Sunday, August 12, 2007
PENSAMENTOS SOBRE A COMÉDIA
Por: Osvaldo Macedo de Sousa
O MISTÉRIO DA VIDA! Uma obsessão da humanidade que tem ocupado a mente de filósofos, teólogos, cientistas… Algo que, por ser encarado como muito “sério” para a compreensão da existência, é quase sempre enquadrado na visão cenográfica do drama, da tragédia do quotidiano.
Como é possível que laureados pensadores se esqueçam de que a vida não passa de uma Comédia?
É que não existe nenhum mistério na tragédia, porque esse é o natural desenrolar da luta pela sobrevivência de qualquer ser do planeta.
O mistério reside, sim, na Comédia. Porque é misterioso o nascimento dessa filosofia da libertação; não se sabe como surgiu esse olhar desmascarador das tragédias; ignora-se qual foi o primeiro dramaturgo a atrever-se à desconstrução da miséria da sobrevivência quotidiana; desconhece-se como se desenvolveu, no espírito social, essa poderosa arma, catártica, reservada apenas à espécie humana.
Não pensem que eu sei a resposta, não vos passe pela cabeça que vão encontrá-la nestas páginas. Nem pensador sou, não passo de um dos muitos seres que vivem o quotidiano a interrogarem-se: - Por que existo?
«Uma vez um amigo perguntou-me o que era a Comédia – escreveu o comediante Stan Laurel. – Aquilo abalou-me. O que é a Comédia? Não sei. Sabe-o alguém? Consegue alguém defini-la ? Tudo o que eu sei, é o que aprendi de como fazer rir, e isso é tudo o que sei. Deve-se aprender o que faz rir as pessoas e então proceder de acordo com esses conhecimentos.»
Charlie Chaplin acrescenta um pouco mais ao dizer-nos que «através do humor, nós vemos no que parece racional, o irracional; no que parece importante, o insignificante. Ele também desperta o nosso sentido de sobrevivência e preserva a nossa saúde mental.»
Este livro é apenas uma homenagem aos Homens que nos têm adoçado a vida, que no palco ou na tela desmascaram para nós as nossas tragédias, nos fazem rir das tristezas do nosso dia a dia. É mais uma das minhas aventuras loucas, para as quais arrasto os meus amigos caricaturistas. E como felizmente tenho amigos loucos espalhados pelos cinco continentes dispostos a embarcar neste projecto, consegui reunir esta mão cheia de caricaturas de comediantes, que nos dão uma perspectiva rica da comédia durante o séc. XX.
“Esse ser Comediante!” reúne nove dezenas de mestres das artes cénicas, retratados por cinco dezenas de cultores das artes caricaturais. Um encontro de humores, para uma dupla homenagem ao HUMOR, a filosofia que rege a arte dos Caricaturistas e dos Comediantes. Numa época em que os políticos procuram cada vez mais arrebanhar todos os primeiros papéis desta ficção, que é a vida, com forte investida no mundo da Comédia, esta é uma singela tentativa de separar o trigo do joio. Não é qualquer um que tem o direito de ser Comediante, de ser Caricaturista. Não basta parecer, é preciso ser, e merecer essa honra.
Nesta homenagem celebra-se o retrato-charge, a caricatura no seu estrito senso, mostrando uma paleta rica de estilos, do mais vanguardista ao mais naturalista, do mais sintético ao mais hiper-realista, do lápis ao digital passando pelo óleo, vinagre, aguarela… É uma paleta de estéticas e de artistas de vários países, de Portugal à Turquia, da Argentina à Venezuela, do Egipto à China…
Ser caricaturado não é ser inferiorizado pelo grotesco, antes pelo contrário. Entrar no Álbum das Glórias é uma honra que pouco alcançam. Só é eleito pelo caricaturista para surgir na imprensa, para surgir num álbum, numa exposição, um figurão que se destaque da multidão e assuma um dos principais papéis do momento; sem garantia de lugar cativo ou duradouro na Graça dos Senhores por boas razões: o seu protagonismo não passa de uma moda momentânea (os tais 15 minutos de glória de cada um) ou a acção de marketing que o sustenta tem uma duração fugaz. Portanto, a esses, em breve o mundo os esquece. A Graça e a Glória são duas senhoras de memória curta.
A memória, essa traiçoeira e cínica ferramenta dos seres, leva-nos muitas vezes à injustiça, mas somos Homens, e errar é humano. Talvez demasiado humano.
Não gostaríamos de ser injustos, mas naturalmente vamos sê-lo, ao esquecer nomes importantes. Quando fizemos o convite aos artistas para esta aventura, pedimos que cada um seleccionasse seis figuras que, na sua visão, marcaram o humor cénico do seu país. Alguns fizeram-no, outros preferiram ir para o mundo dos comediantes internacionais.
Havia também uma lista de uma centena de nomes que nós propúnhamos como alternativa, nomes normalmente reconhecidos internacionalmente pelos seus percursos de Comediante no celulóide, suporte onde a internacionalidade se conquista mais facilmente. Foi deste cruzamento de selecções pessoais e de uma lista orientadora que saiu este painel de nove dezenas de Comediantes.
Durante dois anos andei com a exposição debaixo do braço, sem conseguir os apoios necessários para a apresentar condignamente. o humor é pouco sério para ser aceite na maioria das Galerias Municipais; é demasiado perigoso para dar ao povo, de forma oficial. Finalmente podemos apresentar e editar este álbum, graças ao interesse do Festival Internacional BD da Amadora que, com a Casa-Museu Roque Gameiro, a integram na sua XV edição.
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Reza a sabedoria dita popular que “o último a rir, é o que ri melhor”, como se o segredo da sobrevivência fosse ser o último. Pois, mas é essa a tragédia da humanidade: pensar apenas no individual e não no colectivo; porque ser o último a rir, significa que todos os outros estão mortos...
...Mas o riso do último, portanto único, já não é humor, é loucura. O Humor necessita de cumplicidade, necessita de partilha com seres semelhantes, com a mesma cultura. Ele é, enquanto filosofia, enquanto troca de visão irreverente, sempre uma questão de cultura e de inteligência.
Na sociedade animal, é a força do ser dominante que impõe a hierarquia. Quanto à sociedade humana, vejamos: não se sabe bem como surgiu um sorriso na face humana; foi, talvez, quando o Homem provou o gosto doce da maçã da árvore proibida. A volúpia da ensalivação pode ter provocado nesse primeiro indivíduo um brilhozinho nos olhos especialmente atraente, irresistível no convívio social. Esse gesto facial terá derrotado subitamente o murro.
O sorriso é a primeira porta para a aproximação entre os seres, para um bom diálogo. É a porta de entrada como compreensão do humor, é a fronteira entre esta arte e a da comicidade grotesca.
