Saturday, December 01, 2007

HISTÓRIA da arte DA CARICATURA de imprensa EM PORTUGAL (parte 3)

Por: Osvaldo Macedo de Sousa

O NASCIMENTO DA HISTÓRIA DA CARICATURA DE IMPRENSA EM PORTUGAL

Não sabemos a data certa da primeira caricatura impressa de autoria totalmente nacional. Ninguem gosta de se apresentar sem saber os anos certos da sua existência. Quem foi o primeiro ? Ninguêm gosta de se apresentar com pai desconhecido. Já encontramos varios nomes de gravadores que fizeram sátira, como João Baptista Ribeiro, um tal Filgueiras, um Flora, um Sendim... Contudo estas gravuras ou não passávam de meras ilustrações para embelezar a página, e tinham fraco indice satírico, ou não estavam inseridas no jomal, na gazeta. Estas últimas, verdadeiras irreverências gráfico-satíricas eram, normalmente folhas volantes, trabalhos esporádicos que surgiam de vez em quando para pontapear algum político, ou cacique num momento certo. Neste período destaca-se o “Ramalhete” (1837/39), o “Óculo” (1847), e o "Procurador dos Povos" (1838/1848) o periódico que mais gravuras satiricas publicou antes de 47.
Tal como na história da imprensa, os investigadores têm co1ocado os seguintes requisitos para marcar a data do seu nascimento: regularidade na sua publicação; serem trabalhos noticiosos ligados aos acontecimentos do dia a dia, e serem de autoria reconhecida.
Todas estas caracteristicas se reúnem no ano de 1847, no Suplemento Burlesco de "0 Patriota" (1847/1853).
"0 Patriota", jomal de tendência ‘Setembrista’, propriedade de Leonel Tavares, era porta-voz de uma facção mais radical, que utilizava no jomal todas as armas para veicular as suas ideias, e destuir os adversários. Iniciou a sua publicação em 1843. A 12 de Agosto de 1847 (ao numero 954) acrescenta-lhe um "Supplemento Burlesco", com tamanho de papel diferente. Era um jomal dentro do jomal, um com função mais noticiosa, e outra mais interventiva, irreverente e critica. Segundo esclarecimento no Patriota do dia seguinte eram mesmo dois jornais diferentes, num só: «A redacção do Patriota declara que é absolutamente estranha e alheia aos suplementos que ontem se começaram a publicar com este jornal; são outras as pessoas que escrevem para o Suplemento». Cuta a crer nisso, parecendo mais uma podição de protecção contra investida de censores que pudessem penalizar o jornal pela irreverência do Suplemento, contudo, mais tarde terão que vir defender-se, afirmando o contrário, como se pode ver em citação posterior. De todas as formas o ideario era o mesmo, como se pode 1er nesse primeiro Suplemento ao número 954 do Patriota:
«Cabeçalho em Forma de Profissao de Fé Política »
«Nascemos : lançaram-nos neste vale de tagrimas, neste mundo corrupto, cheio de imundices, de soldados, de algaravios e de Castilhos, em o ano económico de 1799 em que Portugal celebrou um tratado de paz e a amizade com a regência de Tripoli de Barberia; primo-co-irmão do protocolo de 21 de Maio.»
«Uma velha, espécie de bruxa, que morava na nossa vizinhança tirou-nos as cartas, estremeceu de horror, torceu o pescoço a um gato que tinhamos, e disse a nossa mãe: este menino está reservado para grandes coisas, há-de vir a ser patuleia; e as cartas dizem mais que durante a sua menoridade verá um homem de cor parda, ministro dos negócios estrangeiros, que apesar de ser mulato há-de teimar que é branco, do que se hão-de seguir grandes males a Portugal, que apesar de tudo, acrescentou a velha »
«Há-de ser perseguido »
«Nunca vencido !!!!»
«Passados os primeiros anos da nossa mocidade frequentamos grande número de universidades estrangeiras, e depois de um curso completo de direito público, de ...rsivo, letra gorda e de clinica médica, formamo-nos em ciências abstractas, para melhor conhecermos o coração humano e o corpo social, e por isso dizemos afoitos que Manuel Duarte Leitão tem de morrer doido.»
«Com o andar do tempo (que ainda nao era o Tempo dos renegados ) vieram as constituições, os achaques e as revoluções, e nunca nos fizeram deputado, no que a nação perdeu imenso, segundo a nossa opinião filosófica.»
«Á força de fadigas, empenhos e trabalhos, conseguimos ser dispeçados de um dos batalhões de guarda nacional de Lisboa. »
«Levou-nos Deus ao Campo de Ourique por ocasião da Belemzada, e continuando as revoluções, os achaques e constituições, depois de muitos empenhos, nunca fomos feridos a favor da nossa adorada rainha a senhora D. Maria 2ª, que Deus guarde por muitos anos como todos os bons portugueses havemos mister.»
«0 nosso corpo não tem pois lesão alguma, quer moral, quer física, temos bom apetite, abdómen desembaraçado, ainda que constituição fraca pelos ataques nervosos da região superior.»
«Somos patuleias, por embirração, por pirraça e por melancolia, e como pertencemos a uma nação que é senhora da Guiné, Mar em Africa, Conquista e Navegação, que tem não sabemos que, na Etiópia, Arábia e Pérsia; por isso temos o direito de acreditar que os irmãos Cabrais não são pessoas limpas de mãos.»
«Não assistimos á morte do Conde Andeiro porque ainda não éramos nascidos, mas tivemos a ventura de conhecer o Dietz, que graças a Deus ainda vive. Tão pouco fomos ao Cartaxo comer arroz doce com o invicto das caras para nos não engasgarmos com as tais letras de polegada que tanto deram no goto ao padre Eleutério.»
«Lamentamos do fundo d’alma, que o reverendo Marcos passe aos olhos da nossa antiga e fiel aliada como o nosso primeiro borrachão, e estamos persuadidos, que se o padre bebe, é só para conservar a saúde; pois e a aguardente conserva as frutas, muito melhor conservará o corpo humano. Assim o assevera o publicista Vattel e outros muitos.»
«Sempre achamos o Proença muito feio e muito rombo, e por esse motivo, e mais dos autos, continuaremos a guerrear um partido em que se roubam conegos, rainhas de Sundem, e em que há Trasimundos e imundos, pernas de pau, cambados, coruscantes, sacripantes, tratantes, reis de Molembo, circulos bicudos, algaravios modelos de disciplina que estripam gente por essas ruas como quem bebe um copo d'agua, e com tais defensores da carta nao queremos nem ir para o céu; antes preferimos ser condenados a comprar e 1er a farmacopeia do europeu Albano, ou a comer milho miudo durante um mês.»
«0 nosso credo politico, os nossos princípios, a nossa religião, a nossa bandeira, os nossos amores, a nossa Dulcineia del Teboso, são a Maria da Fonte, porque o fado tem de cumprir-se, porque quando ainda no berço nos tiraram as cartas prognosticaram elas que teríamos de ser grande patuleia.»
«Somos fatalistas, e por essa razão estamos convencidos, que todos nascem com a sua estrela; boa ou má; a nossa guia-nos para onde for o povo, já agora temos de a seguir.»
«Resta-nos pouco a dizer ....................................................................................................... ...................................................»
