Wednesday, November 28, 2007
HISTÓRIA da arte DA CARICATURA de imprensa EM PORTUGAL (parte 2)
Por: Osvaldo Macedo de Sousa
A CARICATURA POLÍTICA EM PORTUGAL
O espirito do grotesco e do caricato no povo português desenvolver-se-à mais facilmente na palavra do que na imagem. Seria na poesia trovadoresca satírica, nas cantigas de escárnio e mal dizer ou nas farsas que esse espirito encontraria melhor acolhimento. O nosso povo tem a lingua afiada, pronta a criticar, a cobiçar, a pôr ao ridiculo todos aqueles que fogem à mediania, ou que põem em risco a passividade das suas vidas.
Foi também pela palavra representada que nasceu o primeiro grande satirico português, o dramaturgo Gil Vicente. Nas suas obras, a sociedade, o poder, a igreja, a vida e a morte são retalhadas, desmascaradas como nunca tinham sido, nem seriam tão cedo.
Gil Vicente foi uma estrela efémera, e mesmo que tivesse havido uma intenção de desenvolver uma faceta humorística, satirica na cultura portuguesa, a implantação da Inquisição viria a cortar o riso a todo aquele que se revelasse contra o poder, contra a ordem estabelecida. Para a 1greja o riso passou a ser um elemento diabó1ico para subverter a sociedade, e portanto condenável.
A Igreja, como rainha sobre reis, ditadura sobre as ditaduras, foi a castradora da inteligência, da criatividade, da liberdade dos povos. A lnquisição, para o português, não foi só o massacre de judeus, ou pseudo-judeus, o roubo de bens, a destruição do progresso e da cultura, mas também a destruição de um espirito satírico. Foram séculos que castraram até hoje a alma de um povo.
Calaram-se então as vozes mais sonantes da cultura, enquanto o povo, na capa do anonimato, da multidão silenciosa, foi desenvolvendo os subterfúgios para não morter sufocado, foi desenvolvendo as fórmulas possiveis de sátira. Sussurtando e desenvolvendo nas tascas e vendas o anedotário, esboçando sátiras na iconografia decorativa das artes populares, na cerâmica, nas figurinhas dos presépios, no azulejo, nos jugos, nas proas dos barcos, no triste fado… ridicularizando dessa forma o dia-a-dia do seu semelhante, foi a única forma de lutar contra as prepotência dos senhores, O grotesco escondia então o caricatural, a ingenuidade a sátira. Por essa razão o português consegue maior dose de humor nos peridos de opressão, de ditadura.
Seria nos finais do século XVII que de novo o humor ganharia condições para se desenvolver como critica, opinião, numa sociedade que procurava o progresso. Essa abertura verifica-se pela lmprensa, o suporte mais importante em toda a história do humor caricatural.
O folheto de cordel, os papeis volantes, foram um complemento ao trabalho desenvolvido pelas academias de arte que tinham descoberto a arte do 'jocosério', em jogos "humoristi”. Esses folhetos, sendo mais jocosos e menos « sérios», divulgaram-se pelas camadas menos letradas, perdendo a arte em estilo, ganhando em agressividade satirica.
Os primeiros folhetos foram aparecendo, pontualmente ao longo do .século XVIII, aliando-se a esses impressos escritos, gravuras a vulso, desenhos com um cunho satírico cuja intenção caricatural já é incontestável, apesar de nem sempre atingirem os objectivos propostos. São desenhos que em princípio criticam a situação política nacional, mas por serem trabalhos de artistas estrangeiros adaptados, sente-se um certo desfasamento, uma incapacidade de satirizar realmente os govemantes.
A gravura era uma arte incipiente no nosso país, quase ignorada pelos artistas plásticos, mal apreendida pelos nossos artesãos, não podendo senão viver da adaptação de obras estrangeiras importadas, ou da exploração da veia satírica popular, grosseira e rudimentar.
A gravura erudita que se fazia, com um ou outro artista de melhor qualidade, era essencialmente simbó1ica, com predomínio de temas religiósos. E é no âmbito desta gravura erudita que descobrimos a primeira estampa «caricatural» criada por um artista nacional. É de Vieira Lusitano, feita a cobre, criada como ataque ao escultor espanhol Felipe Diogo de Castro, como «desafronta da própria honra, ou represália de ingratidões recebidas». É um exemplar único de sátira erudita.
O desenvolvimento destas gravuras populares, é uma consequência da evoluçao do aparecimento da imprensa em Portugal. Contudo datar o nascimento da Imprensa em Portugal não será pacífico, apontando uns a data de 1625 com as 'Relações de Severino de Faria", indicando outros 1641 com a "Gazeta em Que se Relata as Novas Todas Que Houve nesta Corte e Que Vieram de Várias partes no Mês deNovembro de 1641".
O mesmo poderá acontecer com a Caricatura na Imprensa Portuguesa, porque já antes de 1847 (há mais de 150 anos) surgiram desenhos satíricos impressos, contudo os factores periodicidade, encadeamento e conteúdo específico levam-me a datar 1847 para a Caricatura, e 1641 para a maioria dos historiadores da Imprensa.
As “Relações" eram folhas publicadas sem regularidade, e apenas para relatar de quando em vez um acontecimento importante. A "Gazeta" era já uma publicação mensal com noticias varias e sistemáticas. Entre estes dois géneros haviam folhas volantes (Normalmente panfletárias, e onde a gravura teve grande importância), anúncios oficiais e privados...
Quem tinha acesso a este meio de comunicação era o restrito núcleo de alfabetizados (e seus correligionários a quem eles lhes liam as novas), ou seja senhores do poder, das leis, da intelectualidade, que dessa forma cada vez mais fácll, podiam divulgar o que lhes convinha.
Os Reis e governantes de imediato sentiram a força dessa "arma" e logo em 1627 (26 de Janeiro) Filipe III impõe severas restrições ao uso da Tipografia, secundado em 1643 por D. João 1V com novas regulamentações, colocando-a quase como privilégio régio.