Para a maioria, tudo o que faça rir é encarado como humor; mas na realidade há grandes diferenças (pelo menos teóricas) entre as várias formas de provocar o riso no ser humano.
Os ideólogos gostariam (ou prefeririam) que o Homem fosse um ser totalmente humorístico, um ente cujo sentido de democracia dominasse o seu espírito, em que todos se rissem uns Com os outros, e nunca Dos outros; em que se aceitasse naturalmente, pelo riso, o desmascaramento das hipocrisias, das mentiras/realidade. Mas não é isso que acontece, e o grotesco, a chacota, impõe-se com mais força na animalidade humana. Sendo uma irreverência, e como arma letal que pode ser, deve ser utilizada com alguns cuidados. É fundamental manter sempre o ECO do sorriso (Elegante, Conveniente e Oportuno), estabelecendo empatias de cumplicidade e de reconhecimento das críticas. A ofensa (a falta de sentido de humor) é um subterfúgio dos hipócritas, dos animais políticos. O riso é salutar, não havendo nenhum mal no seu exercício, pois a credibilidade e o formalismo, que tanto encantam a sociedade séria, não correm perigo, antes resplandecem. Se o riso nasce com o prazer, o sentido de humor educa-se, aprende-se como arte de viver em optimismo, em democracia. O problema, na maior parte das vezes, é a educação…
Sabemos que os egípcios nos deixaram testemunhos que nos dizem que usaram o grotesco caricatural para parodiar o pensando dominante. E que os gregos usaram a arte da comicidade em diferentes géneros plásticos. É também nesse período, conhecido como Idade Clássica, que surgem os primeiros documentos da utilização do cómico em manifestações religiosas, em dramaturgias de cunho sacro ou popular.
Se o humor tem o seu epicentro no cérebro, o grotesco tem-no no corpo, nos gestos, na linguagem exterior ou de baixo-ventre. Por imaginação nossa, calculamos que tudo tenha nascido do exterior para o interior. Uma cambalhota que se transformou numa pirueta de bailarino, uma careta que se transformou numa máscara teatral, uma queda ridícula que se transformou numa palhaçada… fizeram surgir o riso no grupo social. Vendo que essa era uma forma de activar a atenção, alguns seres procuraram explorar esses ridículos para macaquear o quotidiano e, nesse contraste do normal com o grotesco, interiorizar pouco a pouca a força que essas momices poderiam ter como crítica.
O ridículo como contraste com o estabelecido, como incongruência, quebra no grupo a tensão imposta pela dignidade, pela lógica social, fazendo-se ver ao espelho da vaidade. Não está aqui em jogo o lado negativo da humanidade, mas sim a interiorização, pelo riso, da essência da vida, da nossa atitude na sociedade, no quotidiano.
Alguém disse que o cómico é o drama do retorno ao realismo da verdade, porque a verdadeira vida não é a dos heróis, mas a do homem comum. Foi esse homem comum quem desenvolveu as primeiras representações do grotesco.
Ainda hoje, nas aldeias recônditas, se encontra o “maluquinho” da aldeia, aquele que serve de bobo da sociedade, aquele que tem a língua solta, e que, com suas atitudes burlescas, vai satirizando a vida de toda a comunidade. O vinho está quase sempre associado a estas “maluquices”, assim como com atitudes brejeiras.
Depois há as festas populares, não falando do Carnaval, onde improvisadores cantam ao desafio, desdramatizando a vida, lançando farpas cómicas à esquerda e há direita. Esta comicidade está sempre ligada à sátira e ao libidinoso.
Dizem os historiadores do Teatro que tudo começou com os “cosmos”, grupos de camponeses que percorriam as aldeias, celebrando Dionísio (deus ligado ao vinho), por ocasião das vindimas. Eram rituais “litúrgicos” onde se explorava o caricatural, em que o espírito do vinho “ajudava” a subir o éter do cómico. Nesta génese dramatúrgica há também as “falofórias”, em que deus era celebrado com cantos fálicos, cortejo de sátiros e sarcasmos dirigidos tanto ao mundo de Olimpo, como ao mundo terreno. Ligam o cómico dramatúrgico, às improvisações populares burlescas, misturadas com orgias místicas, onde o álcool e o mundo brejeiro reinam. O riso surge como exploração do interdito. Do contraste entre o prazer do grotesco e a tristeza da tragédia quotidiana.
Seguindo esses mesmos estudos, o termo Comédia tem origem etimológica nos Dórios do Peloponeso, contudo é na Sicília que se encontram os primeiros testemunhos de “comédias”, escritas por Epicarmo, Fórmis… Dos autores anónimos anteriores e posteriores não reza a história. E se teve várias fórmulas de apresentação, desde logo surge como a irreverência que explora o contraste com a tragédia.
A Tragédia, que todas as Sociedades e estudiosos sempre consideraram como a essência da Dramaturgia, vive do empolamento do sofrimento dos heróis, da glorificação das vicissitudes amargas, quase sempre com um fim triste, ou seja: glorificando os perdedores.
A Comédia, ou mais concretamente a dramaturgia cómica, satiriza os vícios, descreve os ridículos das misérias, ironiza com o sofrimento para no final dar o triunfo a quem merece a felicidade, glorificando os que ultrapassam, a bem ou a mal, o quotidiano.
Estávamos pois em Epicarpo, quando a mímica já fazia arte ao lado da palavra, e quando já existiam lado a lado a Comédia de paródia mitológica, e Comédia realista. A política como realidade amarga da sociedade impõe-se em Aristoteles, Cratino, seguindo-se Aristofanes, Plutos, Filomeno, Difilo, Menandro, Plautos… décadas de evolução da arte de divertir e satirizar a sociedade humana.
Também no mundo latino as origens da Comédia estão ligadas a festas campestres e seus deuses, como Baco, Ceres, Pã, Priapo, Faunos… A mãe natureza, com seu espírito embriagador de vinho e erotismo, desmascara as falsas tragédias construídas pela sociedade humana. As Fesceninas (de Fescininia – Étruria) eram pequenas dramaturgias com cunho licencioso e sarcástico. As Sáturas (origem etimológica de sátira) eram comédias do mesmo género, mas onde o canto e a dança tinham maior relevo. Nomes que pouco dirão ao grande público, mas importantes nesta evolução: Lívio, Andreónico, Névio, Enio, Terêncio…
Uma reacção curiosa do público, que vamos encontrar noutras épocas da história, é a não aceitação da proximidade entre o palco e a vida real, razão pela qual os romanos representavam as comédias vestidos de gregos, ou transpostas para mundos fantásticos. Uma das formas de conseguir a aceitação da sátira aos seus costumes, foi transferi-la para o mundo das tavernas, criando-se o estilo “Tabernário”, encenada com tipos caricaturais. É a eterna dificuldade do Homem em aceitar a verdade crua do que vê no espelho.