«N.B. Somos obrigados a declarar para inteligencia do leitor, que faltando-nos o estro para continuar esta nossa profissão de fé, a damos aqui por acabada e finis coronat opus. Este latim vai aqui bem encaixado e nada deixa a desejar.»
Este suplememo era dirigido pelo jomalista Bemardim Martins da Silva (o tal nascido em 1799), tendo como seu colaborador um litografo, que ficaria conhecido por "Lopes Pinta Monos".
A gravura (litográfica ou de madeira) já era comum na nossa imprensa, em pequenas ilustrações de início de artigo, de Parágrafo, ou de composição gráfica da página. Neste suplemento, este gravador (eventualmente em colaboração com mais alguns outros, pois não sabemos ao certo quantos mais trabalhariam neste suplemento), criará o desenho satírico de intervenção política, género que contemporaneamente se costuma designar por cartoon. Esta ilustração surge como testemunho noticioso da semana, como critica directa aos acontecimentos contemporâneos. Paralelamente desenvolverá a caricatura pessoal (retrato-charge), criando um álbum caricatural das ('Glórias') figuras Contemporâneas.
Curiosamente o primeiro desenho deste Suplemento, que retrata ou tal Ministro dos Negócios Estrangeiros mulato que‚ tem por baixo a legenda: ‘Cheguei, Vi e Venci’. Não se referia esta legenda propriamente ao desenho satírico, como género que acabava de se desenvolver, antes é uma frase promissora, uma feliz ironia de uma realidade. A partir de 12 de Agosto de 1847 a Caricatura, o Desenho Satírico chegou, viu e venceu na Imprensa Portuguesa até aos dias de hoje.
Deste modo nasce, não a caricatura gráfica portuguesa, mas mais correctamente a História da Caricatura na Imprensa Portuguesa. Para trás fica a pré-história, que como na história do mundo é mais longa que a própria história, e que poderá ter começado no dia em que um D. Afonso Henriques corre com a sua mãe do trono, que um Egas Moniz, em defesa de uma Honra se entrega sob o aspecto satírico de condenado á forca ao Rei de Leao… Uma pré-história humorística muito literaria, que a partir do princípio do séc. XIX se misturou com a própria História da Imprensa em Portugal. A eIa viverá ligada, tratada muitas das vezes como bastarda, como sub-produto, ou como única razão de sobrevivência e êxito do titulo. Amada e mal-amada, conturbada sera esta história que assim começou, sob a assinatura de ‘pinta monos’ que ‘envergonhado ‘ da sua alcunha assinava com pseudónimos. Nascimemo burIesco este, em que a arte é apelidada de monos. Depois de 'monos' passou a 'boneco'...não como apreço á arte, mas por ‘desrespeito’ ás glórias caricaturadas. Actualmente, por desaparecimento de uma certa gíria, tornaram-se espécies em vias de extinção não só os bonecos, como os linguados…
Voltando á História. De repente encontramos a caricatura instalada na imprensa Portuguesa com uma força, e uma intervenção tão sistemática, que nos surpreende, e levanta-nos a curiosidade. Porquê este surgimento repentino ? Consequência da "Patuleia" ?
A Guerra Civil que se trava ao longo deste início de século não se regista apenas entre políticos, mas entre formas culturais de estar na sociedade, entre um regime caduco, e uma nova forma de viver, comunicar, de progredir.
Por outro lado a luta também não se regista apenas entre Miguelistas e Liberais (Velho regime e novo), mas também entre diferentes facções Liberais, seja por diferenças de opinião de forma de introduzir o ‘iluminismo’, e a democracia, mais radical, ou de uma forma mais lenta e conservadora há também os jogos de interesses pessoais de ocupar o poder. Era uma guerra civil de grupos de influência, uma transposição do caciquismo absolutista, para um liberalismo feudal, com guerras intestinas que ultrapassavam por vezes as questões ideológicas.
A "Patuleia" (46/47), mais uma das revoltas entre liberais, que o país se ia habituando, apesar de impor maior perseguição á imprensa (a abolição da censura era uma das promessas dos Liberais), e ás ideias dos diferentes partidarismos, virá criar campo propício à perseguição, criar espaço a lobbys políticos, onde o ‘setembrista’ “0 Patriota”, profundo inimigo do ‘cartismo’, gozou de algum privilégio, ou razão de existência satírica. Sendo oposição ao governo instituido, era um mal necessário.
Como testemunhará Júlio César Machado (no Livro "Lisboa de Ontem") «no dia em que se publicáva não se pensáva noutra coisa, não se faláva senão disso. Gostavam de o 1er moços e veIhos». A imagem desde logo triunfou, num pais onde o analfabetismo tinha uma taxa muita alta.
No Supl. Burlesco de "0 Patriota" destaca-se, como foi referido, o trabalho de um artífice da litografia, o tal 'Pinta Monos'. É Luís Augusto Palmeirim, que no seu livro "Os Excêntricos do meu tempo" de 1891, que nos deixou a única referência escrita sobre este artista: «O autor das caricaturas era geralmente conhecido pela designação do Pinta Monos, com que o próprio redactor do Supplemento chrismara o seu colaborador. Não me recordo n’este momento do nome do Pinta Monos, mas só me 1embro de que era um rapaz triste, doentio e já então em princípio de tísica pulmonar que mais tarde o levou á cova.» O Historiador José- Augusto França no seu livro sobre Raphael Bordallo Pinheiro, acrescentará o Lopes, certamente devido a informação no Dicionário Jornalístico Português de Xavier da Silva Pereira, que não consegui consultar.
Este 'Pinta.Monos' é seguramente o 'Cecilia', o autor dos melhores trabalhos, ao lado de o 'Maria' (que também pode ser ele, pela semelhança de traço). Mas haverá mais gravadores, mais jornais a publicar suplementos, folhas inseridas, como o "Procurador dos Povos" (também ‘Setembrista'), a "A Matraca” (este ‘Cartista', que durante o ano de 48 publica a "Galeria Pitoresca dos Heroicos Magnates da Corte da Maria da Fonte", folha essa que após dissidência interna viverá independente), a"Gralha"…
Leonardo De Sá e António Dias de Deus (‘em Antes e Depois: Prazeres sem sequência’ pág. 25, supl. do 13), aceitam a data de Agosto de 47 como o início da caricatura gráfica em Portugal, mas defende que é com o «nº 1 de ‘A Gralha’, de 4 de setembro de 1847, temos os primeiros cartoons portugueses devidamente autenticados - com a assinatura de Filgueiras». No livro Os Comics em Portugal António Dias de Deus afirma mesmo «em 4 de Setembro de 1847, encontramos o nº 1 de “A Gralha” vários cartoons com legendas de balão, assinados Filgueiras. Parece ser esta a primeira autenticação directa de um cartoon português, dado que as assinaturas depositadas noutras anedotas coetâneas não passam de pseudónimos». Será que é mesmo o seu nome, Filgueiras, ou pseudónimo ? Uma questão por agora impossível de encontrar resposta, de todas as formas não temos qualquer dado biográfico, o que não acontece com o caricaturista de “O Patriota”.
