Tuesday, May 01, 2007

A LUTA DOS TRABALHADORES (Pelo Humor)






Por Osvaldo Macedo de Sousa

Será que a Luta pela dignidade no trabalho, a Luta por melhores condições, melhores ordenados, é passível de humor? Tudo é possível de ser satirizado, porque não há coisa mais séria do que o humor. Rir dos assuntos não é menosprezá-los, é antes pelo contrário promovê-los à reflexão, á tomada de consciência dos factos de uma forma aberta e frontal. Só que não é fácil fazer essa abordagem. Para se fazer crítica construtiva, para se fazer humor, é necessário um grande domínio do assunto, é necessário ter uma grande capacidade cultural de síntese para se conseguir desconstruir, na reconstrução de uma nova imagem no outro lado do espelho. Nem todos os humoristas, caricaturistas ou cartoonistas têm esse dom, esse poder.
A Caricatura, como arte jornalística, ou seja: como conceito de desenho irreverente publicado na imprensa com cunho satírico, irónico ou simplesmente cómico, surge na Europa nos finais do séc. XVIII. É companheiro de luta de uma nova classe – a burguesia que combatia contra as monarquias absolutistas, que combatia as classes nobres enquanto detentoras do poder.
A ascensão da burguesia vai trazer consigo também a criação de uma nova classe trabalhadora, alterando a vida nas cidades, criando novos pólos de miséria. Por essa razão, os senhores do lápis e da caneta, atentos ao quotidiano, vão sentir necessidade de retratar esses novos mundos, e naturalmente satirizar as novas funções da servidão humana. A Caricatura, apesar de ser uma arma da burguesia, vai ser também uma delatora de abusos, uma consciência crítica da sociedade. Todos os grandes artistas de França, Inglaterra, Alemanha, os países onde cedo se desenvolveu esta arte, e que serão guias para todos os outros países, darão o seu contributo para a denúncia.
Portugal, naturalmente, levará mais tempo a desenvolver essas novas classes sociais, e a desenvolver essa arte. Apesar de haver folhas volantes satíricas desde o princípio do séc. XIX, só na década de quarenta de oitocentos é que se desenvolverá a arte da Caricatura.
Os caricaturistas portugueses nunca sofreram muitas consequências pelos seus traços e actos. É verdade que por vezes tinham de refazer tudo, porque o desenho não passava na censura, mas pouca coisa de grave. Alguns, poucos, tiveram de passar pelas barras dos tribunais a justificar as suas críticas. Leal da Câmara foi o único que teve de fugir para o exílio, para não ser preso. José Vilhena foi o único a ser mesmo preso, mas isso nunca o levou a desistir. Sempre souberam lutar pelo seu trabalho, e lutar por uma sociedade melhor, mesmo nos tempos de opressão.
A caricatura em Portugal nasce, não no seio da burguesia, pela pena de artistas da linha realista, mas no meio do operariado litógrafo. Com a vitória do Liberalismo, na década de vinte, a imprensa impõe-se em Portugal. A litografia foi o método de gravura que mais depressa se impôs e, como havia uma necessidade latente na imprensa de se desenvolver a ilustração, designadamente o desenho satírico, foram alguns litógrafos, habituados a copiar ou adaptar trabalhos vindos do estrangeiro, que ousaram fazer criações suas. Não tinham formação artística, nem interesses estéticos, actuavam mesmo de forma panfletária movidos pelos seus ideais, razão pela qual usavam pseudónimos. Para se protegerem.
Paralelamente, desenvolve-se um jornalismo de entretenimento, revistas de utilidades onde a gravura vai ser muito importante como forma de comunicação com as massas. Aí podem ver-se as várias vertentes de entretenimento das classes mais desfavorecidas da burguesia, com algumas sátiras sociais. Nesta imprensa, já não são os simples artesãos que trabalham, antes artistas plásticos ligados aos movimentos operários, como Nogueira da Silva que desenvolvem a sua arte dando uma nova estética à caricatura. São suas duas das obras aqui reproduzidas, uma de 1856 onde nos dá o lado amargo da Physiologia Social, e outro que satiricamente nos apresenta o Povo, como sendo ele o soberano da vida – “O Estado sou eu”. Ele pode ser o Estado, mas nunca é o poder executivo.
O Mestre Raphael Bordallo Pinheiro caricaturará o nosso estereotipo no símbolo magnânimo do Zé Povinho, esse ser que se albarda ao gosto do dono, que se submete a todos os vexames sem refilar. O seu criador, e outros caricaturistas, bem sonharão graficamente com o dia em que ele se revolta e atira com todas as albardas ao chão, mas isso nunca acontece. Mesmo nas revoluções que existiram ao longo da nossa história, esses repentes foram bem controlados e domados. As influências dos movimentos operários na Europa dão-se apenas no âmbito ideológico, com a importação de um ou outro desenho mais satírico, mas sem marcar os nossos artistas de forma radical. O único artista assumidamente militante das causas operárias seria Cristiano de Carvalho. É um anarco-sindicalista, que cedo teve de emigrar para terras de França, e onde fortaleceu sua formação política: de regresso, usará a sua formação e sua oficina tipográfica para desenvolver a imprensa anarco-sindicalista, onde pautavam alguns desenhos satíricos de irreverência contra a monarquia, contra o sistema político.
No séc. XIX vão desenvolver-se as indústrias, e naturalmente criar-se um proletariado que aos poucos vai-se associando, criando mentalidade de grupo, e dessa forma tomando consciência dos seus deveres e essencialmente dos seus direitos. Dará voz a manifestações, a movimentações políticas, as quais pouco se reflectirão na imprensa política. A luta fundamental de então será entre a monarquia e o republicanismo.
