Wednesday, January 06, 2021

Caricaturas Crónicas: «António Soares, o mundanismo humorístico por Osvaldo Macedo de Sousa in Diário de Notícias de 20/9/1987

António Soares é um daqueles artistas que, nascidos numa terra oitocentista em evolução lenta, quiseram empurra-la para uma certa vanguarda, para o século XX.

 

«Atender as necessidades espirituais do povo, comunicando com ele por intermédio de uma arte que fosse a expressão sincera do seu modo de ver, é questão que não entrou ainda no programa dos meus colegas, que até hoje têm feito arte que unicamente delicia a vista, sem no entanto ter fim nenhum útil.

E como a falta de observação deste princípio, conduz a uma desorientação que muito prejudica e contraria as suas aspirações, desde que os nossos artistas não sintam com grandeza, as coisas portuguesas e não façam sentir de uma maneira superior o seu lado belo, cairão forçosamente numa assimilação servil, como sobejamente o têm demonstrado.

Se os nossos artistas cultivassem sem snobismo o amor das nossas coisas, acabariam por se convencer de que nem só o estrangeiro tem carácter… Mas dirão agora os críticos: o que têm então os senhores feito até hoje? Olhe: temos trabalhado para a pasta, para os amigos, para a família e para V. Exª.

/…/ Não vejam em nós intuitos reaccionários de contemporizar com o passado; temos de fazer compreender a esses cavalheiros que Bordalo viveu no seu tempo e nós queremos começar a marcar o nosso». (Entrevista na «República» a 25/5/1914. Desta forma se manifestou um jovem artista, de nome António Soares, quando dava os seus primeiros passos nas artes.

António Soares é um daqueles artistas que, nascidos numa terra oitocentista em evolução lenta, quiseram empurra-la para uma certa vanguarda, para o século XX. Só que, a vida obriga-los-ia a contemporizar com a sociedade, e trabalhar para a «pasta» e para os amigos.

Natural de Lisboa, onde nasceu a 18 de Setembro de 1894, descobriu muito cedo os seus interesses artísticos. «Em verdes anos, por um acaso maravilhoso, veio-me para ás mãos o “Tratado de Pintura” de Leonardo da Vinci, em latim que li e reli, com o auxílio alheio, para o entender. Estava manifesto o segredo da minha vida».

Após esta descoberta vocacional, ingressou na Escola de Belas-Artes, em busca de uma base de sustentação, só que nessa escola o tempo estético tinha parado já há algum tempo, e em vez de paz só encontrou desorientação e dúvidas. Era uma juventude obrigada a viver num tempo que não era o seu.

«A minha geração começou a ter consciência de si, no período que se sucedeu à proclamação da República. Discutia-se e negava-se abundantemente. Como não podia ficar eternamente na crise de crescimento, assentámos em superar a anarquia em que fervíamos, decidindo-nos pelo passado ou pelo futuro. Interrogámos o estrangeiro e, depois de algumas hesitações, eu e outros rompemos a luta pelo nosso ideal». Essa luta, seria a introdução de uma certa vanguarda estética, conhecida por modernismo.

Essa pequena revolução entrou pela via humorística, e desta forma encontramos toda a primeira geração modernista a dar os seus primeiros passos «com graça». Só que essa, não era a sua verdadeira orientação filosófica e passados os humores juvenis, procuraram abandonar esta linha de irreverência crítica.

Porquê a via humorística? Primeiro, pela facilidade de exploração de um trabalho num campo artístico bem aceite e admirado na nossa sociedade, sendo ao mesmo tempo mais ou menos bem remunerado para o artista; em segundo, porque era mais fácil atingir os conceitos ditos modernistas na síntese da linha, do que na composição espacial e colorista da tela; terceiro, porque correspondia directamente a uma irreverência própria à juventude que despoletava o movimento.

António Soares era pois um humorista por circunstância estética, explorando um expressionismo sentimentalista, conjugado como mundanismo, o qual será o eixo de toda a sua obra. Companheiro de Christiano Cruz e Almada Negreiros, expositor nos Salões dos Humoristas, onde apresentou as suas primeiras obras em 1913, Soares nunca chegaria a libertar-se totalmente das regras apreendidas na Escola de Belas-artes.

Nos finais dos anos 20, o humorismo deixava de ser necessário como expressão e como sobrevivência jornalística, optando pela ilustração, pela decoração e cenografia. Neste último campo desenvolveria um vasto trabalho na maioria dos teatros da capital, e chegaria a trabalhar para o cinema português.

Pintor do mundanismo e da sensualidade, prolongaria no modernismo o sentimento decadentista, numa crise de evolução de um pintor em busca de um modernismo fauvista, na recusa do internacionalismo a favor do nacionalismo, na procura do «amor das nossas coisas» caindo no «snobismo» pseudo cosmopolita. No fundo, nunca deixaria de ser um modernista em admiração pelo oitocentismo: «Quais os seus pintores predilectos? – Columbano, Malhoa, Carlos Reis e António Ramalho, injustamente esquecido, Silva Porto e Pousão. Sinto que eles constituem o valioso escol do génio pictural da raça».


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