Surgem mais trabalhos publicados, contudo, com ressalva para o Pinta Monos (Cecilia - Maria) os trabalhos não atingiam uma qualidade estética de registo. Inclusive intensificou-se o aparecimento e ilustrações noutros jornais, se não de cunho satírico político, pelo menos com humor e sátira social, trabalhos onde os historiadores da BD vão buscar as origens desse género gráfico (como na Revista Popular…).
É certo que como o Sz, ou Souza (Estevão Duarte de Souza), e o Coelho a qualidade da ilustração é diferente, mas mais no campo dos jornais de ‘instrução e recreio’. Uma dessas publicações, a “Revista Popular - Semanário de Literatura e Industria” (que inicia a sua publicação em 1848) apesar de não publicar sátiras políticas, imprime uma série de ilustrações, que se podem considerar como sátiras sociais, sátira de costumes. Segundo sua afirmação, com “gravuras originais em madeira executadas por artistas nacionais”, e desvendado no nº 8 o nome de José Maria Baptista Coelho (pelo menos as gravuras não humorísticas) como o autor desses trabalhos. Contudo, como poderemos ver mais adiante, normalmente era o Manuel Maria Bordalo Pinheiro quem fazia o croqui com a ideia, e este gravador executava na madeira. Será o Manuel Maria Bordalo Pinheiro o primeiro autor de desenhos de humor totalmente identificado ?
Este é na verdade um fim de década promissor, contudo havia muito caminho a percorrer, e o aumento de trabalhos satíricos publicados nos jornais noticiosos, ou burlescos, não foi sinónimo de aperfeiçoamento da arte da gravura global, já que a maioria dos artistas continuavam a ser simples artesãos de uma ‘industria’ gráfica. Os nossos artistas não tinham sabido apreender toda a arte dos mestres gravadores que por cá passaram no passado, essencialmente porque estes tinham vindo através da corte, através da elite artistica e intelectual, mas talvez também por algum desinteresse por uma arte que era mal paga, ainda não tinha grande saída profissional… Na Revista Popular nº8, quando desvendam a identidade de José Maria Baptista Coelha, queixam-se das dificuldades da arte, e testemunham que esta habilidade reconhecida pelo público «só pode ser excedida pelo seu (de Coelho) zelo e deligência em aperfeiçoar-se na arte em que tem feito tão grandes progressos. Oxalá que os nossos governos, attendendo seriamente a esse importante objecto, animem estes e outros distinctos artistas a prosseguir na gloriosa tarefa que se impozeram» (pág. 58)
Por outro lado denota-se na maioria, pouca apetência para apreenderem as artes de humor das gravuras estrangeiras que se importavam, talvez por diferenças culturais, educacionais, ou mesmo de estratégia política. No campo das gravuras que narram pequenas ‘histórias narrativas (aos quadradinhos)’ o que se encontra é fundamentalmente a cópia, a adaptação crua. Certamente aquele humor mais elaborado entrava em choque com a arte de escárnio e mal dizer mais contundente que sempre dominou o nosso espírito.
Estes artistas gráficos mais não eram que simples operários, sem cultura política, ou estética, onde a questão jornalística era mais importante, e que ilustravam grosseiramente uma legenda, um texto satírico…Contra a repressão, a ditadura, o despotismo fervilha sempre a violência. e contra o cabralismo não poderia haver outra forma de diálogo jornalístico. As caricaturas da imprensa noticiosa desta época são fundamentalmente de teor político, anónimas ou assinadas por pseudónimos como Maria, Affonso, Eu, Buffon, Júlio, Cecília… em jornais como “O Pharol” (1848), “A Fonte” (1849-50)…
A sátira, expressão simbólica, utiliza então como primeira arma a Alegoria, construindo com os nomes dos personagens, ou actividades, a caricatura ligada a simbologias ou alegorias de fácil compreensão. Como segunda arma utiliza a metamorfose antropomórfica.
Por cá passaram alguns retratistas estrangeiros com alguma qualidade, exímios gravadores de rostos, e estes sim deixarão alguma escola, e talvez essa a razão pela qual a caricatura destes primeiros anos utiliza o retrato simples como base, e a sátira advêm do ‘cenário’, dos ‘complementos’. Assim, e não só em Portugal, a caricatura desenvolve-se em macrocefalia, ou seja com cabeças muito grandes, onde a identidade fica assegurada, depois complementada grosseiramente com os elementos que farão o riso, que satirizarão a 'vitima', ou o que ela significa no momento político e social.
Esta utilização da semelhança, ou aliança do homem-nome com os animais e objectos, é uma das mais antigas fórmulas de sátira popular. E dessa forma nasceu não só a arte dos nossos primeiros 'artistas' caricaturais, como a primeira vedeta da nossa sátira caricatural - o Costa Cabral, o cabralismo e, por simbologia a Cabra.
Assim os elementos ‘cabreiros’, ou seja os cascos, e mesmo o corpo da cabra impor-se-á aos cabralistas. Sendo o irmão de Costa Cabral Conde de Tomar, esta designação de povoação transformar-se-á em acusação de roubo, 'tomando' tudo a seu favor. Serão também conhecidos pelo Chibo de Algodres, terra natal da família…
O anonimato não é uma simples fuga a responsabilidades, no caso da caricatura política, mas uma defesa do caricaturista perante o “mau génio”, a falta de humor do governante. Como ‘missão’ liberal-democrática, o caricaturista ataca a política governamental, defende os interesses do leitor-povo, toma a palavra pela oposição em geral, ou por um sector específico. A liberdade de imprensa e de pensamento nunca foram uma constante muita duradoira no nosso país, e por isso, sempre foi necessário procurar subterfúgios de comunicação para dizer as verdades que os dirigentes preferiam não ver. Talvez essa uma das razões por a língua portuguesa ser ‘muito traiçoeira’.
Estes primeiros anos são um período de panflaterismo, de radicalismos, e se o ideal de objectividade‚ defendido posteriormente pelos caricaturistas era conseguirem «ser oposição aos govemos e oposição as oposições», neste período desejam ser apenas oposição, e a imagem que nos ficou destes primeiros anos de caricatura é: «A miséria do povo, enquanto os governantes se enchiam. 0 povo, os empregados públicos são esqueletos, e Costa Cabral esta cheio como um ovo» (18/11/1847). «A Fórmula do domínio esta consagrado no 5º Poder - 0 Cacete» (16/4/1848), "a luva de ferro" (16/4/1848). «0 comunismo cabralista é o roubo» (7/4/1848), e "seus ministros sao uma quadrilha de ladrões" ( 15/5/1849).
Costa Cabral, «o vendilhão deste país» (16/11/1849), transformou-o num «armazem de comendas por Groço e Miúdo» (7/11/1848), para quem o apoiasse, enquanto que para os outros havia o peso da justiça, uma mulher que se vende (14/2/1849). Nesta paisagem, a liberdade de expressão é uma Rolha enfiada na boca dos pensadores (1/2/1850), imposta pelos «gatos pingados da liberdade d’imprensa» (12/5/1850).

