Wednesday, May 05, 2021
«Christiano Cruz do Mito à realidade» por Osvaldo Macedo de Sousa in «Artes Plásticas» nº19, Agosto 1992
A arte portuguesa é, em si, um mito. À sua volta, a história alastrou o esquecimento dos desaparecidos ou a genialidade dos amigos, todos emvoltos em nevoeiro místico-sabastianista.
É certo que os críticos e Galeristas da actualidade, têm vendido muito gato por lebre, têm imposto nas exposições internacionais, efémero artificios de criatividade, mas a história (que também é cega), talves um dia se corrija.
Quanto ao passado, nos últimos tempos, temos vindo a corrigir erros, retirando do esquecimento nomes, descobrindo obras… Como consequência já há «peritos» que se guerreiam, afirmando que este é melhor que A.S.C. ou que J.A.N., que aquele merece uma cotaçao superior na bolsa de valores… e até já há falsificadores. Tudo isto vem a demonstrar que a arte portuguesa e a sua história deixou a letargia, para viver a contemporaneidade.
Um nome esquecido, foi Christiano Shepard Cruz que, envolto nu mito. Dormia no sub-consciente modernista. Um nome e uma obra perdidos mo sótão da historia, de familiares e amigos.
As primeiras noticias que tive dele (á que fui eu que o redescobri e publiquei os primeiros artigos na contemporaneidade cuja investigação me foi roubada e publicada em livro por outro investigador), relatavam a sua existência como um cometa que, vivendo com os primeiros modernistas da decada de dez, se tinha «suicidade» artisticamente em 1920, vivendo posteriormente 31 anos em auto-exílio e castração criativa, nunca mais pegando num pincel ou lápis. Esta era a versão oficial, que enriquecia o mito moernista d morte prematura de Sousa Cardoso e do suicídio e destruição da obra de Snta-Rita Pintor.
Uma sgunda ou terceira versão, nascida dos testemunhos familiares e das investigações já o apresenta como um dos primeiros modernistas, mas tmabém como o primeiro dos primeiros, nõ só por ter sido um dos introdutores desse modernismo, como um dos líderes dessa geração - «a este homem demos nós, sem prévia combinação, o lugar primeiro» (Jorge Barradas).
Apesar desse lugar ímpar, entre os seus pares (alguns deles mais velhos que ele), a sua vida não deixria de ser uma frustração constante. A amargura perante o provincianismo cultural português e a impossibilidade de uma vida «digna», estável como artista, levá-lo-ia à ruptura, e esse afastamento brusco que inspiraria o mito.
Por detrás dessa ruptura, com um real afastamento das artes após a decada d vinte e o triunfo estético nessa decada de ouro de irreverencia, esta o Homem-Artista, um ser que descobrimos num eterno conflito interior ou neurastenia criativa.
Ele próprio nos dá os seus primeiros dados biográficos e diagnostica de imediato a neuraztenia: «como notas biográficas, a mais interessante, a de maior relevo, é a minha certidão de baptismo, a outra, a segunda, pelo caminho que as coisas vão tomando, deverá ser a minha certidão de óbito. Assim, sempre te direi que nasci a 6 de maio de 1892 na cidade de Leiria, tendo-me irrompido simultâneamente com o sarampo, a neurastenia».
Filho de Berta Augier Shepard e de Alfredo Eduardo Cruz, descobrimos na sua infância as «razões» dessa neurastenia, desse conflito que o acompanhará toda a vida. Para mim, ele herdou esse conflito de seu pai, um dilema interior que seria absorvido através da educação e vivencia.
O seu pai era militar da monarquia, como tal um soldado que obedecia cegamente ao rei e ao regime. Seu pai era um republicano por opçao ideológica, como tal um subversivo ao regime e ao rei. A ordem que ele respeitava e impunha como norma de vida, colidia com a irreverenia revolucía do rpublicano. Esste confronto interno, era não só vivido por ele próprio, entre o profissional e o homem, como pela familia, onde por um lado se impunha, como educação, a ordem, a disciplina, por outro a instigação à irreverencia, como tonico da saúde mental das crianças.
Christiano Cruz ficará para sempre marcado por esta dualidade – ordem e irreverência, que se reflecte na vida e na obra. A vida seria dominada pelo ordem, ou seja a obediência quase cega aos pais; ou seja a imposição de dar o equilibrio económico e social à familia criada; ou seja a obediência quase cega aos seus superiores profissionais, que era o Estado, cuja ordem levá-lo-ia à morte. A obra seria dominada pela irreverência que o conduziria ao modernismo, que o levaria a desafiar os mestres, que o instigaria a criar movimentos artisticos, que o faria sonhar em viagens pela europa… A ordem refriaria sempre estes impulsos, impondo decoro no ataque aos mestres, moderação nas iniciativas, entraves nas viagens e para segurança o cumprimento da vontade paternal com a concretização de um curso academico superior.
Tendo iniciado os seus rabiscos sob influencia dos Bordallo Pinheiro 3 outros artistas do inciio do século, em 1908, na compnahia de Fernando Correia Dias e Alvaro Cerveira Pinto (seguindo-se depois Luis Philipe Rodriges com desaparecimento de Cerveira Pinto por morte prematura), em Coimbra, descobrirá a síntese, a irreverência satírica e caustica, levando-o a uma «abstração figurativa», impondo um novo caminho para a arte portuguesa.
