidade vence. Podem rir-se dele, que ele não se importa, já que ele está acima de quem se ri. É ele que tem o poder de fazer uma flor chorar, é ele que tem um coração do tamanho do mundo...
Por isso, nos últimos tempos, o Palhaço tem saído do Circo e investido em novos campos. Simbolizados pelo nariz vermelho, que deixam como testemunho de esperança, como uma porta aberta para o sonho do futuro, encontramos os "Palhaços sem Fronteiras", "Os Médicos Palhaços"... ONGs que nas ruas, nos campos de refugiados, nos Hospitais, nos dão uma nova visão da humanidade. Eles usam o humor como pedagogia, como psicanálise, como diálogo onde na maior parte das vezes só se encontra medo, ódio, dor e morte.
Naturalmente desvalorizados pelas instâncias oficiais, cinzentas, economicistas, globalistas, Sado-mazoquistas, estes Palhaços são a esperança a passear-se entre o terror, a vida contemporânea.
Como já escrevi em vários sítios, o humor é um excelente anti-depressivo, um conceituado analgésico, um importante factor imunológico, um exercício aeróbico. Para além da ginasticação dos músculos, da libertação de químicos naturais no corpo, é um "desentupidor" de mentalidades. Por tudo isto, é um perigo para o poder político, poder económico, poder...
Esta exposição não é nenhum perigo, antes uma humilde homenagem a esse ser, Palhaço tão amado e tão desprotegido, que já nos fez rir, sonhar muitas vezes. Graças à colaboração generosa de setenta humoristas gráficos de trinta e três países, podemos fazer uma viagem nesse mundo de irreverências.
Símbolo de liberdade, símbolo do nosso ser grotesco, sabemos que enquanto houver um Palhaço vivo na Terra, a humanidade tem hipóteses de sobrevivência.




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