Wednesday, November 28, 2007

HISTÓRIA da arte DA CARICATURA de imprensa EM PORTUGAL (parte 2)

Por: Osvaldo Macedo de Sousa

A CARICATURA POLÍTICA EM PORTUGAL

O espirito do grotesco e do caricato no povo português desenvolver-se-à mais facilmente na palavra do que na imagem. Seria na poesia trovadoresca satírica, nas cantigas de escárnio e mal dizer ou nas farsas que esse espirito encontraria melhor acolhimento. O nosso povo tem a lingua afiada, pronta a criticar, a cobiçar, a pôr ao ridiculo todos aqueles que fogem à mediania, ou que põem em risco a passividade das suas vidas.
Foi também pela palavra representada que nasceu o primeiro grande satirico português, o dramaturgo Gil Vicente. Nas suas obras, a sociedade, o poder, a igreja, a vida e a morte são retalhadas, desmascaradas como nunca tinham sido, nem seriam tão cedo.
Gil Vicente foi uma estrela efémera, e mesmo que tivesse havido uma intenção de desenvolver uma faceta humorística, satirica na cultura portuguesa, a implantação da Inquisição viria a cortar o riso a todo aquele que se revelasse contra o poder, contra a ordem estabelecida. Para a 1greja o riso passou a ser um elemento diabó1ico para subverter a sociedade, e portanto condenável.
A Igreja, como rainha sobre reis, ditadura sobre as ditaduras, foi a castradora da inteligência, da criatividade, da liberdade dos povos. A lnquisição, para o português, não foi só o massacre de judeus, ou pseudo-judeus, o roubo de bens, a destruição do progresso e da cultura, mas também a destruição de um espirito satírico. Foram séculos que castraram até hoje a alma de um povo.
Calaram-se então as vozes mais sonantes da cultura, enquanto o povo, na capa do anonimato, da multidão silenciosa, foi desenvolvendo os subterfúgios para não morter sufocado, foi desenvolvendo as fórmulas possiveis de sátira. Sussurtando e desenvolvendo nas tascas e vendas o anedotário, esboçando sátiras na iconografia decorativa das artes populares, na cerâmica, nas figurinhas dos presépios, no azulejo, nos jugos, nas proas dos barcos, no triste fado… ridicularizando dessa forma o dia-a-dia do seu semelhante, foi a única forma de lutar contra as prepotência dos senhores, O grotesco escondia então o caricatural, a ingenuidade a sátira. Por essa razão o português consegue maior dose de humor nos peridos de opressão, de ditadura.
Seria nos finais do século XVII que de novo o humor ganharia condições para se desenvolver como critica, opinião, numa sociedade que procurava o progresso. Essa abertura verifica-se pela lmprensa, o suporte mais importante em toda a história do humor caricatural.
O folheto de cordel, os papeis volantes, foram um complemento ao trabalho desenvolvido pelas academias de arte que tinham descoberto a arte do 'jocosério', em jogos "humoristi”. Esses folhetos, sendo mais jocosos e menos « sérios», divulgaram-se pelas camadas menos letradas, perdendo a arte em estilo, ganhando em agressividade satirica.
Os primeiros folhetos foram aparecendo, pontualmente ao longo do .século XVIII, aliando-se a esses impressos escritos, gravuras a vulso, desenhos com um cunho satírico cuja intenção caricatural já é incontestável, apesar de nem sempre atingirem os objectivos propostos. São desenhos que em princípio criticam a situação política nacional, mas por serem trabalhos de artistas estrangeiros adaptados, sente-se um certo desfasamento, uma incapacidade de satirizar realmente os govemantes.
A gravura era uma arte incipiente no nosso país, quase ignorada pelos artistas plásticos, mal apreendida pelos nossos artesãos, não podendo senão viver da adaptação de obras estrangeiras importadas, ou da exploração da veia satírica popular, grosseira e rudimentar.
A gravura erudita que se fazia, com um ou outro artista de melhor qualidade, era essencialmente simbó1ica, com predomínio de temas religiósos. E é no âmbito desta gravura erudita que descobrimos a primeira estampa «caricatural» criada por um artista nacional. É de Vieira Lusitano, feita a cobre, criada como ataque ao escultor espanhol Felipe Diogo de Castro, como «desafronta da própria honra, ou represália de ingratidões recebidas». É um exemplar único de sátira erudita.
O desenvolvimento destas gravuras populares, é uma consequência da evoluçao do aparecimento da imprensa em Portugal. Contudo datar o nascimento da Imprensa em Portugal não será pacífico, apontando uns a data de 1625 com as 'Relações de Severino de Faria", indicando outros 1641 com a "Gazeta em Que se Relata as Novas Todas Que Houve nesta Corte e Que Vieram de Várias partes no Mês deNovembro de 1641".
O mesmo poderá acontecer com a Caricatura na Imprensa Portuguesa, porque já antes de 1847 (há mais de 150 anos) surgiram desenhos satíricos impressos, contudo os factores periodicidade, encadeamento e conteúdo específico levam-me a datar 1847 para a Caricatura, e 1641 para a maioria dos historiadores da Imprensa.
As “Relações" eram folhas publicadas sem regularidade, e apenas para relatar de quando em vez um acontecimento importante. A "Gazeta" era já uma publicação mensal com noticias varias e sistemáticas. Entre estes dois géneros haviam folhas volantes (Normalmente panfletárias, e onde a gravura teve grande importância), anúncios oficiais e privados...
Quem tinha acesso a este meio de comunicação era o restrito núcleo de alfabetizados (e seus correligionários a quem eles lhes liam as novas), ou seja senhores do poder, das leis, da intelectualidade, que dessa forma cada vez mais fácll, podiam divulgar o que lhes convinha.
Os Reis e governantes de imediato sentiram a força dessa "arma" e logo em 1627 (26 de Janeiro) Filipe III impõe severas restrições ao uso da Tipografia, secundado em 1643 por D. João 1V com novas regulamentações, colocando-a quase como privilégio régio.
Para além da evolução dos processos tipográficos, a melhoria das comunicações e das relações postais levaram a um aumento do interesse público, e a uma certa proliferação de "Gazetas" e outra imprensa. Testemunho dessa evolução, e adaptação governamental, está a criação a 5 de Abril de 1768 da Real Mesa Censória, não apenas para livros, mas para toda a imprensa.
As limitações à Liberdade de expressão será uma constante da nossa imprensa, como foi uma constante da nossa história. Os nossos dirigentes, com a intolerância cató1ica como base de religião de estado, conseguiu ao longo de séculos subverter a mentalidade do povo, enclausurando-o num "provincianismo" e "tacanhez de espirito" como triunfo da moral, da ordem, da "paz social", dos "brandos costumes".