Com o triunfo do Cristianismo (claro que aqui falamos sempre na visão ocidental da história, confinada no nosso canto europeu) e sua ética de hipocrisia farisaica, a Igreja luta contra a diversão, contra a irreverência (tanto mais que a comédia está associada a éter de Baco, ao libidinismo de Priapo…), contra o riso (considerado por Santo Agostinho como demoníaco), fazendo desaparecer a comédia dos palcos. Todo o espectáculo público foi boicotado por essa nova moral de sofrimento, de pecado. Claro que o cómico continuou sempre a existir nas manifestações populares (Carnaval é um sobrevivente das festas aos deuses da natureza, como acto sexual para renascimento da terra, como fecundação na prometedora prima vera).
Seria necessário esperar pela Alta Idade Média para emergir de novo esse espírito irreverente do povo em forma de Comédia. Evoluindo de dramaturgias grotescas como a Nave dos Loucos, das representações burlescas da liturgia, das danças da morte, vamos descobrir uma nova fase da Comédia.
O que é apresentado como renovação da Comédia é a tomada de consciência de dois mundos do cómico, ou seja a comicidade de baixo e alto ventre. O cómico de baixo ventre está ligado à construção do riso com alusões ao grotesco libidinoso, ao anedotário escatológico, ao sarcasmo, ao grotesco. O cómico de alto ventre liga o riso ao coração, à inteligência onde se procurar não rir De mas Com. É a génese do que mais tarde virá a ser definido como Humour – Humor.
Temos aqui alguma dificuldade de terminologia, já que a palavra Humor e caricatura só aparecerão na Idade Moderna, e mesmo assim a sua definição concreta só será posterior, havendo contudo ainda hoje alguma indefinição absoluta do seu significando, já que a fronteira entre todos estes termos é muito ténue.
É às “soties” (de sot, parvo, bobo), espécie de farsas satíricas, representadas como caricaturas por um Bobo que viverá para manter a saúde mental de seu amo, com irreverentes verdades dirigidas a um público específico, onde o próprio rei era vítima, que os historiadores vão buscar o elo de ligação entre a Comédia Clássica e o novo elan teatral. No mundo ocidental isto quer dizer séc. XV, XVI, quer dizer poetas da Pleiade, Ariosto, Maquievel… E Moliére, que estruturará finalmente a Comédia Moderna. (da mesma forma que o).
Em Portugal há registos de representações de Arremedilhos (entremeses, momos) representados por jograis no tempo de Sancho I, mas seria no tempo de D. Manuel I, com a obra genial de Gil Vicente, que o cómico resplandeceu no teatro luso. Não segue os moldes da Comédia moderna, contudo há uma riqueza inestimável de comicidade, numa mistura explosiva de baixo e alto ventre.
A Gil Vicente seguir-se-ão muitos outros como Sá de Miranda, José Ferreira de Vasconcelos, Camões, António Ribeiro Chiado, António Prestes, Francisco Manuel de Melo, António José da Silva o “Judeu”, Correia Garção, Manuel de Figueiredo, Camilo Castelo Branco, Gervásio Lobato, Eduardo Schwalbach…
Desses tempos de Renascimento teremos de falar da Comédia dell’Arte que nasceu da escassez de textos para representação, desenvolvendo-se esquemas cénicos improvisados por mimos, que cristalizaram tipos caricaturais em máscaras, personagens e histórias de gosto popular.
Apareceram depois as Comédias de Equívocos, assim como Comédias de capa e espada, de intriga… todo o género de teatro é Comédia, mesmo a tragédia.
Se o Romantismo não gostou da Comédia, o realismo desenvolveu a sátira de costumes. O séc. XX será um mundo de amor-ódio com a Comédia, preferindo empurrar o riso para o Vaudeville, para o Music Hall, para a Revista e para o cinema. Esses géneros de show-business podem ser incluídos na Comédia? Há historiadores que não gostam dessas misturas, mas o que é que na realidade os separa?
A evolução do riso no cinema é quase que uma repetição da história da comédia, começando pelo grotesco mímico, até atingir o mais sofisticado humor intelectual. Contudo o divertimento está sempre presente, assim como a necessidade de dar à sociedade um escape contra as agruras da vida, mantendo a sua função de equilíbrio da nossa saúde mental. É que, como é comum se dizer, o cómico não é a antítese da tragédia, mas o antídoto. Como escreveu Juca Chaves, «o humor é a ginástica da inteligência».
O que é o cómico? Aristóteles escreveu que «O cómico é a impressão produzida por erro ou equivocação isentos de culpa, ao que se acompanha uma certa falsidade (na situação, nas circunstâncias, no aspecto físico), que só produz riso e não pesar ou dano, a quem o contemple». Pois não é fácil perceber. Freud também achou importante esta reacção física e psíquica no Homem, escrevendo que o humor é «a mais alta manifestação da adaptação do indivíduo. (…) O humor não resigna, desafia: não implica apenas o triunfo do eu, mas também o princípio do prazer que se encontra ao afirmar-se, apesar das realidades exteriores desfavoráveis».
Estamos todos conscientes de que o riso é uma reacção física que movimenta dezenas de músculos (exercício aeróbico); que liberta uma série de químicos como endorfinas (que fortalecem o sistema imunitário, e que serve como fármaco anti-depressivo); que liberta pulsões interditas, expressas de uma forma «desviada», camuflada, e portanto com uma faceta socialmente aceitável, é o ludibriar os tabus e censuras.
É uma estrutura de acção, ligada a um pensamento crítico que nos obriga a olhar as coisas. Por vezes, essa desconstrução e reconstrução do mundo leva-nos ao riso exterior, com manifestação em sorriso ou gargalhada, mas mais importante é aquele que nos leva ao riso interior, aquele que provoca lágrimas pela nossa mesquinhez no mundo. É a poesia da irreverência, é o raio de luz no meio da neblina cinzenta do quotidiano.
Nem tudo o que faz rir é humor. Há o riso inteligente, aquele que nos faz rir porque nos faz pensar de forma construtiva, e há a comicidade grotesca, o anedotário, que é apenas instrumento de divertimento, nem sempre com uma linguagem democrática, já que se ri Dos outros, em vez de rir Com os outros. Essa comicidade grotesca é uma forma destrutiva de comunicação, porque não cria um diálogo universalista, mas selectivo. Corrompe as pontes de abrangência, fechando-se em tribalismos, em sectarismos. Todo o riso é uma questão cultural, e só se pode consumar o riso quando há pontos comuns de diálogo e compreensão - Diz-me com quem te ris, dir-te-ei que educação tens, que cultura dominas.
