Monday, December 21, 2020
Caricaturas Crónicas: «MELOMANIAS CARICATURAIS» por Osvaldo Macedo de Sousa (in Diário de Notícias de 23/11/1986)
Enquanto o Feio é o inverso do Belo, o Bel-canto não é o oposto da desafinação, nem a ópera a Caricatura do pregão. O Zé prefere o segundo, rindo-se do primeiro, contudo não se ri do político “Falstaf” que é a caricatura da oratória, e não da cantata, porque quem costuma fazer «cantar» é a Polícia.
Se o
local de reunião dos políticos é «para-lamentar», a reunião dos Zés é o
«lamento por», enquanto que a sala de ópera não era apenas «para-canto», mas
também para passeio de jóias e peles, tendo como fundo os gorgolejares das
divas.
Nasceu
da burguesia para a burguesia, e aí triunfou com os dandismos
melómano-políticos, numa simbiose de “high-life” e “ventil”, onde a sociedade
procurava distinguir os «mais bem vestidos», e os políticos dos Partidos que
lhe assegurassem a reforma.
O
Teatro de S. Carlos, o nosso lírico da capital exerceu esse misto de casa de
música, e de ascensor social, que quanto mais se sobe (nas Ordens), se desce na
categoria (sócio-monetária), sendo por isso conveniente, neste Teatro, estar
sempre na mó de baixo.
Cada
ordem é uma camada de tipos, como tipos era a fauna que se cristalizou nesta
visão caricatural: «a Viscondessa (ou a namoradeira); o Claquer («um herói» do
aplauso); a Menina das 100 contos de renda (de peso menor que a sua fortuna,
acompanhada sempre por um poeta á procura de editor); o Diletante Velho (sempre
da oposição conservadora e saudosista); o Brasileiro Soares (que adormece
facilmente, mas que desperta nos momentos fundamentais); a Srª Condessa (o
orgulho da raça); o Marialva (presente nas noites de pateada); o Provinciano
(que nada compreende deste mundo, mas está sempre fascinado); o Crítico dos
Corredores... etc.» (Julião Machado in «Comédia Portuguesa» de 10/11/1888).
Passam os tempos, mudam-se a os nomes, nem sempre se alteraram as vontades,
Vontade
de aí entrar e ouvir música tem existido, mas nem sempre é fácil seguir as suas
as modas, nem sempre é possível alugar um fato condigno (hoje já existe a
liberalização do traje, não necessitando de se mostrar as naftalinas). Para
solucionar essa questão, a primeira caricatura portuguesa sobre o Teatro de S.
Carlos (Cecília, in «Patriota», 17/2/1848), propunha sacos de serapilheira como
traje unificador e democrático.
No
ano seguinte (10/11/1849) propunha-se a armadura como traje, visto nem sempre
ser pacífica a visão de um espectáculo lírico, pois na altura ainda o futebol
não catalizava as frustrações: «Para ficarem mais em carácter, os diletantes
vão trocar a casaca pelos trajes do Bairro Alto; cochilla de cinco estrelinhas
em lugar de claque d'um estalo só e rolo adesivo em vez de violetas na
boutauniére.» (Raphael B. Pinheiro, in «Pontos nos ii», 26/11/1885)
Lutas,
querelas, partidarismos fizeram a história deste teatro lírico, em que o
«Rigoleto» vê a sua filha política, violada pelo Poder; em que «Aida» desafia
Radamés «à volta» a abandonar a política; em que a «Madame Butterfly» se
suicida por deficit no orçamento; a «Tosca» crê ter derrubado o regime com um
simples gesto teatral; e «Sonâmbulos» andamos todos nós, nas eleições... porque
por cada «dó de peito» nos sufoca um imposto, por cada «duo amoroso» se
convence o Zé no voto, por cada «ária» se impõe um primeiro-ministro. A
política é um libreto operático em constante adaptação, em jogos de coluratura
de bel-canto, de diletantismo, de disputas pelo estrelato, a constante procura
do papel principal.
O São
Carlos era (ou ainda é?) um espectáculo de peles e cachuchos, onde a peixeira
da primeira ordem nem sempre «gosta como o tenor apregoa» (Jorge Barradas, in
Riso da Vitória de 30/1/1920). O São Carlos é um espectáculo onde, nos
intervalos, se ouve música e canto, em entremezes de grandes compositores.
Neste
mundo de melomania caricatural, onde o fantasma da Mimi domina os bastidores,
os intervalos também são importantes, porque enquanto vão e vêm as jóias,
descansam os ouvidos.