Utilizando a Inquisição, e demais formulas policiais, conseguiu-se refrear o espirito aventureiro que nos lançou para novos mundos, conseguiu-se castrar o espirito inventivo que nos tinha colocado nas vanguardas técnicas. O belo jardim à beira-mar plantado estava de costas viradas para a Europa, encerrando-se numa nostalgia sebastianista e fadista, conservadora e aterrorizadora, lutando contra as inovações, através da desinformação e deformação em que a Censura foi arma fundamental.
Com tudo isto a imprensa sofreu, e os diferentes saltos evolutivos foram-se verificando em certos momentos de abertura, ou por acção de estrangeirados. Naturalmente seriam as invasões francesas, seguidas pelas guerras liberais que dariam a grande reviravolta na Imprensa Portuguesa.
Estes impressores, e gravadores eram fundamentalmente artesãos anónimos (naturalmente havia um responsável do jornal que tinha que dar a cara perante o Estado, a Inquisição) que procuravam veicular o sentimento popular de revolta contra o poder. É dentro desse lote de trabalhos que está certamente o célebre desenho, descrito por alguns historiadores, que apareceu colado no muro do Paço da Bemposta, aquando da fuga de D. Joao VI para o Brasil. Nesse desenho via-se o rei, de pernas tortas e cornudo, sendo insultado pela nação miserável, abandonada e traida por aquele.
A critica popular, que já encontramos nessas artes rudimentares do povo, insuflou-se com os ventos liberais. Nas guerras napoleónicas os trabalhos graficos ingleses e franceses tiveram maior propagação cá, como campanha e contracampanha das forças em litigio, instigando o povo ao humor crítico, à sátira panfletária.
A violência politica, a instabilidade dos regimes e da liberdade de pensamento, reflectia-se na vida da sociedade como defesa radical das posições, para as quais a Imprensa foi um importante suporte. A hist6ria da produção jomalística a partir do século XIX será a história da tolerância ou intolerância, da liberdade de imprensa ou a castração pelas «leis das rolhas». Significativo desta dependência podem ser os números seguintes: em 1836, período de liberdade, há 67 jomais em 1850, com a implantação da «lei das rolhas», desce para 15 os jornais publicados.
Como breve viagem pela legislação neste principio de século na questão de Liberdade de Imprensa defendida pelos Liberais, podemos dizer que logo a 21 de Setembro de 1820, uma Portaria do Govemo Provisório regulamente a Censura Prévia, criando alguma liberdade de Imprensa, sem aderir plenamente aos ideais liberais de total liberdade. Contudo a 20 de Março de 1821 surge o Decreto que extingue o Tribunal do Santo Oficio, e a 4 de Julho de 1821, segundo projecto de Soares Franco, é abolida oficialmente a Censura Prévia, e regulamentado o exercicio da Liberdade de Imprensa. A 23 de Setembro de 1822 é promulgada a primeira Constituição Portuguesa, na qual se defende a Liberdade de Imprensa.
Dentro do pr6prio grupo Liberal se encontram varias clivagens de opinião quanto à necessidade ou não da existência de controle sobre a Imprensa, complementada pelos absolutistas incondicionais apoiantes da existência, e dessa forma se verificará um constante rodopio legislativo, ou de utilização da opressão ao longo dos anos.
Deste modo a 2 de Junho de 1823, com a Vilafrancada regressa a repressão, com confirmação legal a 6 de Março de 1824, restituindo à Censura as restrições da lei de 17 de Dezembro de 1794.
A 29 de Abril de 1826 a Nova Carta Constitucional impõe a Liberdade de Expressão, Pensamento e de Imprensa, com referência à proibição a qualquer espécie de Censura. Contudo a 18 de Agosto de 1826 surgem "Instruções" para reprimir "abusos". Haverá posteriormente decretos a 23 de Setembro de 1826, a 20 de Junho, 17 de Agosto e 13 de Setembro de 1827, assim como a 16 de Agosto de 1828 que criarão um Comissão de Censura, e limitações ao direito de impressão. As restrições não visavam apenas o conteúdo, mas também a autoria, ou a propriedade das obras impressas.
A 28 de Agosto de 1830 a Regência da Terceira liberaliza a Liberdade de Imprensa, e a 22 de Dezembro de 1834 Decreta-se a total Liberdade de Imprensa, legalizada na revisão Constitucional de 4 de Abril de 1838 , onde se determina que “todo o cidadão pode comunicar os seus pensamentos pela Imprensa ou por qualquer outro modo, sem dependência de Censura Prévia”.
Existem diversos jornais de burlesco, onde cada facção procura denegrir o mais vilmente os que não pensam como eles. Verificamos que pelo menos desde o princípio do século, e principalmente depois da vitória dos vintistas que introduziram a litografia, a gravura satírica ganhou em Portugal um espaço, 'medíocre' esteticamente, mas fundamental como arma política. Na realidade a caricatura, ou o humor satírico sempre foi mais forte em Portugal pelas letras que pelo desenho (hoje verifica-se o contrário), e a caricatura jomalística desenvolve-se primeiros pelas letras noticiosas, e só depois se aventura na imagem.
1834 será a grande viragem e salto qualitativo na nossa imprensa. Para alem da má qualidade de papel, havia má qualidade de impressão com prelos em madeira, muitas das vezes portáteis. Em 1835 surgem os primeiros prelos mecânicos, e a litografia vai substituindo a gravura em madeira (as primeiras gravuras na nossa imprensa datam de 1716). Em relação à sátira gráfica verificam-se várias experiências, fundamentalmente com a importação de gravuras, as quais eram adaptadas e traduzidas para a nossa realidade, e distribuídas normalmente como Folhas Volantes. De 1837 temos referência de um jornal intitulado "A Caricatura", onde o burlesco caricatural é literário, e não temos conhecimento de ter incorporado qualquer gravura, mesmo em folhas soltas.
Nesse ano o jornal "Arquivo Pitoresco" publica desenhos de Hogarth, provenientes da revista “Penny Magazine" de Londres (importação essa que continuaria nos anos 50 pela mão de "O Panorama").
Em 1842 Costa Cabral ao tomar o poder, restaura a Carta, e decreta a Censura Prévia numa opressão reciproca ao aumento da sua impopularidade. De 42 a 48 publica-se o jornal “A Macaca” onde eram inseridas folhas satíricas numeradas.
Sobre o aparecimento da caricatura na Imprensa temos um testemunho de Rocha Martins publicado em "Os Serões" (de Setembro de 1909) que nos diz:

"Do tempo dos franceses a EI-rei D. Fernando"

A caricatura deve ter nascido na hora em que o homem sentiu a vontade vingadora de mostrar o seu semelhante exteriorizando-lbe os defeitos e castigando-o em traços que fossem ao mesmo tempo rasgões d' armas afiadas e bordoadas arlequinescas de matracas cómicas e ruidosas. A essa ânsia de troça não escaparam nem os deuses nem os lmperadores; as faces imortais alargaramse, cresceram, tumificaram-se e os vultos augustos e sagrados apareceram de pés de cabra e orelhas de burro com que os artistas, mesmo nas mais remotas idades, se vingaram dos dominadores. Desde Antriphilo, metido nas enxúndias d'um suíno até Napoleão encarnado na Besta da Apocalypse, desde as macabras exibições de Goya ás endiabradas cargas de Gavarn, desde D. João VI minotaurisado até ao Sr. José Luciano em fraldas, a caricatura tem marcado com o seu ferrete contundente e guisalhante, os crimes, os maus actos, as tranquibérnias, as afectações, besuntado com irreverências castigadoras as faces mais celebres, não poupando, não transigindo, não se curvando. A caricatura é das artes a única que não pode ajoelhar diante dos poderosos; é aqueles que não pode viver senão ridicularizando; a única que ficou filha da revolta e eternamente revoltada como no seu inicio, sem o amoldado fácil da literatura, da musica, da poesia, da escultura que bastas vezes sagram em apologias, em hinos, em odes, em monumentos aqueles que a caricatura abexigou com maior justiça.
Enquanto historiadores graves, pintores famosos, poetas celebres, escultores distintos e inspirados músicos celebravam os dotes do senhor D. João VI, as bondades e virtudes do príncipe fugido para o Brasil n' um êxodo realengo e cortesanesco, diante dos franceses invasores, aparecia nos muros do paço da Bemposta uma caricatura - uma das mais antigas de Portugal - onde o marido de Carlota Joaquina aparece de pernas tortas, barriga saliente, a cabeça com os apêndices do demónio n'uma caraça de ruminante de cuja boca saia uma frase caracterisadora e uma alusão aos 200 milhões de cruzados que se dizia tinham ido na armada com a côrte acobardada e foragida. À esquerda surgia a nação com uma perna de pau e nasua frente o exército, os empregados, os operários, os ricos exclamavam: «O meu soldo, o meu ordenado, o meu salário, as minhas tenças!» A nação, segundo uma bandeirola que lhe saia da boca, dirigia-se ao príncipe n'estes termos bem pouco respeitosos: Ouvi, cruel, a voz dos vossos filhos. 0 que levas não é teu. És um ladrão. Ficamos pobres e infamados! Aparecia ainda uma fileira de frades e de lobinhos, n'uma alusão aos Lobatos, favoritos de D. João; o seu conselho privado e a Inglaterra de gorro d'algodão, bradando: Vamos ! Vamos ! Por detrás do conselho estava escrito: Se veem os 200 milhões, de Londres não voltam. Bela ocasião para zombar dos credores. Nada de satisfações e que se regalem com os franceses! No alto do papel havia o seguinte dístico: A nação mais valorosa, mais fiel e menos resluta !
Tal é a primeira caricatura portuguesa em que se castiga um soberano n' uma explosão de cólera e com uma risada galhofeira. Em pleno domínio dos franceses o ridículo das caricaturas secretas ia atingir Napolão, Josephina, os reis da casa imperial como n'uma celebre estampa, intitulada o Dragão e a Besta, na qual se dá á imperatriz dos franceses o nome com que lhe castigavam algumas das suas escapadas amorosas do tempo de Barras, e nas caleças de viagem do período das vitorias na Itália. Há n'essa estampa, com um ódio profundo, uma superstição marcada e uma sátira terrível que a expressar-se n'uma gargalhada seria áspera, sarcástica, epiléptica. Muitas outras se espalharam, pelo país e em 1809 aparecia uma que representava Bonaparte de jornada para o inferno. O imperador lá vai, de espada nua, encavalitado no demónio, mais feio que é possível imaginar, com as suas asas de morcego, o rabo em fouce, a bocarra aberta, carregando para o seu antro aquele que devia ainda, em Santa Helena receber pelos jornais os insultos que a caricatura de todo mundo lbe enviava.
Quando D. Miguel reinava também n'uma meia caricatura se troçavam os constitucionais. O rei, com o seu belo rosto, sagrado por um anjo que lhe trazia a corôa, protegido pela Virgem, que do céu olhava, nada tinha de caricatura, antes estava mais aformoseado; mas, em compensação, por debaixo do trono três desgraçados constituicionais hediondos, um d’eles com orelhas asininas, outro com a trolha dos pedreiros livres, o terceiro de guedelha hirsuta, eram bem caricaturais segurando o seu letreiro onde se lê:
Pedreiros livres
E malhados
Debaixo do trono
São esmagados