Falando de alhos para quem só perceba de bugalhos, não se pode fazer humor, nem sequer comicidade. Quanto mais abrangente for a cultura, mais receptivo se é aos diferentes humores. Quanto mais aberta tiver a mente, mais facilmente o indivíduo consegue aceitar as críticas e rir-se com elas. O saber rir, é aceitar as críticas, compreender por que as fazem, sem ser obrigado a achar que elas estejam correctas. Podemos estar convictos de que temos as ideias certas, que actuamos bem e aceitar com humor as críticas. É isso o verdadeiro sentido de humor, compreender o porquê dos outros, usando essa arma como análise da sociedade, de compreensão, de diálogo. O humor, o cómico é a arma que mais assusta os “sérios”, os “trágicos”, os poderosos, os políticos porque ele mata os medos e enfrenta-os de peito aberto.
Se é difícil definir a comicidade, o humor, ao menos pode dizer-se como se constrói? É simples, e baseia-se em três sistemas de construção (contraste, exageração e repetição), as quais podem ser usadas, recriadas, associadas de mil formas.
O Contraste existe quando entre dois ou mais factos se cria o confronto de contrários, quando encontramos uma resolução de factos desproporcionada ou incongruente aos seus antecedentes. Esse contraste pode ser activado pela deformação ou pela incongruência. Pela deformação, consegue-se adulterar a verdade (ou realidade) através das desproporções dos elementos entre si. Pela incongruência, consegue-se confrontar o que é com o que deveria ser. Como disse Chaplin, «a verdadeira fonte do riso encontra-se no imprevisto», seja na mudança súbita de mundos, de ideias, de gestos. A incongruência cómica é criada pelo contacto súbito de dois mundos, que podem ser o quotidiano e outro deliberadamente absurdo.
A Exageração constrói-se como complementarização do contraste, da comicidade. Com ela acentua-se o choque dinâmico entre os mundos do real e do fantasista, entre o real e o absurdo cómico.
A Repetição é o uso mecânico dos mesmos elementos, até ao despoletar do riso, seja com uma palavra, um gesto, uma situação. O confronto entre o Homem e a rotina, ou a máquina, é a origem do cómico na repetição.
Basicamente são estes os elementos estruturais de qualquer acção cómica, ligada por uma construção de pensamento que nos levem por uma lógica até a um fim feliz concretizado pelo contraste, pela exageração, pela repetição, a um resultado que nos surpreende, provocando o riso, provocando uma análise mais profunda da ideia-base que está por detrás dessa comicidade.
Claro que não basta este cozinhado de técnicas, de estruturas mecânicas de construção do riso, já que não pode haver fogo sem uma centelha. Neste caso do humor chama-se espírito (esprit, Witty…), o tal sal humano que muitos definem como a centelha divina que nos leva ao riso, que transforma essa construção mecânica de pensamento, de acção, nessa olhar filosófico da vida.
O teatro, como forma dramática de representar a vida, supõe uma acção, uma história criada com artifícios de contraste, incongruências… Nesse mundo de teatro/cinema quando se fala de comicidade, baptiza-se imediatamente como Comédia, ou seja o oposto à Tragédia. Há mesmo quem baptize como comédia qualquer história que tenha um fim feliz, como se a felicidade fosse um exclusivo do humor, como se a tragicomédia fosse a salvação das tristezas.
O dramaturgo é um striper do Homem, obrigando-o a expôr as suas ambições, vaidades, seus limites e fraquezas, ao mesmo tempo que o envolve numa atmosfera de segurança, onde não pode haver lugar para o medo e a piedade, assegurando um final feliz. A garantia desse happy end é um estratagema fundamental para levar o publico a rir-se das misérias, das críticas, porque sabe que no fim sairá de consciência tranquila, já que tudo se resolve sempre com triunfo do bem…
Se leu este texto até aqui... é porque prefere a tragédia à comédia. Tal como prometi no início, não aprendeu nada comigo, apenas perdeu tempo, tempo precioso para desfrutar o traço dos artistas, fazer um exercício da memória num jogo de identificação tentando adivinhar em que filme, em que palco, em que programa viu este ou aquele artista. Artista, comediante… pois até agora só se falou em teorias do humor, da comédia, sem nos debruçarmos sobre o homem que está por detrás do nosso riso.
O Humor, a Comédia, a Caricatura são o fruto de um trabalho de Homens, a maior parte deles profissionais. Mas uma coisa é quem faz o humor e quem o representa, não sendo muitas vezes a mesma pessoa. Também aqui a confusão de definições se estabelece, se entrecruzam o humorista, o comediante, o contador de anedotas, o entreteiner de music-hall, o palhaço, o stand up comedi…
Ser humorista não significa ser uma pessoa bem humorada. Muitas das vezes, para não ser exagerado e dizer a maioria, são mal humorados, pessoas fechadas, tímidas explorando os seus maus fígados para criar sátiras, ironias que os outros depois usam para fazer rir. Existem depois os palhaços, os mimos, os entreteiners que, pelo improviso, misturado com alguns gags já estudados, com velhas anedotas criam um espectáculo cómico. Finalmente os comediantes, actores que interpretam os argumentos cómicos, dando-lhes o seu génio interpretativo para enfatizar o cómico, para apreender a tenção e o riso do público. O mesmo texto pode ter diferentes graus de risibilidade, consoante o actor que o interpreta. Mas há também os contadores de anedotas, as tais pessoas bem humoradas que em grupo animam sempre o ambiente de funerais, de casamentos, de café… com estórias engraçadas, anedotas que se repetem até à milésima vez; mas esses não são comediantes, porque não são actores, apesar de ser necessário alguma teatralidade para realçar a anedota; nem são humoristas porque não criam. Contudo há os criadores de espírito, aquele que têm sempre um dito, uma palavra cómica para saudar o amigo, a vizinha, que acabam por ser criadores de humor, sem serem humoristas encartados. Existem também os piropos de comicidade de baixo-ventre. Como vemos, há pessoas bem humoradas que não são humoristas e pessoas mal humoradas que são humoristas, há comediantes que não conseguem passar a sua historia e não comediantes que são magníficos construtor de comicidade anedótica… Estão a compreender ? Eu também não, e como diz Stan Laurel, deixemo-nos de teorias e desfrutemos o humor, o riso, a vida, mantendo sempre o sorriso no nosso olhar, na nossa alma.
O MISTÉRIO DA VIDA! Uma obsessão da humanidade que tem ocupado a mente de filósofos, teólogos, cientistas… Algo que, por ser encarado como muito “sério” para a compreensão da existência, é quase sempre enquadrado na visão cenográfica do drama, da tragédia do quotidiano.
Como é possível que laureados pensadores se esqueçam de que a vida não passa de uma Comédia?
É que não existe nenhum mistério na tragédia, porque esse é o natural desenrolar da luta pela sobrevivência de qualquer ser do planeta.
O mistério reside, sim, na Comédia. Porque é misterioso o nascimento dessa filosofia da libertação; não se sabe como surgiu esse olhar desmascarador das tragédias; ignora-se qual foi o primeiro dramaturgo a atrever-se à desconstrução da miséria da sobrevivência quotidiana; desconhece-se como se desenvolveu, no espírito social, essa poderosa arma, catártica, reservada apenas à espécie humana.
