Wednesday, October 28, 2020

«A importância de se chamar Humorista» por Osvaldo Macedo de Sousa in «Trevim» de 5/1/1989

                Leal da Câmara já dizia «saber rir é já alguma coisa, mas fazer rir os outros é mais do que um talento. É quase uma caridade.»

Mas, será mesmo que esta atitude irreverente e «altruísta», esta expressão anti-séria é um valor importante numa sociedade honrada, bem composta, amante da tradição e do bom nome?

                Se o humor e a irreverencia, o exagero, a incongruência, a deformação das realidades, em que é que pode beneficiário individuo «bem educado», simples, honesto, «seriozinho»?

                Poderíamos então contrapor que o Homem é o único animal que ri! Sendo um elemento de distinção, deve ter um significado especial para a humanidade, não? Nesta linha de pensamento poderemos pois ir mais longe e afirmar que o homem ó ultrapassou o estado animal para o estado «sapiens» quando conheceu o riso, a forma suprema de sabedoria.

                Por que razão as alcoviteiras de uma aldeia, que são o poder sério de uma localidade; por que razão os políticos, governantes e demais senhores da «seriedade» nacional, têm medo do humor?

                O primeiro Homem que se riu do mundo, ao rir-se de si próprio, foi um Homem que perdeu a solidão nesse espasmo de dezoito músculos faciais e demais reacções físicas. Perdeu a solidão porque se reconheceu como um ser duplo, animal e humano, porque amou os seres mais próximos de si. O riso foi uma porta que se abriu na escuridão, como reconhecimento de si, dos outros e da oposição de ideias. Como diria Afrânio Peixoto: «o mundo seria um manicómio; os humoristas apenas uma espécie de loucos, com fracções de juízo, para perceberem que também são loucos, como aliás, os outros».

                É isso o que as pessoas ditas «sérias» temem: serem descobertas, no seu falso puritanismo, na falsa honestidade, na falsa caridade. Não há mais egoísmo, hipocrisia que numa pessoa profundamente séria.

                Um indivíduo aberto à crítica, à expressão irreverente de outras opiniões, à visão exagerada dos actos e atitudes, é um indivíduo que domina o mundo, que domina o saber, que põe a verdade acima da sua teimosia, da prepotência. Por essa razão, não há arte que seja mais a expressão estética da democracia, como o é o humor.

                Mas nem todo aquele que ri é um humorista, uma pessoa que gosta de humor, pois, não falando no riso como enfermidade mental ou física, há indivíduos em que a sua capacidade mental não aceita senão o anedotário ordinário e brejeiro; não aceita senão a crítica, a sátira ridicularizadora do outrem. A maioria das pessoas adoram rir dos outros, não com os outros. Detestam ver em «perigo» a sua imagem «séria», as suas ideias políticas, desportivas, religiosas e filosóficas. Em conclusão, o ter sentido de humor é a análise do grau de cultura e inteligência de cada um.

                A expressão máxima do individuo no humor, é reconhecer-se em toda a magnitude de defeitos e qualidades, é reconhecer os pontos fracos e fortes dos seus vizinhos, amigos e ideias.

                No outro lado de tudo isto, está o humorista-criador, o «herói», se é da simpatia do indivíduo; o «mau da fita» no caso de atacar as suas ideias, ou a sua imagem.

                E quem é este louco, que tem fracções de lucidez? Um apóstolo de verdades? Um individuo detentor da 3ª visão? Um sábio? Um utopista? Um ser divertido que olha mais longe do que todos nós? …. Não sei! Creio que é apenas um ser como os outros, que por vezes só sabe ser ordinário, que por vezes só sabe criticar os «outros»… mas que possui uma capacidade especial de analise, de síntese do mundo que o rodeia.

                Ser humorista-criador não significa um «bom-vivant», uma pessoa sempre alegre, bem-disposta. Na verdade, aqueles que possuem dentro de si o «dom» no máximo da expressão criativa, são na maior parte das vezes (há excepções) indivíduos amargos, com crises existências, que se perdem no lado negro das visões. Ao estarem obrigatoriamente «atentos» ao pormenores mais profundos do que se passa no quotidiano da sociedade, são por vezes «esmagados» pela quantidade de defeitos, de incongruências da humanidade.

                Pela sua obra conseguem ser os catalisadores dos problemas da sociedade politica e social, conseguem exorcisar os pesadelos dos indivíduos, guardando porém para si o vazio das guerras perdidas. O artista francês Siné, quando esteve em Portugal no ano passado para o Salão Nacional de Caricatura disse-me: «sou célebre; muita gente gosta dos meus trabalhos, mas no fundo sou um fracassado. Há quarenta anos que luto contra ditadores, contra as armas, a estupidez das pessoas sérias… e apesar de toda esta minha luta, nada mudou. Continua a haver ditadores, guerras, conservadorismo, estúpidos…»

                Será que a luta dos humoristas, quais Quixotes, não serve para nada? Ou será que a irreverência humorística consegue quebrar a estupidez da prepotência de alguns governantes? Uma coisa é certa: por cada gargalhada inteligente, cai um santo de pés de barro.


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