A caricatura, porém, só chega a um certo desenvolvimento em Portugal, quando os jornais se atrevem a publica-la, após a implantação do constitucionalismo que fora celebrado em gravuras lisonjeiras e alegóricas nas quais D. Pedro salvava o país - um barbudo vestido d’arnez - partindo-lhe os grilhões avassaladores e D. Miguel aparecia calcado aos pés do irmão como um demónio sob o arcanjo vingador. Era a represália das orelhas de burro com que se tinham restituido a alguns dos constitucionais as suas primitivas formas tanto pelo símbolo da sua inteligência como pela fúria com que depois entraram a escoucinhar na liberdade. A D.Pedro em vez de caricaturas fizeram cantigas revoltantes e apatacaram-no em S. Carlos outros demolidores mais práticos, mas D. Maria II e seu marido, D. Fernando, que também fez caricaturas, sofreram os rudes embates d’essa arte que começava a surgir nas paginas iconoclastas dos jornaes.
No Procurador dos Povos, folha volante, um tal Filgueiras traçava, embora sem vigor, pálida, desengonçadamente, os perfis dos soberanos. 0 rei era um nabo muito alto, fardado de marechal; a rainha uma mulheraça gorda que quase sempre se parecia e muito com D. Maria II.
Após a batalha de Torres Vedras lá aparece na janela do paço saudando um cortejo ratão que desfila grotesca e singularmente e D. Fernando entre os ministros, n’uma outra página, está todo empertigado com a sua cabeça vegetal n’uma irreverência de tal ordem, para o tempo, que chega a admirar. Então aparecem outros artistas quase todos assinando os trabalhos com pseudónimos ou com simples iniciais não indo, na peugada do primeiro, avançando de dia para dia a audácia das legendas que devia chegar ao máximo após o Cabralismo em 1846. Referindo-se a expulsão dos frades dos seus conventos há uma caricatura com o seguinte titulo: Os roubados pedindo esmola aos ladrões ! D’um lado estão os religiosos de mão estendida, do outro a ministralhada radiante. Portugal era já representado n’esse tempo por um esqueleto a que se vestia um resto d’armadura e quase sempre aparecia a pontapear ministros em curvaturas pastuscas, de tíbia vingadora. Alguns artistas punham os caricaturistas apenas com deformações nos corpos, conservando-lhes os rostos ou para serem assim bem conhecidos ou por deficiências de poderem marca-los nas disformidades de traço o que são a base da caricatura.
As impertinâncias choviam: o ataque era constante e, apesar do grosseiro trabalho, algumas d’essas paginas teem graça pelo arrojo e pela intenção, pelo singelo e inexperiente traço com que se procurava ferir aqueles que não cumpriam os seus deveres e que os jornais muitas vezes, cheios de receio, poupavam. É n’esse periodo que começa a afirmar-se a caricatura política mesmo no estrangeiro, como uma arma de rebelião com que a França ia preparando um pouco a sua república de 48, depois de ter perfurado as enxúndias de Luóz XVIII, a côrte beata de Carlos X e o burguesismo de Luíz Filippe.
Chega-se ao máximo do arrojo; os reis passam a ser do domínio comum desde que transigiram e os grandes personagens, mascardos com os seus defeitos faziam rir despegadamente o povo.
Segundo Teixeira de Carvalho ( in “Arte e Vida” nº 5 em 1905) " A caricatura levou tempo a aclimar em Portugal. Foi importada do estrangeiro nas gravuras que o movimento de ilustrações popuIares, que começa a notar-se na Imprensa portuguesa por 1837, vulgarizou no nosso pais. /.../
/.../ Há mais de uma gravura, cuja intenção caricatural‚ inestimável e que se refere á vida politica portugueza, antes das luctas da invasão napoleónica; mas são de artistas estrangeiros - /.../ que, nem indirectamente pela acção sobre artistas nossos, influiram no movimento da arte nacional.”
"/.../ Poucas, e sem valor, são as caricaturas relativa à invasão napoleónica, que foi tratada tão magistralmente pela caricatura inglesa. Os retratos de Napoleao, e a figuração da sua arvore genea1ógica, espalhados por Portugal, têem o aspecto caticatural pela sua inferioridade dos artistas que as executaram. Encontramos um arremedo leve de caricatura nas façanhas do nosso exímio artilheiro João Farinha, e nos desenhos das "bravuras" dos nossos soldados de cavaleria contra os soldados franceses, grito de glória que a inexperiência converteu num motivo caricatural."
" Alguma caricatura de valor que aparece é copia de trabalho estrangeiro." ,
“ É necessário chegarmos ás lutas liberais para vermos aparecer a caricatura política em Portugal."
"N’esse longo período de luta, a caricatura nasce e desenvolve-se. Cria-a o povo. É na industria popular que aparece, na literatura de cordel, na cerâmica patriótica de que restam tão raros exemplares."
"/.../ Os desenhistas desconhecidos, que assinam, quando assinam, com pseudónimos, não eram artistas, eram apenas pessoas em que se reconhecera habilidade para fazer um retrato semelhante de um adversario político."
“/.../ 0 insulto, as alusões caluniosas á vida privada, que nem a honra da família respeitavam, e que desenhavam pacientemente com o tracejar delicado d’um miniaturista, para tornar bem conhecidas as figuras femininas, a quem se faziam as acusações mais torpes, sem respeitar-lhes o caracter de esposas e de mães, tudo é caricaturado n' essa época agitada da luta á mão armada nas aldeias, como nas ruas mais populosas da cidade".
Se vamos encontrando gravuras satíricas desde o princípio do século, algumas já de autoria nacional, porque não coincidir o nascimento da caricatura com essas gravuras ?