Não pensem que eu sei a resposta, não vos passe pela cabeça que vão encontrá-la nestas páginas. Nem pensador sou, não passo de um dos muitos seres que vivem o quotidiano a interrogarem-se: - Por que existo?
«Uma vez um amigo perguntou-me o que era a Comédia – escreveu o comediante Stan Laurel. – Aquilo abalou-me. O que é a Comédia? Não sei. Sabe-o alguém? Consegue alguém defini-la ? Tudo o que eu sei, é o que aprendi de como fazer rir, e isso é tudo o que sei. Deve-se aprender o que faz rir as pessoas e então proceder de acordo com esses conhecimentos.»
Charlie Chaplin acrescenta um pouco mais ao dizer-nos que «através do humor, nós vemos no que parece racional, o irracional; no que parece importante, o insignificante. Ele também desperta o nosso sentido de sobrevivência e preserva a nossa saúde mental.»
Este livro é apenas uma homenagem aos Homens que nos têm adoçado a vida, que no palco ou na tela desmascaram para nós as nossas tragédias, nos fazem rir das tristezas do nosso dia a dia. É mais uma das minhas aventuras loucas, para as quais arrasto os meus amigos caricaturistas. E como felizmente tenho amigos loucos espalhados pelos cinco continentes dispostos a embarcar neste projecto, consegui reunir esta mão cheia de caricaturas de comediantes, que nos dão uma perspectiva rica da comédia durante o séc. XX.
“Esse ser Comediante!” reúne nove dezenas de mestres das artes cénicas, retratados por cinco dezenas de cultores das artes caricaturais. Um encontro de humores, para uma dupla homenagem ao HUMOR, a filosofia que rege a arte dos Caricaturistas e dos Comediantes. Numa época em que os políticos procuram cada vez mais arrebanhar todos os primeiros papéis desta ficção, que é a vida, com forte investida no mundo da Comédia, esta é uma singela tentativa de separar o trigo do joio. Não é qualquer um que tem o direito de ser Comediante, de ser Caricaturista. Não basta parecer, é preciso ser, e merecer essa honra.
Nesta homenagem celebra-se o retrato-charge, a caricatura no seu estrito senso, mostrando uma paleta rica de estilos, do mais vanguardista ao mais naturalista, do mais sintético ao mais hiper-realista, do lápis ao digital passando pelo óleo, vinagre, aguarela… É uma paleta de estéticas e de artistas de vários países, de Portugal à Turquia, da Argentina à Venezuela, do Egipto à China…
Ser caricaturado não é ser inferiorizado pelo grotesco, antes pelo contrário. Entrar no Álbum das Glórias é uma honra que pouco alcançam. Só é eleito pelo caricaturista para surgir na imprensa, para surgir num álbum, numa exposição, um figurão que se destaque da multidão e assuma um dos principais papéis do momento; sem garantia de lugar cativo ou duradouro na Graça dos Senhores por boas razões: o seu protagonismo não passa de uma moda momentânea (os tais 15 minutos de glória de cada um) ou a acção de marketing que o sustenta tem uma duração fugaz. Portanto, a esses, em breve o mundo os esquece. A Graça e a Glória são duas senhoras de memória curta.
A memória, essa traiçoeira e cínica ferramenta dos seres, leva-nos muitas vezes à injustiça, mas somos Homens, e errar é humano. Talvez demasiado humano.
Não gostaríamos de ser injustos, mas naturalmente vamos sê-lo, ao esquecer nomes importantes. Quando fizemos o convite aos artistas para esta aventura, pedimos que cada um seleccionasse seis figuras que, na sua visão, marcaram o humor cénico do seu país. Alguns fizeram-no, outros preferiram ir para o mundo dos comediantes internacionais.
Havia também uma lista de uma centena de nomes que nós propúnhamos como alternativa, nomes normalmente reconhecidos internacionalmente pelos seus percursos de Comediante no celulóide, suporte onde a internacionalidade se conquista mais facilmente. Foi deste cruzamento de selecções pessoais e de uma lista orientadora que saiu este painel de nove dezenas de Comediantes.
Durante dois anos andei com a exposição debaixo do braço, sem conseguir os apoios necessários para a apresentar condignamente. o humor é pouco sério para ser aceite na maioria das Galerias Municipais; é demasiado perigoso para dar ao povo, de forma oficial. Finalmente podemos apresentar e editar este álbum, graças ao interesse do Festival Internacional BD da Amadora que, com a Casa-Museu Roque Gameiro, a integram na sua XV edição.
****************************
Reza a sabedoria dita popular que “o último a rir, é o que ri melhor”, como se o segredo da sobrevivência fosse ser o último. Pois, mas é essa a tragédia da humanidade: pensar apenas no individual e não no colectivo; porque ser o último a rir, significa que todos os outros estão mortos...
...Mas o riso do último, portanto único, já não é humor, é loucura. O Humor necessita de cumplicidade, necessita de partilha com seres semelhantes, com a mesma cultura. Ele é, enquanto filosofia, enquanto troca de visão irreverente, sempre uma questão de cultura e de inteligência.
Na sociedade animal, é a força do ser dominante que impõe a hierarquia. Quanto à sociedade humana, vejamos: não se sabe bem como surgiu um sorriso na face humana; foi, talvez, quando o Homem provou o gosto doce da maçã da árvore proibida. A volúpia da ensalivação pode ter provocado nesse primeiro indivíduo um brilhozinho nos olhos especialmente atraente, irresistível no convívio social. Esse gesto facial terá derrotado subitamente o murro.
O sorriso é a primeira porta para a aproximação entre os seres, para um bom diálogo. É a porta de entrada como compreensão do humor, é a fronteira entre esta arte e a da comicidade grotesca.
Para a maioria, tudo o que faça rir é encarado como humor; mas na realidade há grandes diferenças (pelo menos teóricas) entre as várias formas de provocar o riso no ser humano.