Para além da evolução dos processos tipográficos, a melhoria das comunicações e das relações postais levaram a um aumento do interesse público, e a uma certa proliferação de "Gazetas" e outra imprensa. Testemunho dessa evolução, e adaptação governamental, está a criação a 5 de Abril de 1768 da Real Mesa Censória, não apenas para livros, mas para toda a imprensa.
As limitações à Liberdade de expressão será uma constante da nossa imprensa, como foi uma constante da nossa história. Os nossos dirigentes, com a intolerância cató1ica como base de religião de estado, conseguiu ao longo de séculos subverter a mentalidade do povo, enclausurando-o num "provincianismo" e "tacanhez de espirito" como triunfo da moral, da ordem, da "paz social", dos "brandos costumes".
Utilizando a Inquisição, e demais formulas policiais, conseguiu-se refrear o espirito aventureiro que nos lançou para novos mundos, conseguiu-se castrar o espirito inventivo que nos tinha colocado nas vanguardas técnicas. O belo jardim à beira-mar plantado estava de costas viradas para a Europa, encerrando-se numa nostalgia sebastianista e fadista, conservadora e aterrorizadora, lutando contra as inovações, através da desinformação e deformação em que a Censura foi arma fundamental.
Com tudo isto a imprensa sofreu, e os diferentes saltos evolutivos foram-se verificando em certos momentos de abertura, ou por acção de estrangeirados. Naturalmente seriam as invasões francesas, seguidas pelas guerras liberais que dariam a grande reviravolta na Imprensa Portuguesa.
Estes impressores, e gravadores eram fundamentalmente artesãos anónimos (naturalmente havia um responsável do jornal que tinha que dar a cara perante o Estado, a Inquisição) que procuravam veicular o sentimento popular de revolta contra o poder. É dentro desse lote de trabalhos que está certamente o célebre desenho, descrito por alguns historiadores, que apareceu colado no muro do Paço da Bemposta, aquando da fuga de D. Joao VI para o Brasil. Nesse desenho via-se o rei, de pernas tortas e cornudo, sendo insultado pela nação miserável, abandonada e traida por aquele.
A critica popular, que já encontramos nessas artes rudimentares do povo, insuflou-se com os ventos liberais. Nas guerras napoleónicas os trabalhos graficos ingleses e franceses tiveram maior propagação cá, como campanha e contracampanha das forças em litigio, instigando o povo ao humor crítico, à sátira panfletária.
A violência politica, a instabilidade dos regimes e da liberdade de pensamento, reflectia-se na vida da sociedade como defesa radical das posições, para as quais a Imprensa foi um importante suporte. A hist6ria da produção jomalística a partir do século XIX será a história da tolerância ou intolerância, da liberdade de imprensa ou a castração pelas «leis das rolhas». Significativo desta dependência podem ser os números seguintes: em 1836, período de liberdade, há 67 jomais em 1850, com a implantação da «lei das rolhas», desce para 15 os jornais publicados.
Como breve viagem pela legislação neste principio de século na questão de Liberdade de Imprensa defendida pelos Liberais, podemos dizer que logo a 21 de Setembro de 1820, uma Portaria do Govemo Provisório regulamente a Censura Prévia, criando alguma liberdade de Imprensa, sem aderir plenamente aos ideais liberais de total liberdade. Contudo a 20 de Março de 1821 surge o Decreto que extingue o Tribunal do Santo Oficio, e a 4 de Julho de 1821, segundo projecto de Soares Franco, é abolida oficialmente a Censura Prévia, e regulamentado o exercicio da Liberdade de Imprensa. A 23 de Setembro de 1822 é promulgada a primeira Constituição Portuguesa, na qual se defende a Liberdade de Imprensa.
Dentro do pr6prio grupo Liberal se encontram varias clivagens de opinião quanto à necessidade ou não da existência de controle sobre a Imprensa, complementada pelos absolutistas incondicionais apoiantes da existência, e dessa forma se verificará um constante rodopio legislativo, ou de utilização da opressão ao longo dos anos.
Deste modo a 2 de Junho de 1823, com a Vilafrancada regressa a repressão, com confirmação legal a 6 de Março de 1824, restituindo à Censura as restrições da lei de 17 de Dezembro de 1794.
A 29 de Abril de 1826 a Nova Carta Constitucional impõe a Liberdade de Expressão, Pensamento e de Imprensa, com referência à proibição a qualquer espécie de Censura. Contudo a 18 de Agosto de 1826 surgem "Instruções" para reprimir "abusos". Haverá posteriormente decretos a 23 de Setembro de 1826, a 20 de Junho, 17 de Agosto e 13 de Setembro de 1827, assim como a 16 de Agosto de 1828 que criarão um Comissão de Censura, e limitações ao direito de impressão. As restrições não visavam apenas o conteúdo, mas também a autoria, ou a propriedade das obras impressas.
A 28 de Agosto de 1830 a Regência da Terceira liberaliza a Liberdade de Imprensa, e a 22 de Dezembro de 1834 Decreta-se a total Liberdade de Imprensa, legalizada na revisão Constitucional de 4 de Abril de 1838 , onde se determina que “todo o cidadão pode comunicar os seus pensamentos pela Imprensa ou por qualquer outro modo, sem dependência de Censura Prévia”.
Existem diversos jornais de burlesco, onde cada facção procura denegrir o mais vilmente os que não pensam como eles. Verificamos que pelo menos desde o princípio do século, e principalmente depois da vitória dos vintistas que introduziram a litografia, a gravura satírica ganhou em Portugal um espaço, 'medíocre' esteticamente, mas fundamental como arma política. Na realidade a caricatura, ou o humor satírico sempre foi mais forte em Portugal pelas letras que pelo desenho (hoje verifica-se o contrário), e a caricatura jomalística desenvolve-se primeiros pelas letras noticiosas, e só depois se aventura na imagem.