Será o período áureo da imprensa humorística, já que eram os próprios caricaturistas que publicavam os seus jornais. Eram donos e senhores do que faziam, correndo os seus riscos. Muitas eram as falências, e muitos eram os novos títulos que os substituíam. No final do século começam a surgir os caricaturistas trabalhadores a publicar por conta de outrem, e com o desenvolvimento da ilustração humorística na imprensa noticiosa, o papel de caricaturista patrão de si próprio vai desaparecendo, assim como a própria imprensa humorística.
Os problemas dos trabalhadores eram algo concretos, sem muito assunto para se poder satirizar na imprensa. Predominava a questão do número de horas de trabalho diário, a questão dos salários (questões que ainda hoje se mantêm, porque nada muda, tudo se transforma para igual)… A sátira vai, assim, pegar nas questões de miséria, e não questões de reivindicação dos trabalhadores. Vai expôr os problemas de sobrevivência, os problemas da alimentação cara, ou seja: não se publicam desenhos que possamos considerar directamente ligados à Luta dos Trabalhadores.
Contudo, com a viragem do século, e pela pena dos dois grandes mestres e símbolos de oitocentos, vamos encontrar duas grandes sátiras ao Capital, à exploração do homem pelo dinheiro. Surgem como reflexo dos acontecimentos do 1º de Maio de 1886, em Chicago, cuja carnificina tornará esse dia como símbolo da luta dos trabalhadores em todo o mundo. Assim, em 1900 vamos encontrar em A Paródia um magnífico desenho de Manuel Gustavo Bordallo Pinheiro com referências à luta pelo horário de 8 horas de trabalho, e em 1901 um desenho de Raphael Bordallo Pinheiro que nos apresenta o Capital como uma máquina destruidora da humanidade.
Com o triunfo da República em 1910, a luta dos trabalhadores toma nova dimensão. Os republicanos que se uniam para derrubar a monarquia, dividem-se agora pelas múltiplas vertentes do republicanismo e a luta dos operários toma nova dimensão, o que criará muitas revoltas, muitas prisões, muitas greves… Naturalmente os desenhadores vão falar um pouco disso tudo.
Contudo, vivemos já nos tempos em que poucos são aqueles que publicam nos seus próprios jornais. Estão cada vez mais sujeitos às tendências políticas dos donos dos periódicos, tendo que matizar as suas ideias, os seus humores, com a visão de quem publica. Além do mais, a maioria são artistas que andam pela caricatura apenas como uma forma de sobrevivência, sonhando poder viver doutras artes. Burgueses de formação e ambição, os problemas das classes operárias resvalam nos seus interesses sociais, e não terão grande importância nos seus trabalhos gráficos, mais ocupados a fazer crítica social, luta contra a pobreza, a ignorância.
Nas décadas de vinte a quarenta, haverá 3 artistas que se revelarão com uma faceta interessante neste campo de que falamos. Bernardo Marques terá uma postura interessante no desenho satírico, já que, tendo viajado pela Alemanha, sofreu uma grande influência do mestre George Grosz, um grande retratista satírico das misérias do operariado europeu, e dos horrores da ascensão do nazismo. Bernardo Marques acabará por dar-nos alguns retratos expressionistas da vida social portuguesa.
Os outros dois desenhadores são Roberto Nobre e Eduardo Faria. Os seus trabalhos públicos não são nenhumas obras panfletárias. São desenhos humorísticos como os outros, com algum interesse pelos problemas sociais, mas nada que chame a atenção, e que revele o lado secreto das outras vidas de clandestinidade que viviam. Ambos trabalham para movimentos sociais clandestinos, seja como gráficos, como tipógrafos. Muitos desenhos deles, correram anónimos na imprensa clandestina, que não abordamos aqui, já que não somos possuidores desse espólio.
Eduardo Faria tinha também a particularidade de ser conhecido no meio artístico como um grande boémio, um grande bêbado que a polícia não levava a sério, visto ser um caso perdido para a sociedade, quando hoje sabemos que isso era um dos seus disfarces.
Com a queda da Primeira República e instituído o Estado Novo, a censura irá sufocar o humor, tornando-o cada vez mais anedótico e menos satírico. Por ironia, os censores não se importavam que se preenchessem nos espaços censurados com desenhos alusivos à censura, porque ela era assumida e vinha mencionada no cabeçalho de qualquer periódico. Assim, aparecerão muitos desenhos com a Nossa Srª do Carmo, a D. Censura com o lápis azul, a tesoura, a rolha.
Entre o muito anedotário de bêbados, sogras e afins com que se foi enchendo cada vez mais a imprensa, havia muita crítica social, muita ironia política disfarçada. As coisas podiam ir-se dizendo, num jogo de sentidos, numa ilusão de ópticas e dizeres.
Com a queda de Salazar da cadeira abaixo, sonhou-se que o Zé Povinho se poderia erguer com nova voz, só que mais uma vez o poder tinha tudo controlado, e mesmo o Delfim do regime teve de se submeter ás vontades mais fortes, sendo simplesmente retórica a propalada abertura do país a uma nova primavera. Houve um desanuviamento que deu azo a surgirem alguns novos rebentos de ideias, mas ainda não havia calor suficiente para derreter o gelo que toldava o país.
Seria a revolução de Abril (em 1974, para quem já tenha esquecido, ou não saiba...) que finalmente daria voz ao povo. Por quanto tempo? Frágil ilusão para aqueles que vitoriaram o primeiro 1º de Maio em Liberdade, porque em breve a revolução seria amputada de uma letra, assumida como evolução. Os desenhadores viveram efusivamente esse momento inebriante de liberdade, de luta pelos direitos.

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