Os ideólogos gostariam (ou prefeririam) que o Homem fosse um ser totalmente humorístico, um ente cujo sentido de democracia dominasse o seu espírito, em que todos se rissem uns Com os outros, e nunca Dos outros; em que se aceitasse naturalmente, pelo riso, o desmascaramento das hipocrisias, das mentiras/realidade. Mas não é isso que acontece, e o grotesco, a chacota, impõe-se com mais força na animalidade humana. Sendo uma irreverência, e como arma letal que pode ser, deve ser utilizada com alguns cuidados. É fundamental manter sempre o ECO do sorriso (Elegante, Conveniente e Oportuno), estabelecendo empatias de cumplicidade e de reconhecimento das críticas. A ofensa (a falta de sentido de humor) é um subterfúgio dos hipócritas, dos animais políticos. O riso é salutar, não havendo nenhum mal no seu exercício, pois a credibilidade e o formalismo, que tanto encantam a sociedade séria, não correm perigo, antes resplandecem. Se o riso nasce com o prazer, o sentido de humor educa-se, aprende-se como arte de viver em optimismo, em democracia. O problema, na maior parte das vezes, é a educação…
Sabemos que os egípcios nos deixaram testemunhos que nos dizem que usaram o grotesco caricatural para parodiar o pensando dominante. E que os gregos usaram a arte da comicidade em diferentes géneros plásticos. É também nesse período, conhecido como Idade Clássica, que surgem os primeiros documentos da utilização do cómico em manifestações religiosas, em dramaturgias de cunho sacro ou popular.
Se o humor tem o seu epicentro no cérebro, o grotesco tem-no no corpo, nos gestos, na linguagem exterior ou de baixo-ventre. Por imaginação nossa, calculamos que tudo tenha nascido do exterior para o interior. Uma cambalhota que se transformou numa pirueta de bailarino, uma careta que se transformou numa máscara teatral, uma queda ridícula que se transformou numa palhaçada… fizeram surgir o riso no grupo social. Vendo que essa era uma forma de activar a atenção, alguns seres procuraram explorar esses ridículos para macaquear o quotidiano e, nesse contraste do normal com o grotesco, interiorizar pouco a pouca a força que essas momices poderiam ter como crítica.
O ridículo como contraste com o estabelecido, como incongruência, quebra no grupo a tensão imposta pela dignidade, pela lógica social, fazendo-se ver ao espelho da vaidade. Não está aqui em jogo o lado negativo da humanidade, mas sim a interiorização, pelo riso, da essência da vida, da nossa atitude na sociedade, no quotidiano.
Alguém disse que o cómico é o drama do retorno ao realismo da verdade, porque a verdadeira vida não é a dos heróis, mas a do homem comum. Foi esse homem comum quem desenvolveu as primeiras representações do grotesco.
Ainda hoje, nas aldeias recônditas, se encontra o “maluquinho” da aldeia, aquele que serve de bobo da sociedade, aquele que tem a língua solta, e que, com suas atitudes burlescas, vai satirizando a vida de toda a comunidade. O vinho está quase sempre associado a estas “maluquices”, assim como com atitudes brejeiras.
Depois há as festas populares, não falando do Carnaval, onde improvisadores cantam ao desafio, desdramatizando a vida, lançando farpas cómicas à esquerda e há direita. Esta comicidade está sempre ligada à sátira e ao libidinoso.
Dizem os historiadores do Teatro que tudo começou com os “cosmos”, grupos de camponeses que percorriam as aldeias, celebrando Dionísio (deus ligado ao vinho), por ocasião das vindimas. Eram rituais “litúrgicos” onde se explorava o caricatural, em que o espírito do vinho “ajudava” a subir o éter do cómico. Nesta génese dramatúrgica há também as “falofórias”, em que deus era celebrado com cantos fálicos, cortejo de sátiros e sarcasmos dirigidos tanto ao mundo de Olimpo, como ao mundo terreno. Ligam o cómico dramatúrgico, às improvisações populares burlescas, misturadas com orgias místicas, onde o álcool e o mundo brejeiro reinam. O riso surge como exploração do interdito. Do contraste entre o prazer do grotesco e a tristeza da tragédia quotidiana.
Seguindo esses mesmos estudos, o termo Comédia tem origem etimológica nos Dórios do Peloponeso, contudo é na Sicília que se encontram os primeiros testemunhos de “comédias”, escritas por Epicarmo, Fórmis… Dos autores anónimos anteriores e posteriores não reza a história. E se teve várias fórmulas de apresentação, desde logo surge como a irreverência que explora o contraste com a tragédia.
A Tragédia, que todas as Sociedades e estudiosos sempre consideraram como a essência da Dramaturgia, vive do empolamento do sofrimento dos heróis, da glorificação das vicissitudes amargas, quase sempre com um fim triste, ou seja: glorificando os perdedores.
A Comédia, ou mais concretamente a dramaturgia cómica, satiriza os vícios, descreve os ridículos das misérias, ironiza com o sofrimento para no final dar o triunfo a quem merece a felicidade, glorificando os que ultrapassam, a bem ou a mal, o quotidiano.
Estávamos pois em Epicarpo, quando a mímica já fazia arte ao lado da palavra, e quando já existiam lado a lado a Comédia de paródia mitológica, e Comédia realista. A política como realidade amarga da sociedade impõe-se em Aristoteles, Cratino, seguindo-se Aristofanes, Plutos, Filomeno, Difilo, Menandro, Plautos… décadas de evolução da arte de divertir e satirizar a sociedade humana.
Também no mundo latino as origens da Comédia estão ligadas a festas campestres e seus deuses, como Baco, Ceres, Pã, Priapo, Faunos… A mãe natureza, com seu espírito embriagador de vinho e erotismo, desmascara as falsas tragédias construídas pela sociedade humana. As Fesceninas (de Fescininia – Étruria) eram pequenas dramaturgias com cunho licencioso e sarcástico. As Sáturas (origem etimológica de sátira) eram comédias do mesmo género, mas onde o canto e a dança tinham maior relevo. Nomes que pouco dirão ao grande público, mas importantes nesta evolução: Lívio, Andreónico, Névio, Enio, Terêncio…
Uma reacção curiosa do público, que vamos encontrar noutras épocas da história, é a não aceitação da proximidade entre o palco e a vida real, razão pela qual os romanos representavam as comédias vestidos de gregos, ou transpostas para mundos fantásticos. Uma das formas de conseguir a aceitação da sátira aos seus costumes, foi transferi-la para o mundo das tavernas, criando-se o estilo “Tabernário”, encenada com tipos caricaturais. É a eterna dificuldade do Homem em aceitar a verdade crua do que vê no espelho.
Com o triunfo do Cristianismo (claro que aqui falamos sempre na visão ocidental da história, confinada no nosso canto europeu) e sua ética de hipocrisia farisaica, a Igreja luta contra a diversão, contra a irreverência (tanto mais que a comédia está associada a éter de Baco, ao libidinismo de Priapo…), contra o riso (considerado por Santo Agostinho como demoníaco), fazendo desaparecer a comédia dos palcos. Todo o espectáculo público foi boicotado por essa nova moral de sofrimento, de pecado. Claro que o cómico continuou sempre a existir nas manifestações populares (Carnaval é um sobrevivente das festas aos deuses da natureza, como acto sexual para renascimento da terra, como fecundação na prometedora prima vera).
Seria necessário esperar pela Alta Idade Média para emergir de novo esse espírito irreverente do povo em forma de Comédia. Evoluindo de dramaturgias grotescas como a Nave dos Loucos, das representações burlescas da liturgia, das danças da morte, vamos descobrir uma nova fase da Comédia.