1834 será a grande viragem e salto qualitativo na nossa imprensa. Para alem da má qualidade de papel, havia má qualidade de impressão com prelos em madeira, muitas das vezes portáteis. Em 1835 surgem os primeiros prelos mecânicos, e a litografia vai substituindo a gravura em madeira (as primeiras gravuras na nossa imprensa datam de 1716). Em relação à sátira gráfica verificam-se várias experiências, fundamentalmente com a importação de gravuras, as quais eram adaptadas e traduzidas para a nossa realidade, e distribuídas normalmente como Folhas Volantes. De 1837 temos referência de um jornal intitulado "A Caricatura", onde o burlesco caricatural é literário, e não temos conhecimento de ter incorporado qualquer gravura, mesmo em folhas soltas.
Nesse ano o jornal "Arquivo Pitoresco" publica desenhos de Hogarth, provenientes da revista “Penny Magazine" de Londres (importação essa que continuaria nos anos 50 pela mão de "O Panorama").
Em 1842 Costa Cabral ao tomar o poder, restaura a Carta, e decreta a Censura Prévia numa opressão reciproca ao aumento da sua impopularidade. De 42 a 48 publica-se o jornal “A Macaca” onde eram inseridas folhas satíricas numeradas.
Sobre o aparecimento da caricatura na Imprensa temos um testemunho de Rocha Martins publicado em "Os Serões" (de Setembro de 1909) que nos diz:
"Do tempo dos franceses a EI-rei D. Fernando"
A caricatura deve ter nascido na hora em que o homem sentiu a vontade vingadora de mostrar o seu semelhante exteriorizando-lbe os defeitos e castigando-o em traços que fossem ao mesmo tempo rasgões d' armas afiadas e bordoadas arlequinescas de matracas cómicas e ruidosas. A essa ânsia de troça não escaparam nem os deuses nem os lmperadores; as faces imortais alargaramse, cresceram, tumificaram-se e os vultos augustos e sagrados apareceram de pés de cabra e orelhas de burro com que os artistas, mesmo nas mais remotas idades, se vingaram dos dominadores. Desde Antriphilo, metido nas enxúndias d'um suíno até Napoleão encarnado na Besta da Apocalypse, desde as macabras exibições de Goya ás endiabradas cargas de Gavarn, desde D. João VI minotaurisado até ao Sr. José Luciano em fraldas, a caricatura tem marcado com o seu ferrete contundente e guisalhante, os crimes, os maus actos, as tranquibérnias, as afectações, besuntado com irreverências castigadoras as faces mais celebres, não poupando, não transigindo, não se curvando. A caricatura é das artes a única que não pode ajoelhar diante dos poderosos; é aqueles que não pode viver senão ridicularizando; a única que ficou filha da revolta e eternamente revoltada como no seu inicio, sem o amoldado fácil da literatura, da musica, da poesia, da escultura que bastas vezes sagram em apologias, em hinos, em odes, em monumentos aqueles que a caricatura abexigou com maior justiça.
Enquanto historiadores graves, pintores famosos, poetas celebres, escultores distintos e inspirados músicos celebravam os dotes do senhor D. João VI, as bondades e virtudes do príncipe fugido para o Brasil n' um êxodo realengo e cortesanesco, diante dos franceses invasores, aparecia nos muros do paço da Bemposta uma caricatura - uma das mais antigas de Portugal - onde o marido de Carlota Joaquina aparece de pernas tortas, barriga saliente, a cabeça com os apêndices do demónio n'uma caraça de ruminante de cuja boca saia uma frase caracterisadora e uma alusão aos 200 milhões de cruzados que se dizia tinham ido na armada com a côrte acobardada e foragida. À esquerda surgia a nação com uma perna de pau e nasua frente o exército, os empregados, os operários, os ricos exclamavam: «O meu soldo, o meu ordenado, o meu salário, as minhas tenças!» A nação, segundo uma bandeirola que lhe saia da boca, dirigia-se ao príncipe n'estes termos bem pouco respeitosos: Ouvi, cruel, a voz dos vossos filhos. 0 que levas não é teu. És um ladrão. Ficamos pobres e infamados! Aparecia ainda uma fileira de frades e de lobinhos, n'uma alusão aos Lobatos, favoritos de D. João; o seu conselho privado e a Inglaterra de gorro d'algodão, bradando: Vamos ! Vamos ! Por detrás do conselho estava escrito: Se veem os 200 milhões, de Londres não voltam. Bela ocasião para zombar dos credores. Nada de satisfações e que se regalem com os franceses! No alto do papel havia o seguinte dístico: A nação mais valorosa, mais fiel e menos resluta !
Tal é a primeira caricatura portuguesa em que se castiga um soberano n' uma explosão de cólera e com uma risada galhofeira. Em pleno domínio dos franceses o ridículo das caricaturas secretas ia atingir Napolão, Josephina, os reis da casa imperial como n'uma celebre estampa, intitulada o Dragão e a Besta, na qual se dá á imperatriz dos franceses o nome com que lhe castigavam algumas das suas escapadas amorosas do tempo de Barras, e nas caleças de viagem do período das vitorias na Itália. Há n'essa estampa, com um ódio profundo, uma superstição marcada e uma sátira terrível que a expressar-se n'uma gargalhada seria áspera, sarcástica, epiléptica. Muitas outras se espalharam, pelo país e em 1809 aparecia uma que representava Bonaparte de jornada para o inferno. O imperador lá vai, de espada nua, encavalitado no demónio, mais feio que é possível imaginar, com as suas asas de morcego, o rabo em fouce, a bocarra aberta, carregando para o seu antro aquele que devia ainda, em Santa Helena receber pelos jornais os insultos que a caricatura de todo mundo lbe enviava.
