Tuesday, February 02, 2021

Caricaturas Crónicas: «João Martins – o humor antes e depois de Abril» por Osvaldo Macedo de Sousa in Diário de Notícias de 26/2/1989

 Foi um dos maiores humoristas do desporto e por vezes até utilizava os acontecimentos desportivos para veicular a crítica política.

 

Decorriam os anos cinquenta, quando era cada vez mais difícil fazer humor, já que os dinossauros tinham descartado quaisquer pretensões de esquerda ou de direita de levar este país no caminho da modernidade (ou modernismo).

Neste momento cinzento, um ou outro periódico humorístico pontuava o quotidiano com o riso possível, a tira-linhas e entrelinhas. Era o caso do «Mundo Ri», onde um dia o seu director, António Gomes de Almeida, recebe anonimamente umas tantas caricaturas dos grandes do desporto de então. Habituados a mistérios, publicaram os trabalhos, surgindo então da penumbra da humildade o João Martins, a propor continuação de colaboração.

João Martins é um algarvio de Portimão, onde nasceu a 7 de agosto de 1928. Aos 14 anos vem para Lisboa, completando os seus estudos na Escola Agrícola da Paiã (Odivelas). Nesse âmbito profissional acabaria por se empregar na Câmara Municipal de Lisboa, como chefe de Jardins (Zona do Campo Grande), e mais tarde como capataz na Roça Maurício de Brito, em Angola (num curto espaço de tempo).

A imagem que ele deixou, foi a de um homem humilde, mas pleno de graça. Carlos Pinhão escreveu mesmo que ele «abusava do direito de ser discreto, tímido, retraído nos contactos pessoais no dia-a-dia». Porém, a sua mulher, Margarida Martins, acrescenta: «Era introvertido, mas quando ganhava confiança era brincalhão, tinha sempre anedotas para contar».

O desenho humorístico, inato, começou a desenvolver-se no «Mundo Ri», prosseguindo depois no «Record», «Mundo Desportivo», «Parada da Paródia», «A Bola», «O Diário»… Nesta deambulação, foi acompanhado de perto por António Gomes de almeida que o levaria também para a empresa «Regisconta» (produtos de escritório onde AGA era director de marketing e comunicação), como gráfico, depois para os Parodiantes de Lisboa, como colaborador da «Parada da Paródia» (onde era o director do jornal) e da Agência de Publicidade dos Parodiantes. Ou seja, foi pela sua mão que Martins se desenvolveu no humor gráfico e entrou no mundo da publicidade.

Nesse campo, ele conquistaria também a notoriedade no universo dos desenhos animados, animação fotográfica, spots, cartazes… Um anúncio que ficaria como um clássico foi, por exemplo, o «Pois, pois, J. Pimenta». Trabalhou também para a Casa Valentim de Carvalho, Tele-Cine, Telefilm Mor…

Entretanto, tinha abandonado a CML, dedicando-se totalmente às artes gráficas, desmultiplicando-se em muitos empregos, numa azáfama enorme, e sem um ordenado fixo ao fim do mês, sem previdência…

Um local onde poderia ter entrado para os quadros da empresa, se a profissão de caricaturista tivesse um estatuto de jornalista, era em «A Bola», onde trabalhou durante cerca de 25 anos, dando-lhe uma força de intervenção em «bonecos» inesquecíveis, dando-lhe um grafismo que ainda hoje permanece. O último desenho que ele criou, foi para «A Bola».

Ele foi um dos maiores humoristas do desporto (e não só), utilizando por vezes os acontecimentos desportivos para veicular a crítica política. Se ele o fez, por vezes, no antes de Abril, no pós ele assumiria ao extremo a sátira política, como uma voz do povo, como um olhar da esquerda reivindicativa. Foi então que nasceu a sua personagem mais célebre, o Chikoboné que retrata «a sua experiência de cidadão comum» no quotidiano difícil que é a vida do povo. Ele é o Zé-Povinho dos anos revolucionário, mas um Zé desperto e não tão dormente como o de Raphael. Dizem que até a própria figura era o retrato de João Martins, ou seja, entrega total do artista em imagem e experiências no humor.

Ele empenhou-se profundamente na Revolução de Abril, assumindo o grito mais profundo das queixas, do sofrimento popular, ao ponto de diversos jornais estrangeiros «citarem» os seus desenhos como as melhores «crónicas» da realidade portuguesa de então (e de agora?). Este empenhamento custar-lhe-ia caro, como a muitos outros, no período depois do entusiasmo revolucionário do país.

O seu traço, bem característico da sua personalidade artística, é fruto das correntes estéticas dos anos sessenta, o modernismo de «linhas quebradas», conjugando com o grafismo «pop» e uma certa abstração da linha, nunca perdendo o essencial do naturalismo, como elemento de identificação e de melhor leitura do público. O humor é simples, directo e incisivo, assumindo-se como um dos artistas mais importantes dos anos sessenta e setenta do humorismo português.

Viria a morrer em Setembro de 1981. Nesse mesmo ano a editora Caminho editou um álbum que testemunha as suas grandes qualidades gráficas e humorísticas, numa antologia breve da obra imensa que criou.

Um outro livro que ficou como símbolo de beleza, poesia e humor, é a «Bicharada de Abril» feito em parceria com o Carlos Pinhão.

João Martins, um artista que certamente está ainda na memória dos leitores de jornais deste país.


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