Antes dele, já Leal da Câmara e Celso Hermínio haviam explorado o traço caligráfico sintetico, explorado o expressionismo, numa transição do naturalismo para o modernismo. Este trio coimbrão levaria esse experimentalismo à ruptura estética, colocando-se em paralelo às experiencias que já se desenvolviam na Alemanaha e França. Dos três, seria Christiano quem levaria mais longe esse trabalho (Correia Dias prosseguirá esse caminho depois no Brasil) e essa teoria de irreverencia plástica, mudando-se para Lisboa, onde viveria como evangelizador das novas gerações que procuravam uma nova linguagem para a nova republica, para os novos ventos da contemporaneidade.
Em Lisboa, a partir de finais de 1910, não só imporia os seus trabalhos na imprensa, como exemplos do novo caminho, como criaria à sua volta um núcleo de modernismo importante, como é o caso de Almada Negreiros (seu discipulo directo, cuja influenia já se tinha iniciado aquando da breve estadia de Negreiros em Coimbra), Jorge Barradas, António Soares…
Em 1911, com Stuart Carvalhais lança a ideia de uma Sociedade de Humoristas (imitando os franceses que já o tinham feito alguns anos antes), com vários projectos, destacando-se um Salão anual. Aqui, não foram apenas os modernistas que existiram (que inclusive ainda eram poucos), antes foi dominado pela maioria conservadora, contudo, nos seus Salões de Humoristas de 12 e 13, e depois no Porto de 15 e 16, o modernismo possível foi-se impondo.
Não era facil evangelizar o gosto «bota de elástio» do portugues, no ambito do publico, do poder e até do artista, o que desesperaria cada vez mais Christiano Cruz. Os desenhos de imprensa vão desaparecendo, perante o fracasoo dos objectivos, ou sej o espicaçar a sociedade através da sátira. Em sua substituição aparece a pintura, numa busca estética profunda, de técnicas, enquadramentos, perspecivas… trazendo para a arte portuguesa o expressionismo fauvista.
A ordem entretanto tinha-lhe imposto o curso de Veterinária (curso escolhido pelo pai), assim como em 1917 lhe imporá a guerra, na Frente francesa como veterinário miliciano. Essa viagem ao estrangeiro dar-lhe –á uma nova visão da vida (ou da morte), ainda mais neurasténica. Visitará Paris, que sob os escombros o desiludirá. Fará alguns trabalhos de pintura, muitos esboços mas cada vez mais o fascínio pel carreira artística se vai desvanecendo.
De novo em Portugal, em 1918, faz a defesa de tese terminando assim o curso de Veterinária, impondo-se como um caminho seguro de sobrevivencia. Porém, a irreverência puxava-o ainda para a carreira artistica e tudo servia para iludir para um futuro possivel – uma capa de um livro, um concurso para um cartaz… Foi precisamente um destes concursos que o levaria alançar a toalha ao ribgue. Preparando-se para concorrer,mostrou os croquis a um amigo que o desaconselhoua faze-lo, o qual usou essas mesmas ideias e conquistou o prémio. Esta traição, o ambiente de selva, este vale tudo para sobreviver no dificil mundo das ates em Portugal chocaram irremediavelmente com o seu sentido de honra, ordem. Em 1920, mais uma vez aconselhdo pelo pai, partiria para Lourenço Marques para estudar as possibilidades de carreira veterinária, voltando apenas em 1921 para se casar e levar a sua esposa, ficando a viver ai até à morte.
A ordem interior é exigente, gosta de perfeição, do profissionalismo… e o amadorismo é uma concessao intolerável, Por essa razão Christiano Cruz quando resolveu optar pela Veterinária, abandonou definitivamente a ideia de uma carreira artistica, ou seja abandonou a arte.
Do seu lápis, nos 31 anos
restantes, apenas surgiria uma dezena de obras, um retrato da sua primeira
filha, um ou outro desenho, uma pintura (de temática africana) para
participação numa exposição de artistas portugueses em Lourenço Marques na
decada de trinta, um friso decorativo para um quarta das filhas e um
auto-retrato pouco antes da sua morte. A ordem é exigente e mesmo que não
gostasse especialmente da Veterinária, impunha-se que fosse o melhor possivel
na sua profissão e dessa forma se viria a distinguir, não só como médico, mas
tambem como investigador.
Em 1951, a ordem «castigou-o» pla irreverencia de não ser filiado ao Partido, por não defender publicamente o poder… e transferiu-o para Angola, provincia do Bié, afastando-o da familia. Apesar do médico de familia o desaconselhar, já que como gaseado da primeira grande guerra não resistiria a humidade e altitude do planalto do Bié, caminhou para a morte, porque a ordem mandava. Apenas sobreviveu seis meses em Angola, morrendo em novembro de 1951.
A sua presença e obra ficaram para sempre marcadas na memória dos seus companheiros, que por várias vezes deram testemunho do apreço e admiração que tinham por Christiano Cruz. Depois do ento desaparecimento destes, o silêncio foi empoeirando a memoria.
A ordem foi finalmente subvertida e a obra está de novo a mostrar a sua irreverência, trazendo à luz dos historiedores da actualidade, a magnitude dessas +inceladas, a originalidade da sua concepção estética, a subtileza do seu traço.