Quando D. Miguel reinava também n'uma meia caricatura se troçavam os constitucionais. O rei, com o seu belo rosto, sagrado por um anjo que lhe trazia a corôa, protegido pela Virgem, que do céu olhava, nada tinha de caricatura, antes estava mais aformoseado; mas, em compensação, por debaixo do trono três desgraçados constituicionais hediondos, um d’eles com orelhas asininas, outro com a trolha dos pedreiros livres, o terceiro de guedelha hirsuta, eram bem caricaturais segurando o seu letreiro onde se lê:
Pedreiros livres
E malhados
Debaixo do trono
São esmagados
A caricatura, porém, só chega a um certo desenvolvimento em Portugal, quando os jornais se atrevem a publica-la, após a implantação do constitucionalismo que fora celebrado em gravuras lisonjeiras e alegóricas nas quais D. Pedro salvava o país - um barbudo vestido d’arnez - partindo-lhe os grilhões avassaladores e D. Miguel aparecia calcado aos pés do irmão como um demónio sob o arcanjo vingador. Era a represália das orelhas de burro com que se tinham restituido a alguns dos constitucionais as suas primitivas formas tanto pelo símbolo da sua inteligência como pela fúria com que depois entraram a escoucinhar na liberdade. A D.Pedro em vez de caricaturas fizeram cantigas revoltantes e apatacaram-no em S. Carlos outros demolidores mais práticos, mas D. Maria II e seu marido, D. Fernando, que também fez caricaturas, sofreram os rudes embates d’essa arte que começava a surgir nas paginas iconoclastas dos jornaes.
No Procurador dos Povos, folha volante, um tal Filgueiras traçava, embora sem vigor, pálida, desengonçadamente, os perfis dos soberanos. 0 rei era um nabo muito alto, fardado de marechal; a rainha uma mulheraça gorda que quase sempre se parecia e muito com D. Maria II.
Após a batalha de Torres Vedras lá aparece na janela do paço saudando um cortejo ratão que desfila grotesca e singularmente e D. Fernando entre os ministros, n’uma outra página, está todo empertigado com a sua cabeça vegetal n’uma irreverência de tal ordem, para o tempo, que chega a admirar. Então aparecem outros artistas quase todos assinando os trabalhos com pseudónimos ou com simples iniciais não indo, na peugada do primeiro, avançando de dia para dia a audácia das legendas que devia chegar ao máximo após o Cabralismo em 1846. Referindo-se a expulsão dos frades dos seus conventos há uma caricatura com o seguinte titulo: Os roubados pedindo esmola aos ladrões ! D’um lado estão os religiosos de mão estendida, do outro a ministralhada radiante. Portugal era já representado n’esse tempo por um esqueleto a que se vestia um resto d’armadura e quase sempre aparecia a pontapear ministros em curvaturas pastuscas, de tíbia vingadora. Alguns artistas punham os caricaturistas apenas com deformações nos corpos, conservando-lhes os rostos ou para serem assim bem conhecidos ou por deficiências de poderem marca-los nas disformidades de traço o que são a base da caricatura.
As impertinâncias choviam: o ataque era constante e, apesar do grosseiro trabalho, algumas d’essas paginas teem graça pelo arrojo e pela intenção, pelo singelo e inexperiente traço com que se procurava ferir aqueles que não cumpriam os seus deveres e que os jornais muitas vezes, cheios de receio, poupavam. É n’esse periodo que começa a afirmar-se a caricatura política mesmo no estrangeiro, como uma arma de rebelião com que a França ia preparando um pouco a sua república de 48, depois de ter perfurado as enxúndias de Luóz XVIII, a côrte beata de Carlos X e o burguesismo de Luíz Filippe.
Chega-se ao máximo do arrojo; os reis passam a ser do domínio comum desde que transigiram e os grandes personagens, mascardos com os seus defeitos faziam rir despegadamente o povo.
Segundo Teixeira de Carvalho ( in “Arte e Vida” nº 5 em 1905) " A caricatura levou tempo a aclimar em Portugal. Foi importada do estrangeiro nas gravuras que o movimento de ilustrações popuIares, que começa a notar-se na Imprensa portuguesa por 1837, vulgarizou no nosso pais. /.../
/.../ Há mais de uma gravura, cuja intenção caricatural‚ inestimável e que se refere á vida politica portugueza, antes das luctas da invasão napoleónica; mas são de artistas estrangeiros - /.../ que, nem indirectamente pela acção sobre artistas nossos, influiram no movimento da arte nacional.”
"/.../ Poucas, e sem valor, são as caricaturas relativa à invasão napoleónica, que foi tratada tão magistralmente pela caricatura inglesa. Os retratos de Napoleao, e a figuração da sua arvore genea1ógica, espalhados por Portugal, têem o aspecto caticatural pela sua inferioridade dos artistas que as executaram. Encontramos um arremedo leve de caricatura nas façanhas do nosso exímio artilheiro João Farinha, e nos desenhos das "bravuras" dos nossos soldados de cavaleria contra os soldados franceses, grito de glória que a inexperiência converteu num motivo caricatural."
" Alguma caricatura de valor que aparece é copia de trabalho estrangeiro." ,
“ É necessário chegarmos ás lutas liberais para vermos aparecer a caricatura política em Portugal."
"N’esse longo período de luta, a caricatura nasce e desenvolve-se. Cria-a o povo. É na industria popular que aparece, na literatura de cordel, na cerâmica patriótica de que restam tão raros exemplares."
"/.../ Os desenhistas desconhecidos, que assinam, quando assinam, com pseudónimos, não eram artistas, eram apenas pessoas em que se reconhecera habilidade para fazer um retrato semelhante de um adversario político."
“/.../ 0 insulto, as alusões caluniosas á vida privada, que nem a honra da família respeitavam, e que desenhavam pacientemente com o tracejar delicado d’um miniaturista, para tornar bem conhecidas as figuras femininas, a quem se faziam as acusações mais torpes, sem respeitar-lhes o caracter de esposas e de mães, tudo é caricaturado n' essa época agitada da luta á mão armada nas aldeias, como nas ruas mais populosas da cidade".
