Monday, March 01, 2021

Caricaturas Crónicas - «A Quaresma do Humor – ou o desaparecimento de Francisco Zambujal» por Osvaldo Macedo de Sousa in Diário de Notícias de 22/4/1990

O humor português ficou mais pobre, num momento em que a pobreza se intensifica até no humor, com atitudes e ameaças.

 

Estava eu a escrever a minha crónica sobre a Quaresma do Humor actual, divagando sobre o hábito inquisitorial que domina cada vez mais o inconsciente, e o consciente censório da democracia portuguesa, quando fui informado da morte do grande mestre do humor desportivo Francisco Zambujal.

Não foi uma surpresa, visto infelizmente termos conhecimento da sua doença à longo tempo, mas apesar de estarmos à espera deste desfecho, é sempre um choque a perda de um «amigo» distante. O curioso é que eu nunca conheci pessoalmente Zambujal, mas trocamos correspondência desde 1984, e várias vezes conversamos ao telefone, o que me bastou para «conhecer» um pouco, para admirar, além da obra, o homem alegre, generoso e humilde que ele era.

A sua verdadeira profissão era o magistério, como se dizia professor primário, e em Faro muitas gerações de miúdos passaram pela sua cátedra. Esse conhecimento psicológico das crianças era sem dúvida uma das suas características de originalidade humorística, visto o humor ser, por um lado, um regresso à candura infantil e uma reminiscência da crueldade infantil perante os defeitos-verdades dos outros. Uma candura, porque o humor é um gesto de ternura perante alguém que merece a atenção, a glória, do lápis caricatural; uma crueldade porque põe a nu os defeitos, os erros, os vícios dos visados. Por vezes a crueldade sobrepõe-se à candura, e vice-versa, mas Zambujal sabia equilibrar estes dois gestos como um verdadeiro pedagogo, e daí o seu sucesso num mundo tão susceptível (por vezes infantil) como o é o do desporto, onde em nome de uma bola se desfazem e se criam amizades, onde a animalidade se sobrepõe muitas vezes à humanidade. Zambujal soube sempre estar por cima das querelas, criticando, ridicularizando, mas nunca ofendendo. E, se o humor é um gesto de inteligência, mais difícil é fazê-lo num mundo onde a inteligência falta em muitos dos que a apoiam, maior mérito tem Francisco Zambujal, maior acção têm os seus conhecimentos psicológicos e pedagógicos.

É este mestre, que escreveu nos seus desenhos a história dos últimos trinta anos de desporto, que deu alegria ao humor português, que acaba de desaparecer (morreu a 12 de abril). Porém, fica a sua obra para a eternidade, a qual deveria ser imediatamente reagrupada num álbum. Daqui lanço o desafio a uma editora, a um jornal, que eu me predisponho a fazer esse trabalho. (Acabaria por o fazer em 2010, com várias exposições em faro, realização de um painel de cerâmica a decorara a escola onde foi professor e edição do pequeno álbum «Francisco Zambujal, o Homem, o Farense, O Pedagogo, o Mestre da Caricatura»)

O humor português ficou mais pobre, num momento em que a pobreza se intensifica até no humor, com atitudes e ameaças.

Diz-se que as fórmulas humorísticas reduzem-se a doze, e vêm todas escritas na Bíblia, sendo tudo o resto variações sobre o tema. Naturalmente, o poder eclesiástico (de qualquer tendência)), que pregas a ressureição da esperânça, não concorda com este teorema, nem com nenhuma crítica á sua democraticidade, razão pela qual processou, perseguiu e condenou, ao longo da história, muitos humoristas, transformando esta arte como um tabu.

Se o espírito humorístico deste país é cada vez mais cinzento, com uma oposição cada vez menos irreverente e mais comprometida com os jogos «sérios» da política; se os meios de comunicação já se encontram em quaresma há mais de quarenta dias… não se prevê uma ressurreição a breve prazo, antes uma longa paixão, um calvário para todos os que sorriem com o pensamento.

Estas dissertações, serão apenas uma depressão temporal da Quaresma, da perda de um amigo, ou uma realidade?


Comments: Post a Comment



<< Home

This page is powered by Blogger. Isn't yours?