O que é apresentado como renovação da Comédia é a tomada de consciência de dois mundos do cómico, ou seja a comicidade de baixo e alto ventre. O cómico de baixo ventre está ligado à construção do riso com alusões ao grotesco libidinoso, ao anedotário escatológico, ao sarcasmo, ao grotesco. O cómico de alto ventre liga o riso ao coração, à inteligência onde se procurar não rir De mas Com. É a génese do que mais tarde virá a ser definido como Humour – Humor.
Temos aqui alguma dificuldade de terminologia, já que a palavra Humor e caricatura só aparecerão na Idade Moderna, e mesmo assim a sua definição concreta só será posterior, havendo contudo ainda hoje alguma indefinição absoluta do seu significando, já que a fronteira entre todos estes termos é muito ténue.
É às “soties” (de sot, parvo, bobo), espécie de farsas satíricas, representadas como caricaturas por um Bobo que viverá para manter a saúde mental de seu amo, com irreverentes verdades dirigidas a um público específico, onde o próprio rei era vítima, que os historiadores vão buscar o elo de ligação entre a Comédia Clássica e o novo elan teatral. No mundo ocidental isto quer dizer séc. XV, XVI, quer dizer poetas da Pleiade, Ariosto, Maquievel… E Moliére, que estruturará finalmente a Comédia Moderna. (da mesma forma que o).
Em Portugal há registos de representações de Arremedilhos (entremeses, momos) representados por jograis no tempo de Sancho I, mas seria no tempo de D. Manuel I, com a obra genial de Gil Vicente, que o cómico resplandeceu no teatro luso. Não segue os moldes da Comédia moderna, contudo há uma riqueza inestimável de comicidade, numa mistura explosiva de baixo e alto ventre.
A Gil Vicente seguir-se-ão muitos outros como Sá de Miranda, José Ferreira de Vasconcelos, Camões, António Ribeiro Chiado, António Prestes, Francisco Manuel de Melo, António José da Silva o “Judeu”, Correia Garção, Manuel de Figueiredo, Camilo Castelo Branco, Gervásio Lobato, Eduardo Schwalbach…
Desses tempos de Renascimento teremos de falar da Comédia dell’Arte que nasceu da escassez de textos para representação, desenvolvendo-se esquemas cénicos improvisados por mimos, que cristalizaram tipos caricaturais em máscaras, personagens e histórias de gosto popular.
Apareceram depois as Comédias de Equívocos, assim como Comédias de capa e espada, de intriga… todo o género de teatro é Comédia, mesmo a tragédia.
Se o Romantismo não gostou da Comédia, o realismo desenvolveu a sátira de costumes. O séc. XX será um mundo de amor-ódio com a Comédia, preferindo empurrar o riso para o Vaudeville, para o Music Hall, para a Revista e para o cinema. Esses géneros de show-business podem ser incluídos na Comédia? Há historiadores que não gostam dessas misturas, mas o que é que na realidade os separa?
A evolução do riso no cinema é quase que uma repetição da história da comédia, começando pelo grotesco mímico, até atingir o mais sofisticado humor intelectual. Contudo o divertimento está sempre presente, assim como a necessidade de dar à sociedade um escape contra as agruras da vida, mantendo a sua função de equilíbrio da nossa saúde mental. É que, como é comum se dizer, o cómico não é a antítese da tragédia, mas o antídoto. Como escreveu Juca Chaves, «o humor é a ginástica da inteligência».
O que é o cómico? Aristóteles escreveu que «O cómico é a impressão produzida por erro ou equivocação isentos de culpa, ao que se acompanha uma certa falsidade (na situação, nas circunstâncias, no aspecto físico), que só produz riso e não pesar ou dano, a quem o contemple». Pois não é fácil perceber. Freud também achou importante esta reacção física e psíquica no Homem, escrevendo que o humor é «a mais alta manifestação da adaptação do indivíduo. (…) O humor não resigna, desafia: não implica apenas o triunfo do eu, mas também o princípio do prazer que se encontra ao afirmar-se, apesar das realidades exteriores desfavoráveis».
Estamos todos conscientes de que o riso é uma reacção física que movimenta dezenas de músculos (exercício aeróbico); que liberta uma série de químicos como endorfinas (que fortalecem o sistema imunitário, e que serve como fármaco anti-depressivo); que liberta pulsões interditas, expressas de uma forma «desviada», camuflada, e portanto com uma faceta socialmente aceitável, é o ludibriar os tabus e censuras.
É uma estrutura de acção, ligada a um pensamento crítico que nos obriga a olhar as coisas. Por vezes, essa desconstrução e reconstrução do mundo leva-nos ao riso exterior, com manifestação em sorriso ou gargalhada, mas mais importante é aquele que nos leva ao riso interior, aquele que provoca lágrimas pela nossa mesquinhez no mundo. É a poesia da irreverência, é o raio de luz no meio da neblina cinzenta do quotidiano.
Nem tudo o que faz rir é humor. Há o riso inteligente, aquele que nos faz rir porque nos faz pensar de forma construtiva, e há a comicidade grotesca, o anedotário, que é apenas instrumento de divertimento, nem sempre com uma linguagem democrática, já que se ri Dos outros, em vez de rir Com os outros. Essa comicidade grotesca é uma forma destrutiva de comunicação, porque não cria um diálogo universalista, mas selectivo. Corrompe as pontes de abrangência, fechando-se em tribalismos, em sectarismos. Todo o riso é uma questão cultural, e só se pode consumar o riso quando há pontos comuns de diálogo e compreensão - Diz-me com quem te ris, dir-te-ei que educação tens, que cultura dominas.
Falando de alhos para quem só perceba de bugalhos, não se pode fazer humor, nem sequer comicidade. Quanto mais abrangente for a cultura, mais receptivo se é aos diferentes humores. Quanto mais aberta tiver a mente, mais facilmente o indivíduo consegue aceitar as críticas e rir-se com elas. O saber rir, é aceitar as críticas, compreender por que as fazem, sem ser obrigado a achar que elas estejam correctas. Podemos estar convictos de que temos as ideias certas, que actuamos bem e aceitar com humor as críticas. É isso o verdadeiro sentido de humor, compreender o porquê dos outros, usando essa arma como análise da sociedade, de compreensão, de diálogo. O humor, o cómico é a arma que mais assusta os “sérios”, os “trágicos”, os poderosos, os políticos porque ele mata os medos e enfrenta-os de peito aberto.
Se é difícil definir a comicidade, o humor, ao menos pode dizer-se como se constrói? É simples, e baseia-se em três sistemas de construção (contraste, exageração e repetição), as quais podem ser usadas, recriadas, associadas de mil formas.