Se vamos encontrando gravuras satíricas desde o princípio do século, algumas já de autoria nacional, porque não coincidir o nascimento da caricatura com essas gravuras ?
A CARICATURA POLÍTICA EM PORTUGAL
O espirito do grotesco e do caricato no povo português desenvolver-se-à mais facilmente na palavra do que na imagem. Seria na poesia trovadoresca satírica, nas cantigas de escárnio e mal dizer ou nas farsas que esse espirito encontraria melhor acolhimento. O nosso povo tem a lingua afiada, pronta a criticar, a cobiçar, a pôr ao ridiculo todos aqueles que fogem à mediania, ou que põem em risco a passividade das suas vidas.
Foi também pela palavra representada que nasceu o primeiro grande satirico português, o dramaturgo Gil Vicente. Nas suas obras, a sociedade, o poder, a igreja, a vida e a morte são retalhadas, desmascaradas como nunca tinham sido, nem seriam tão cedo.
Gil Vicente foi uma estrela efémera, e mesmo que tivesse havido uma intenção de desenvolver uma faceta humorística, satirica na cultura portuguesa, a implantação da Inquisição viria a cortar o riso a todo aquele que se revelasse contra o poder, contra a ordem estabelecida. Para a 1greja o riso passou a ser um elemento diabó1ico para subverter a sociedade, e portanto condenável.
A Igreja, como rainha sobre reis, ditadura sobre as ditaduras, foi a castradora da inteligência, da criatividade, da liberdade dos povos. A lnquisição, para o português, não foi só o massacre de judeus, ou pseudo-judeus, o roubo de bens, a destruição do progresso e da cultura, mas também a destruição de um espirito satírico. Foram séculos que castraram até hoje a alma de um povo.
Calaram-se então as vozes mais sonantes da cultura, enquanto o povo, na capa do anonimato, da multidão silenciosa, foi desenvolvendo os subterfúgios para não morter sufocado, foi desenvolvendo as fórmulas possiveis de sátira. Sussurtando e desenvolvendo nas tascas e vendas o anedotário, esboçando sátiras na iconografia decorativa das artes populares, na cerâmica, nas figurinhas dos presépios, no azulejo, nos jugos, nas proas dos barcos, no triste fado… ridicularizando dessa forma o dia-a-dia do seu semelhante, foi a única forma de lutar contra as prepotência dos senhores, O grotesco escondia então o caricatural, a ingenuidade a sátira. Por essa razão o português consegue maior dose de humor nos peridos de opressão, de ditadura.
Seria nos finais do século XVII que de novo o humor ganharia condições para se desenvolver como critica, opinião, numa sociedade que procurava o progresso. Essa abertura verifica-se pela lmprensa, o suporte mais importante em toda a história do humor caricatural.
O folheto de cordel, os papeis volantes, foram um complemento ao trabalho desenvolvido pelas academias de arte que tinham descoberto a arte do 'jocosério', em jogos "humoristi”. Esses folhetos, sendo mais jocosos e menos « sérios», divulgaram-se pelas camadas menos letradas, perdendo a arte em estilo, ganhando em agressividade satirica.
Os primeiros folhetos foram aparecendo, pontualmente ao longo do .século XVIII, aliando-se a esses impressos escritos, gravuras a vulso, desenhos com um cunho satírico cuja intenção caricatural já é incontestável, apesar de nem sempre atingirem os objectivos propostos. São desenhos que em princípio criticam a situação política nacional, mas por serem trabalhos de artistas estrangeiros adaptados, sente-se um certo desfasamento, uma incapacidade de satirizar realmente os govemantes.
A gravura era uma arte incipiente no nosso país, quase ignorada pelos artistas plásticos, mal apreendida pelos nossos artesãos, não podendo senão viver da adaptação de obras estrangeiras importadas, ou da exploração da veia satírica popular, grosseira e rudimentar.
A gravura erudita que se fazia, com um ou outro artista de melhor qualidade, era essencialmente simbó1ica, com predomínio de temas religiósos. E é no âmbito desta gravura erudita que descobrimos a primeira estampa «caricatural» criada por um artista nacional. É de Vieira Lusitano, feita a cobre, criada como ataque ao escultor espanhol Felipe Diogo de Castro, como «desafronta da própria honra, ou represália de ingratidões recebidas». É um exemplar único de sátira erudita.
O desenvolvimento destas gravuras populares, é uma consequência da evoluçao do aparecimento da imprensa em Portugal. Contudo datar o nascimento da Imprensa em Portugal não será pacífico, apontando uns a data de 1625 com as 'Relações de Severino de Faria", indicando outros 1641 com a "Gazeta em Que se Relata as Novas Todas Que Houve nesta Corte e Que Vieram de Várias partes no Mês deNovembro de 1641".
O mesmo poderá acontecer com a Caricatura na Imprensa Portuguesa, porque já antes de 1847 (há mais de 150 anos) surgiram desenhos satíricos impressos, contudo os factores periodicidade, encadeamento e conteúdo específico levam-me a datar 1847 para a Caricatura, e 1641 para a maioria dos historiadores da Imprensa.
As “Relações" eram folhas publicadas sem regularidade, e apenas para relatar de quando em vez um acontecimento importante. A "Gazeta" era já uma publicação mensal com noticias varias e sistemáticas. Entre estes dois géneros haviam folhas volantes (Normalmente panfletárias, e onde a gravura teve grande importância), anúncios oficiais e privados...
Quem tinha acesso a este meio de comunicação era o restrito núcleo de alfabetizados (e seus correligionários a quem eles lhes liam as novas), ou seja senhores do poder, das leis, da intelectualidade, que dessa forma cada vez mais fácll, podiam divulgar o que lhes convinha.
Os Reis e governantes de imediato sentiram a força dessa "arma" e logo em 1627 (26 de Janeiro) Filipe III impõe severas restrições ao uso da Tipografia, secundado em 1643 por D. João 1V com novas regulamentações, colocando-a quase como privilégio régio.