Monday, November 26, 2007

HISTÓRIA da arte DA CARICATURA de imprensa EM PORTUGAL

Por: Osvaldo Macedo de Sousa

“Fazer rir é já alguma coisa, mas, fazer rir aos outros é mais do que um talento. É quase uma caridade.”(Leal da Câmara)

INTRODUÇÃO
Do Humorismo, Da Caricatura

Antes do mais será conveniente esclarecer que utilizo o termo Caricatura, no âmbito francofono que engloba nesta designação todo o desenho de imprensa de cunho humorístico-satirico, termo esse que os anglo-saxões substituiram por Cartoon.
Definir Humor, Caricatura, Cartoon é algo ingrato, já que o acto de definir é muito controverso, e em campos em que os estudiosos nunca chegaram a acordos, ainda o é mais. Antes do mais é uma forma de comunicar, onde a estética se aliá a um grão divino de inteligência.
Comunicar é um sistema intrínseco á sobrevivência do homem, e de todos os animais. É nessa estrutura de transmissão de conhecimentos, de informações que depende grande parte da sua sobrevivência, e evolução.
O Homem, ao contrário dos outros animais, não só desenvolveu esse código de comunicação, como procurou criar um sistema de arquivaçao desses conhecimentos, dando-lhe oportunidade de os primorar, diversificar, e codificar.
Do sistema primário de comunicação geral, passaram para um sistema de comunicação de grupo, e posteriormente de étnia. Do simples sistema de comunicaçao de dados e factos, desenvolveram o sistema de comunicaçao de inovações e dissertações. A criaçao da filosofia foi talvez um dos factos mais importantes na comunicação, ja que quebrou as barreiras do mundo material e real, para passar para o virtual, para o imaginário.
O homem aprendeu a utilizar a comunicaçao para serviço da sobrevivência fisica, e mental. A comunicação, como divertimento, como ginástica mental deu uma nova dimensão ao homem dentro do mundo animal do planeta.
É nesse jogo, nessa procura de dominar plenamente a comunicação, com a realidade e o imaginário, com o facto e o reflexo que surge o humor na comunicação.
O humor é o triunfo da inteligência na comunicação humana, é a vit6ria do homem sobre os factos e o imaginário, assenhoreando-se da criação pura. Pelo humor o homem passa para o outro lado do espelho, podendo-se ver na reflexão da realidade, através de uma dimensão, dita risivel, que muitas das vezes é mais dramática de jocosa.
O riso, para além da comunicação e outro elemento que dlzem estar-lhe intrínseco. Creio que se poderia acrescer a dor, e as lágrimas também, já que o humor e a forma mais séria, mais crua e cruel de ver a sociedade, de se ver ao espelho. O humor é a visão não política, não polida, não policiada do Homem… É a visão do homem após a expulsão do paraíso, em que toda a sua nudes e fraquezas humanas vêm á pele.
Voltando ao riso, este e pelo menos o lado visível do humor, e a forma mais fácil de o definir. O humor é uma formula de comunicação, de raciocínio lógico, cuja conclusão ilógica provoca a surpresa, a qual resulta numa reacção de riso, despoletando os 18 músculos corporais que o riso trabalha. Através desta reacção se afastam os medos, se exorcizam os temores do desconhecido, se desenvolve o espírito de igualdade e superioridade do homem perante a sociedade e o mundo. O riso descontrai ambientes, cura depressões… Também há o sorriso, uma forma mais polida de reagir em público, de expressar mais uma sensação irónica de superioridade social... e como escreveu Manuel Cardoso Martha "nem sempre se tem rido do mesmo modo, nem com a mesma determinante".
É que o humor, não sendo uma atitude superficial do homem, mas um elemento profundo do espírito, do raciocínio, da salvaguarda da saúde mental da humanidade molda-se à evolução da sociedade, reflecte as rupturas, revoluções, alterações comportamentais do dia a dia, dos anos, do século. Sendo uma arte de sobrevivência, é também uma arte de reflexão da hist6ria, e através dela rever, recuperar essa história vivida.
Houve sempre Humor, com esta designação, ou com outras, desde que o Homem tomou consciência de si próprio, e da sociedade em que estava inserido. Há pensadores que vão mais longe,e de uma forma ‘sacrílega’ dizem que o Humor é divino, era a ciência que estava na maçã da arvore proibída, e que ao ser ingerida abriu os olhos ao Homem para a realidade. Dizem que o riso é a chama da inteligência roubada por Diogenes. Defendem outros que as formulas da criação humorística são doze, estão todas na Bíblia, e que o Homem mais não faz que as recriar, diversificar como dádiva divina…
Na antiguidade clássica vamos descobrir entre os Egípcios o deus Bess, deus do humor. Vamos encontrar entre os hierog1ifos caricaturas, como o vamos encontrar na arte Clássica Grega e Romana, tanto na literatura, como na pintura de cerámicas, na escultura... Fala-se do célebre tratado de Aristoteles sobre a Comédia que desapareceu, para glaudio da igreja cristã.
O Humor, o Riso, a Alegria eram defendidas nas civilizações Clássicas, como o é na religião Judaica, mas a religião Cristã encarará esse elemento como satânico, como gentio, e procurará combate-lo. Tertuliano, Cypriano e sao Joao Crisóstomo lutarão contra riso, o grotesco, já que só o belo é divino, e o homem deve ser apenas copista do que deus criou. Com o progressivo controle da civilização, por parte do cristianismo, instalar-se-á uma grelha censória, que culminará na Inquisição.
Curiosamente, na dita Idade Média, que uma certa hist6ria a figurou como um periodo obscuro, foi quando o humor mais se desenvolveu, a par da implantação da Igreja, e domínio castrante do seu poder. Junto aos reis vamos descobrir o Bobo, um 'humorista', um 'satírico', um 'cartoonista' da época que servia de transmissor das realidades que o rei não via, e de crítico do que o rei nao queria ver. Foi um elemento fundamental para a salvaguarda da saúde mental da sociedade cortesã desses tempos. O povo, recuperando o mais possivel os ritos pagãos, usou o humor nas danças macabras, nas Festas dos Loucos, na arte popular, inclusive na arte de canteiro nas catedrais. Os pr6prios monges copistas, utilizm o 'humor' e a ‘caricatura' nas iluminuras dos livros sagrados, e profanos explorando o mundo simbó1ico da imagem. As gravuras e folhas volantes que corriam pelas feiras mostravam o ‘mundo ao revês’….
Com o renascimento, apesar de uma certa erudição do humor através da pintura de alguns artistas ‘surrealistas’, do teatro das farsas, da Comédia del'Arte… perde-se o impacto satirico e agressivo do periodo anterior, e o humor é cada vez mais censurado, principalmente neste canto “clerical' da Europa.
Será durante o cisma protestante que o desenho satírico ganhará importância gráfica, tomando-se arma de combate, primeiro contra os papistas, e posteriormente também utilizada por estes contra os ‘hereges'. A nível europeu, pode-se encarar aqui o nascimento do que hoje se chama de caricatura ou cartoon editorial.
Portugal, pela sua posição geográfica de extremo ocidental europeu, sempre esteve vocacionado para viver o europeismo na marginalidade. Isso fez com que os acontecimentos, os movimentos culturais chegassem, não como uma onda no auge do movimento, mas como eco retardado, adulterado… assim aconteceu durante o Império Romano, na Idade Média, na Renascença, e o nosso povo, como conglomerado de muitos povos, culturas, tradições e censuras religiosas várias, que por aqui arribaram tornou-se num povo de brandos costumes. Por falta de uma tradição de grotesco (os árabes estavam proibidos de representações figurativas); por falta de interesse na fixação em pedra do seu imaginário fantástico, por estar fora da rota das 'corporações de pedreiros livres', dominadores da linguagem iconográfica e esotérica; ou por falta de tempo para se esquecer da dura realidade da sobrevivência num território que manteve a guerra durante longo tempo, num território pobre, não desenvolveu um largo imaginário, ou uma iconografia fantástico-cató1ica paralela á realizada na Europa. Na verdade a nossa iconografia românica e bastante pobre em conteúdo e expressão, predominando as simetrias decorativas, a representação heráldica de bestiários importados. Quanto ao Gótico português, este criará o seu imaginário não no esoterismo, mas na realidade náutica, criando beleza com a crueza dos artefactos do dia a dia,
Na iluminura, o copista teria maior liberdade de inspiração, um maior poder técnico pela maleabilidade dos materiais, mas nem aí o grotesco-bestiário atingirá a dimensão fantástica de outros centros culturais.

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