O Contraste existe quando entre dois ou mais factos se cria o confronto de contrários, quando encontramos uma resolução de factos desproporcionada ou incongruente aos seus antecedentes. Esse contraste pode ser activado pela deformação ou pela incongruência. Pela deformação, consegue-se adulterar a verdade (ou realidade) através das desproporções dos elementos entre si. Pela incongruência, consegue-se confrontar o que é com o que deveria ser. Como disse Chaplin, «a verdadeira fonte do riso encontra-se no imprevisto», seja na mudança súbita de mundos, de ideias, de gestos. A incongruência cómica é criada pelo contacto súbito de dois mundos, que podem ser o quotidiano e outro deliberadamente absurdo.
A Exageração constrói-se como complementarização do contraste, da comicidade. Com ela acentua-se o choque dinâmico entre os mundos do real e do fantasista, entre o real e o absurdo cómico.
A Repetição é o uso mecânico dos mesmos elementos, até ao despoletar do riso, seja com uma palavra, um gesto, uma situação. O confronto entre o Homem e a rotina, ou a máquina, é a origem do cómico na repetição.
Basicamente são estes os elementos estruturais de qualquer acção cómica, ligada por uma construção de pensamento que nos levem por uma lógica até a um fim feliz concretizado pelo contraste, pela exageração, pela repetição, a um resultado que nos surpreende, provocando o riso, provocando uma análise mais profunda da ideia-base que está por detrás dessa comicidade.
Claro que não basta este cozinhado de técnicas, de estruturas mecânicas de construção do riso, já que não pode haver fogo sem uma centelha. Neste caso do humor chama-se espírito (esprit, Witty…), o tal sal humano que muitos definem como a centelha divina que nos leva ao riso, que transforma essa construção mecânica de pensamento, de acção, nessa olhar filosófico da vida.
O teatro, como forma dramática de representar a vida, supõe uma acção, uma história criada com artifícios de contraste, incongruências… Nesse mundo de teatro/cinema quando se fala de comicidade, baptiza-se imediatamente como Comédia, ou seja o oposto à Tragédia. Há mesmo quem baptize como comédia qualquer história que tenha um fim feliz, como se a felicidade fosse um exclusivo do humor, como se a tragicomédia fosse a salvação das tristezas.
O dramaturgo é um striper do Homem, obrigando-o a expôr as suas ambições, vaidades, seus limites e fraquezas, ao mesmo tempo que o envolve numa atmosfera de segurança, onde não pode haver lugar para o medo e a piedade, assegurando um final feliz. A garantia desse happy end é um estratagema fundamental para levar o publico a rir-se das misérias, das críticas, porque sabe que no fim sairá de consciência tranquila, já que tudo se resolve sempre com triunfo do bem…
Se leu este texto até aqui... é porque prefere a tragédia à comédia. Tal como prometi no início, não aprendeu nada comigo, apenas perdeu tempo, tempo precioso para desfrutar o traço dos artistas, fazer um exercício da memória num jogo de identificação tentando adivinhar em que filme, em que palco, em que programa viu este ou aquele artista. Artista, comediante… pois até agora só se falou em teorias do humor, da comédia, sem nos debruçarmos sobre o homem que está por detrás do nosso riso.
O Humor, a Comédia, a Caricatura são o fruto de um trabalho de Homens, a maior parte deles profissionais. Mas uma coisa é quem faz o humor e quem o representa, não sendo muitas vezes a mesma pessoa. Também aqui a confusão de definições se estabelece, se entrecruzam o humorista, o comediante, o contador de anedotas, o entreteiner de music-hall, o palhaço, o stand up comedi…
Ser humorista não significa ser uma pessoa bem humorada. Muitas das vezes, para não ser exagerado e dizer a maioria, são mal humorados, pessoas fechadas, tímidas explorando os seus maus fígados para criar sátiras, ironias que os outros depois usam para fazer rir. Existem depois os palhaços, os mimos, os entreteiners que, pelo improviso, misturado com alguns gags já estudados, com velhas anedotas criam um espectáculo cómico. Finalmente os comediantes, actores que interpretam os argumentos cómicos, dando-lhes o seu génio interpretativo para enfatizar o cómico, para apreender a tenção e o riso do público. O mesmo texto pode ter diferentes graus de risibilidade, consoante o actor que o interpreta. Mas há também os contadores de anedotas, as tais pessoas bem humoradas que em grupo animam sempre o ambiente de funerais, de casamentos, de café… com estórias engraçadas, anedotas que se repetem até à milésima vez; mas esses não são comediantes, porque não são actores, apesar de ser necessário alguma teatralidade para realçar a anedota; nem são humoristas porque não criam. Contudo há os criadores de espírito, aquele que têm sempre um dito, uma palavra cómica para saudar o amigo, a vizinha, que acabam por ser criadores de humor, sem serem humoristas encartados. Existem também os piropos de comicidade de baixo-ventre. Como vemos, há pessoas bem humoradas que não são humoristas e pessoas mal humoradas que são humoristas, há comediantes que não conseguem passar a sua historia e não comediantes que são magníficos construtor de comicidade anedótica… Estão a compreender ? Eu também não, e como diz Stan Laurel, deixemo-nos de teorias e desfrutemos o humor, o riso, a vida, mantendo sempre o sorriso no nosso olhar, na nossa alma.
A CARTOONISTS ATTACKED IN PAKISTAN NIGHTTIME ATTACK ON HOME OF CARTOONIST MUHAMMAD ZAHOOR
SOURCE: Reporters sans frontieres (RSF), Paris (RSF/IFEX-28 May 2007) Reporters Without Borders condemns an attack by gunmen on the Peshawar home of "Daily Times" cartoonist Muhammad Zahoor at around 2 a.m. (local time) on 25 May 2007. The attackers tried to break in after Zahoor, wary of the danger, refused to open the door when they rang the bell. But watchman intervened, and the intruders f1ed in a car with tinted windows.
As they left, they fired shots at the watchman, who was not hit. Zahoor and the watchman reported the attack to the police, who are investigating. Four-time winner of the Ali Pakistan Newspaper Society's annual best cartoonist award, Zahoor has drawn many cartoons in recent weeks on the chief justice of the Supreme Court's dismissal.
Reporters Without Borders has also protested a grenade attack on the home of Nasrullah Afridi, the correspondent for the Urdu-Language daily "Mashriq" in the Khyber Agency tribal areas. Three grenades were thrown on 26 May at his family's home in Hayatabad, near Peshawar, causing damage to the property but no injuries (see previous IFEX alert of 28 May 2007).
''The attack was c1early a direct result of the death threats made against Afridi five days earlier by the head of Lashkar-i-islam," the press freedom organisation said. "We cal! on the local authorities to give him adequate protection. We also cal! for the immediate c10sure of the illegal FM radio stations used by the extremist leader to broadcast his hate messages." (Citation: www.cartoon-crn.com)