Para além da evolução dos processos tipográficos, a melhoria das comunicações e das relações postais levaram a um aumento do interesse público, e a uma certa proliferação de "Gazetas" e outra imprensa. Testemunho dessa evolução, e adaptação governamental, está a criação a 5 de Abril de 1768 da Real Mesa Censória, não apenas para livros, mas para toda a imprensa.
As limitações à Liberdade de expressão será uma constante da nossa imprensa, como foi uma constante da nossa história. Os nossos dirigentes, com a intolerância cató1ica como base de religião de estado, conseguiu ao longo de séculos subverter a mentalidade do povo, enclausurando-o num "provincianismo" e "tacanhez de espirito" como triunfo da moral, da ordem, da "paz social", dos "brandos costumes".
Utilizando a Inquisição, e demais formulas policiais, conseguiu-se refrear o espirito aventureiro que nos lançou para novos mundos, conseguiu-se castrar o espirito inventivo que nos tinha colocado nas vanguardas técnicas. O belo jardim à beira-mar plantado estava de costas viradas para a Europa, encerrando-se numa nostalgia sebastianista e fadista, conservadora e aterrorizadora, lutando contra as inovações, através da desinformação e deformação em que a Censura foi arma fundamental.
Com tudo isto a imprensa sofreu, e os diferentes saltos evolutivos foram-se verificando em certos momentos de abertura, ou por acção de estrangeirados. Naturalmente seriam as invasões francesas, seguidas pelas guerras liberais que dariam a grande reviravolta na Imprensa Portuguesa.
Estes impressores, e gravadores eram fundamentalmente artesãos anónimos (naturalmente havia um responsável do jornal que tinha que dar a cara perante o Estado, a Inquisição) que procuravam veicular o sentimento popular de revolta contra o poder. É dentro desse lote de trabalhos que está certamente o célebre desenho, descrito por alguns historiadores, que apareceu colado no muro do Paço da Bemposta, aquando da fuga de D. Joao VI para o Brasil. Nesse desenho via-se o rei, de pernas tortas e cornudo, sendo insultado pela nação miserável, abandonada e traida por aquele.
A critica popular, que já encontramos nessas artes rudimentares do povo, insuflou-se com os ventos liberais. Nas guerras napoleónicas os trabalhos graficos ingleses e franceses tiveram maior propagação cá, como campanha e contracampanha das forças em litigio, instigando o povo ao humor crítico, à sátira panfletária.
A violência politica, a instabilidade dos regimes e da liberdade de pensamento, reflectia-se na vida da sociedade como defesa radical das posições, para as quais a Imprensa foi um importante suporte. A hist6ria da produção jomalística a partir do século XIX será a história da tolerância ou intolerância, da liberdade de imprensa ou a castração pelas «leis das rolhas». Significativo desta dependência podem ser os números seguintes: em 1836, período de liberdade, há 67 jomais em 1850, com a implantação da «lei das rolhas», desce para 15 os jornais publicados.
Como breve viagem pela legislação neste principio de século na questão de Liberdade de Imprensa defendida pelos Liberais, podemos dizer que logo a 21 de Setembro de 1820, uma Portaria do Govemo Provisório regulamente a Censura Prévia, criando alguma liberdade de Imprensa, sem aderir plenamente aos ideais liberais de total liberdade. Contudo a 20 de Março de 1821 surge o Decreto que extingue o Tribunal do Santo Oficio, e a 4 de Julho de 1821, segundo projecto de Soares Franco, é abolida oficialmente a Censura Prévia, e regulamentado o exercicio da Liberdade de Imprensa. A 23 de Setembro de 1822 é promulgada a primeira Constituição Portuguesa, na qual se defende a Liberdade de Imprensa.
Dentro do pr6prio grupo Liberal se encontram varias clivagens de opinião quanto à necessidade ou não da existência de controle sobre a Imprensa, complementada pelos absolutistas incondicionais apoiantes da existência, e dessa forma se verificará um constante rodopio legislativo, ou de utilização da opressão ao longo dos anos.
Deste modo a 2 de Junho de 1823, com a Vilafrancada regressa a repressão, com confirmação legal a 6 de Março de 1824, restituindo à Censura as restrições da lei de 17 de Dezembro de 1794.
A 29 de Abril de 1826 a Nova Carta Constitucional impõe a Liberdade de Expressão, Pensamento e de Imprensa, com referência à proibição a qualquer espécie de Censura. Contudo a 18 de Agosto de 1826 surgem "Instruções" para reprimir "abusos". Haverá posteriormente decretos a 23 de Setembro de 1826, a 20 de Junho, 17 de Agosto e 13 de Setembro de 1827, assim como a 16 de Agosto de 1828 que criarão um Comissão de Censura, e limitações ao direito de impressão. As restrições não visavam apenas o conteúdo, mas também a autoria, ou a propriedade das obras impressas.
A 28 de Agosto de 1830 a Regência da Terceira liberaliza a Liberdade de Imprensa, e a 22 de Dezembro de 1834 Decreta-se a total Liberdade de Imprensa, legalizada na revisão Constitucional de 4 de Abril de 1838 , onde se determina que “todo o cidadão pode comunicar os seus pensamentos pela Imprensa ou por qualquer outro modo, sem dependência de Censura Prévia”.
Existem diversos jornais de burlesco, onde cada facção procura denegrir o mais vilmente os que não pensam como eles. Verificamos que pelo menos desde o princípio do século, e principalmente depois da vitória dos vintistas que introduziram a litografia, a gravura satírica ganhou em Portugal um espaço, 'medíocre' esteticamente, mas fundamental como arma política. Na realidade a caricatura, ou o humor satírico sempre foi mais forte em Portugal pelas letras que pelo desenho (hoje verifica-se o contrário), e a caricatura jomalística desenvolve-se primeiros pelas letras noticiosas, e só depois se aventura na imagem.
1834 será a grande viragem e salto qualitativo na nossa imprensa. Para alem da má qualidade de papel, havia má qualidade de impressão com prelos em madeira, muitas das vezes portáteis. Em 1835 surgem os primeiros prelos mecânicos, e a litografia vai substituindo a gravura em madeira (as primeiras gravuras na nossa imprensa datam de 1716). Em relação à sátira gráfica verificam-se várias experiências, fundamentalmente com a importação de gravuras, as quais eram adaptadas e traduzidas para a nossa realidade, e distribuídas normalmente como Folhas Volantes. De 1837 temos referência de um jornal intitulado "A Caricatura", onde o burlesco caricatural é literário, e não temos conhecimento de ter incorporado qualquer gravura, mesmo em folhas soltas.
Nesse ano o jornal "Arquivo Pitoresco" publica desenhos de Hogarth, provenientes da revista “Penny Magazine" de Londres (importação essa que continuaria nos anos 50 pela mão de "O Panorama").
Em 1842 Costa Cabral ao tomar o poder, restaura a Carta, e decreta a Censura Prévia numa opressão reciproca ao aumento da sua impopularidade. De 42 a 48 publica-se o jornal “A Macaca” onde eram inseridas folhas satíricas numeradas.
Sobre o aparecimento da caricatura na Imprensa temos um testemunho de Rocha Martins publicado em "Os Serões" (de Setembro de 1909) que nos diz:
"Do tempo dos franceses a EI-rei D. Fernando"
A caricatura deve ter nascido na hora em que o homem sentiu a vontade vingadora de mostrar o seu semelhante exteriorizando-lbe os defeitos e castigando-o em traços que fossem ao mesmo tempo rasgões d' armas afiadas e bordoadas arlequinescas de matracas cómicas e ruidosas. A essa ânsia de troça não escaparam nem os deuses nem os lmperadores; as faces imortais alargaramse, cresceram, tumificaram-se e os vultos augustos e sagrados apareceram de pés de cabra e orelhas de burro com que os artistas, mesmo nas mais remotas idades, se vingaram dos dominadores. Desde Antriphilo, metido nas enxúndias d'um suíno até Napoleão encarnado na Besta da Apocalypse, desde as macabras exibições de Goya ás endiabradas cargas de Gavarn, desde D. João VI minotaurisado até ao Sr. José Luciano em fraldas, a caricatura tem marcado com o seu ferrete contundente e guisalhante, os crimes, os maus actos, as tranquibérnias, as afectações, besuntado com irreverências castigadoras as faces mais celebres, não poupando, não transigindo, não se curvando. A caricatura é das artes a única que não pode ajoelhar diante dos poderosos; é aqueles que não pode viver senão ridicularizando; a única que ficou filha da revolta e eternamente revoltada como no seu inicio, sem o amoldado fácil da literatura, da musica, da poesia, da escultura que bastas vezes sagram em apologias, em hinos, em odes, em monumentos aqueles que a caricatura abexigou com maior justiça.
Enquanto historiadores graves, pintores famosos, poetas celebres, escultores distintos e inspirados músicos celebravam os dotes do senhor D. João VI, as bondades e virtudes do príncipe fugido para o Brasil n' um êxodo realengo e cortesanesco, diante dos franceses invasores, aparecia nos muros do paço da Bemposta uma caricatura - uma das mais antigas de Portugal - onde o marido de Carlota Joaquina aparece de pernas tortas, barriga saliente, a cabeça com os apêndices do demónio n'uma caraça de ruminante de cuja boca saia uma frase caracterisadora e uma alusão aos 200 milhões de cruzados que se dizia tinham ido na armada com a côrte acobardada e foragida. À esquerda surgia a nação com uma perna de pau e nasua frente o exército, os empregados, os operários, os ricos exclamavam: «O meu soldo, o meu ordenado, o meu salário, as minhas tenças!» A nação, segundo uma bandeirola que lhe saia da boca, dirigia-se ao príncipe n'estes termos bem pouco respeitosos: Ouvi, cruel, a voz dos vossos filhos. 0 que levas não é teu. És um ladrão. Ficamos pobres e infamados! Aparecia ainda uma fileira de frades e de lobinhos, n'uma alusão aos Lobatos, favoritos de D. João; o seu conselho privado e a Inglaterra de gorro d'algodão, bradando: Vamos ! Vamos ! Por detrás do conselho estava escrito: Se veem os 200 milhões, de Londres não voltam. Bela ocasião para zombar dos credores. Nada de satisfações e que se regalem com os franceses! No alto do papel havia o seguinte dístico: A nação mais valorosa, mais fiel e menos resluta !
Tal é a primeira caricatura portuguesa em que se castiga um soberano n' uma explosão de cólera e com uma risada galhofeira. Em pleno domínio dos franceses o ridículo das caricaturas secretas ia atingir Napolão, Josephina, os reis da casa imperial como n'uma celebre estampa, intitulada o Dragão e a Besta, na qual se dá á imperatriz dos franceses o nome com que lhe castigavam algumas das suas escapadas amorosas do tempo de Barras, e nas caleças de viagem do período das vitorias na Itália. Há n'essa estampa, com um ódio profundo, uma superstição marcada e uma sátira terrível que a expressar-se n'uma gargalhada seria áspera, sarcástica, epiléptica. Muitas outras se espalharam, pelo país e em 1809 aparecia uma que representava Bonaparte de jornada para o inferno. O imperador lá vai, de espada nua, encavalitado no demónio, mais feio que é possível imaginar, com as suas asas de morcego, o rabo em fouce, a bocarra aberta, carregando para o seu antro aquele que devia ainda, em Santa Helena receber pelos jornais os insultos que a caricatura de todo mundo lbe enviava.
Quando D. Miguel reinava também n'uma meia caricatura se troçavam os constitucionais. O rei, com o seu belo rosto, sagrado por um anjo que lhe trazia a corôa, protegido pela Virgem, que do céu olhava, nada tinha de caricatura, antes estava mais aformoseado; mas, em compensação, por debaixo do trono três desgraçados constituicionais hediondos, um d’eles com orelhas asininas, outro com a trolha dos pedreiros livres, o terceiro de guedelha hirsuta, eram bem caricaturais segurando o seu letreiro onde se lê:
Pedreiros livres
E malhados
Debaixo do trono
São esmagados
A caricatura, porém, só chega a um certo desenvolvimento em Portugal, quando os jornais se atrevem a publica-la, após a implantação do constitucionalismo que fora celebrado em gravuras lisonjeiras e alegóricas nas quais D. Pedro salvava o país - um barbudo vestido d’arnez - partindo-lhe os grilhões avassaladores e D. Miguel aparecia calcado aos pés do irmão como um demónio sob o arcanjo vingador. Era a represália das orelhas de burro com que se tinham restituido a alguns dos constitucionais as suas primitivas formas tanto pelo símbolo da sua inteligência como pela fúria com que depois entraram a escoucinhar na liberdade. A D.Pedro em vez de caricaturas fizeram cantigas revoltantes e apatacaram-no em S. Carlos outros demolidores mais práticos, mas D. Maria II e seu marido, D. Fernando, que também fez caricaturas, sofreram os rudes embates d’essa arte que começava a surgir nas paginas iconoclastas dos jornaes.
No Procurador dos Povos, folha volante, um tal Filgueiras traçava, embora sem vigor, pálida, desengonçadamente, os perfis dos soberanos. 0 rei era um nabo muito alto, fardado de marechal; a rainha uma mulheraça gorda que quase sempre se parecia e muito com D. Maria II.
Após a batalha de Torres Vedras lá aparece na janela do paço saudando um cortejo ratão que desfila grotesca e singularmente e D. Fernando entre os ministros, n’uma outra página, está todo empertigado com a sua cabeça vegetal n’uma irreverência de tal ordem, para o tempo, que chega a admirar. Então aparecem outros artistas quase todos assinando os trabalhos com pseudónimos ou com simples iniciais não indo, na peugada do primeiro, avançando de dia para dia a audácia das legendas que devia chegar ao máximo após o Cabralismo em 1846. Referindo-se a expulsão dos frades dos seus conventos há uma caricatura com o seguinte titulo: Os roubados pedindo esmola aos ladrões ! D’um lado estão os religiosos de mão estendida, do outro a ministralhada radiante. Portugal era já representado n’esse tempo por um esqueleto a que se vestia um resto d’armadura e quase sempre aparecia a pontapear ministros em curvaturas pastuscas, de tíbia vingadora. Alguns artistas punham os caricaturistas apenas com deformações nos corpos, conservando-lhes os rostos ou para serem assim bem conhecidos ou por deficiências de poderem marca-los nas disformidades de traço o que são a base da caricatura.
As impertinâncias choviam: o ataque era constante e, apesar do grosseiro trabalho, algumas d’essas paginas teem graça pelo arrojo e pela intenção, pelo singelo e inexperiente traço com que se procurava ferir aqueles que não cumpriam os seus deveres e que os jornais muitas vezes, cheios de receio, poupavam. É n’esse periodo que começa a afirmar-se a caricatura política mesmo no estrangeiro, como uma arma de rebelião com que a França ia preparando um pouco a sua república de 48, depois de ter perfurado as enxúndias de Luóz XVIII, a côrte beata de Carlos X e o burguesismo de Luíz Filippe.
Chega-se ao máximo do arrojo; os reis passam a ser do domínio comum desde que transigiram e os grandes personagens, mascardos com os seus defeitos faziam rir despegadamente o povo.
Segundo Teixeira de Carvalho ( in “Arte e Vida” nº 5 em 1905) " A caricatura levou tempo a aclimar em Portugal. Foi importada do estrangeiro nas gravuras que o movimento de ilustrações popuIares, que começa a notar-se na Imprensa portuguesa por 1837, vulgarizou no nosso pais. /.../
/.../ Há mais de uma gravura, cuja intenção caricatural‚ inestimável e que se refere á vida politica portugueza, antes das luctas da invasão napoleónica; mas são de artistas estrangeiros - /.../ que, nem indirectamente pela acção sobre artistas nossos, influiram no movimento da arte nacional.”
"/.../ Poucas, e sem valor, são as caricaturas relativa à invasão napoleónica, que foi tratada tão magistralmente pela caricatura inglesa. Os retratos de Napoleao, e a figuração da sua arvore genea1ógica, espalhados por Portugal, têem o aspecto caticatural pela sua inferioridade dos artistas que as executaram. Encontramos um arremedo leve de caricatura nas façanhas do nosso exímio artilheiro João Farinha, e nos desenhos das "bravuras" dos nossos soldados de cavaleria contra os soldados franceses, grito de glória que a inexperiência converteu num motivo caricatural."
" Alguma caricatura de valor que aparece é copia de trabalho estrangeiro." ,
“ É necessário chegarmos ás lutas liberais para vermos aparecer a caricatura política em Portugal."
"N’esse longo período de luta, a caricatura nasce e desenvolve-se. Cria-a o povo. É na industria popular que aparece, na literatura de cordel, na cerâmica patriótica de que restam tão raros exemplares."
"/.../ Os desenhistas desconhecidos, que assinam, quando assinam, com pseudónimos, não eram artistas, eram apenas pessoas em que se reconhecera habilidade para fazer um retrato semelhante de um adversario político."
“/.../ 0 insulto, as alusões caluniosas á vida privada, que nem a honra da família respeitavam, e que desenhavam pacientemente com o tracejar delicado d’um miniaturista, para tornar bem conhecidas as figuras femininas, a quem se faziam as acusações mais torpes, sem respeitar-lhes o caracter de esposas e de mães, tudo é caricaturado n' essa época agitada da luta á mão armada nas aldeias, como nas ruas mais populosas da cidade".
Se vamos encontrando gravuras satíricas desde o princípio do século, algumas já de autoria nacional, porque não coincidir o nascimento da caricatura com essas gravuras ?